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quarta-feira, 11 de julho de 2018

O Paludismo..., por Manuel Bastos, apresentado por José Leitão





José D'Abranches Leitão

PALUDISMO (Quantas vezes ficámos "de molho"!!!!)

O parasita Plasmodium ao atravessar o citoplasma de uma célula epitelial da fêmea do mosquito, na forma com que penetra no corpo do ser humano e de outros vertebrados
O Paludismo

I

O vale de Miteda, visto de cima, é um oceano vegetal. 

Para qualquer lado que se olhe só se vê a mancha verde-musgo da floresta. 
Ao longe, a Norte, somente o Planalto dos Macondes quebra esta monotonia oceânica. 
Um pouco acima das copas das árvores passa uma silhueta de insecto, com a sua cabeça grande, os olhos enormes ocupando a cabeça toda e o corpo alongado. 

Não se vêm as asas, apenas um halo translúcido provocado pelo movimento do ar. 
Chama-se Alouette III e dirige-se solitário, para Sul. 
É estranho que vá tão baixo e ande tão tarde longe da base.

Acima, muito acima do helicóptero, outra silhueta parecida com ele pertence mesmo a um insecto. 
Não menos estranho que voe tão alto e já ande por aqui tão cedo. 
Não pode ver o Alouette, nem tampouco a enorme lagarta, constituída pelo primeiro grupo de combate da CART 3503, que serpenteia lentamente na picada lá em baixo. 

Não pode vê-los porque se trata de um Anopheles Gambiae fêmea, e os mosquitos não vêm, só distinguem a luz da sombra. 
Talvez lhes baste, para saberem quando chega a noite, ou para fugirem às palmadas com que nós, normalmente com os nervos em franja, os tentamos matar. 

Parece pouco para milhões de anos de evolução genética, mas o mosquito faz muito mais do que pôr-nos os nervos em franja, o mosquito é, na verdade, o animal mais perigoso do mundo. 
Uma picada de algumas, de entre as 2.500 espécies existentes, basta para matar um homem e, em África, morre um milhão de pessoas, todos os anos, de uma simples picada. 

Esta anófele, para usar o nome bem português, não precisa de ver os soldados, o dióxido de carbono exalado por eles indica-lhe a uma grande distância que o jantar está pronto. 
Muita hemoglobina suculenta, que os mosquitos não podem ver a refeição, mas por assim dizer, cheiram-na.

O tornado provocado pelas pás do Alluete III aspirou a anófele brutalmente, como se um poder superior quisesse excluí-la desta história, por sabê-la daninha, como é de seu latino nome próprio, porém, esta história está longe de acabar aqui…

A humidade é tanta que custa a respirar. 
O ar tem uma espessura oleosa. 
Estamos encharcados como se tivesse chovido torrencialmente. 
Não tenho um centímetro quadrado do corpo seco. 
A paisagem dissolve-se vinte metros à nossa frente, onde a picada e a fila de soldados desaparecem no nada. 
Parece que caminhamos em direcção a um espelho embaciado que nos vai engolindo. 
O som parece propagar-se como debaixo de água, ouve-se o ruído mais distante como uma percussão nos próprios tímpanos.
Mas vozes, não se ouve nem um sussurro, apenas os passos dos soldados e o ininterrupto fervilhar da floresta. 
Parecemos uma fila de almas penadas. 
Estamos vivos, não há qualquer dúvida; o cheiro acre, inconfundível, da terra húmida de África e o hálito morno da floresta, tão estranhos, mas cada vez mais familiares, chamam à realidade.

À frente o rádio crepita qualquer coisa repetidamente, na tentativa de se fazer entender. 
A antena em forma de fita cresce um metro acima das costas do soldado e vibra no ar com um som metálico. 
O soldado resmunga um chorrilho de palavrões em surdina, intercalados com as frases: "Aqui Charlie Tango. Diga se me ouve, escuto." 
Em resposta, o rádio tossiu e depois calou-se de vez. 
O sentimento de irrealidade regressa e convida ao devaneio. 

Somos uma lagarta gigante de quarenta e seis pernas que avança como se soubesse ao que vai e no entanto, individualmente, nenhum de nós parece ter o ar de quem sabe alguma coisa. 
Num acesso de pânico recordo-me que sou eu mesmo quem de todos nós mais deve saber o que está aqui a fazer. 
Vinte e três homens dependem da minha decisão para irem a algum lado. 
De repente, o mapa que levo no bolso e a bússola pendurada ao peito transformaram-se em objectos estranhos que deixei de saber utilizar. 
Que diabo faço eu aqui? 
Rogo pragas ao alferes que adoeceu, e de repente vem-me à cabeça que se eu der uma ordem estúpida talvez os soldados se amotinem. 
Ora, se a estupidez fizesse amotinar os soldados, nenhum de nós estava aqui agora.

II
O estampido inconfundível de um morteiro acorda-me para as minhas responsabilidades. 
Estiramo-nos no chão aguardando o rebentamento da granada. 
Caiu longe. 
Faço sinal para continuarmos. 
A julgar pelo som, estamos mais perto do local do disparo do que do local do impacto. 
Não parece haver perigo, foi um tiro à sorte, decerto para que uma reacção nossa nos denunciasse. 

Passa um helicóptero sobre nós com aquele som sincopado acompanhado de um silvo. 
Voa muito baixo e vai estranhamente só, provavelmente trata-se de uma evacuação urgente de algum ferido e não foi possível arranjar escolta. 

Começa a anoitecer e ainda estamos longe do objectivo. 
Soa um novo disparo de morteiro, encolhemo-nos um pouco mas não nos atiramos ao chão desta vez, mais por preguiça do que por confiança nos nossos cálculos quanto à falta de pontaria do atirador. 
Se calhar os morteiros são para o helicóptero. 
Ouvi dizer que os turras fazem isso às vezes. 
Seria mais fácil encestar com uma bola de básquete num cesto voador.

Os mosquitos começam a importunar-me. 
Não passam cinco minutos que a minha mão esquerda não pareça um limpa pára-brisas a enxotá-los de um lado e do outro da cara. 
Vão aqui exactamente vinte e três homens e não vejo mais ninguém nesta aflição. 
O alferes Barreiros costuma dizer que é da zurrapa da Bairrada, que se eu bebesse bom vinho verde isto de certo não aconteceria. 
Assim que pararmos lá terei de barrar-me com o repelente que me transforma numa bosta de vaca ambulante e que costuma repelir tudo, até os meus camaradas.
O dia morre de repente e cola-se-nos a noite ao corpo como uma manta húmida e pegajosa.

…Impossível saber o que aconteceu àquele mosquito. 
Aqui em baixo, entre as folhas das árvores onde um risco de luar deixa ver um pouco; uma silhueta escura, a contraluz, na sua habitual posição inclinada, identifica uma anófele. 
Inclinada como um felino que levanta os quadris antes do salto, formando uma linha quase direita com a probóscide, cabeça e corpo. 
Se é a mesma que o helicóptero sugou para baixo ao passar, está em perfeita forma, e o dióxido de carbono, em maior abundância que o habitual, garante-lhe que o terreno de caça foi bem escolhido. Agora é só escolher a melhor presa. 
Ela não vê o soldado que esbraceja como possesso, nem ouve as suas imprecações, mas um componente do seu suor indica-lhe que ele pode fornecer uma boa proteína para o fabrico dos seus ovos, e produzir cerca de 1.000 ovos na sua curta vida de 3 ou 4 semanas requer a melhor proteína que ela puder encontrar.
O soldado deu uma violenta bofetada em si mesmo, mas não por ter enlouquecido de vez: em quase duas horas de autoflagelação, quis certificar-se que antes de pôr o malcheiroso repelente, matava ao menos um mosquito. 
Depois olhou para a mão ensanguentada e sentiu-se vingado.

A anófele acabou inglória antes de ir procurar uma gota de água para largar os seus ovos, mas os parasitas unicelulares que a sua saliva largou, correm agora como torpedos pelo sangue do soldado em busca do fígado. 
Aí se alojarão para a investida final. 
Entretanto multiplicam-se incessantemente. 
Durante os próximos dias o soldado nada notará, talvez um pouco de calor a mais, talvez um estômago mais intolerante à ração de combate, mas aqui se define a sua vida ou morte, dependendo do alvo escolhido pelos torpedos. 
Se for o cérebro, evitará um dia de estourar com uma mina e de dar uma despesa danada ao erário público…

III
A música é a única coisa fluída. 
O ar parou, tal como o pensamento. 
Não parece luz esta claridade tão esquálida e o ar tem uma espessura tão grande que tudo parece preso dentro de uma bolha de âmbar. 
Mas é pura ilusão, toda a vida e o próprio ar devem ter abandonado este lugar e eu não estou mais vivo que o resto, apenas o meu pensamento ainda persiste como um reflexo de uma coisa que aconteceu há muito tempo. 
O meu estômago é um odre virado do avesso e a minha cabeça parece um timbale que estrondeia a cada batimento do coração.
A música, num pequeno leitor de cassetes que alguém deixou esquecido, flúi, é certo, mas não descodificada, como algo que não agrada nem agride, como palavras ditas num língua nunca dantes ouvida, sem qualquer sentido.
Estou sentado na cama sem força para me mexer. 
De duas em duas horas sucedem-se o Verão e o Inverno no meu corpo: dum gelo glacial que me congela o esqueleto dentro do corpo, a um calor dos infernos que me faz saltar os olhos das órbitas. 
O mal-estar atingiu um nível que ultrapassa a capacidade do sofrimento, como o som que de tão agudo se deixa de ouvir.

A janela do meu quarto deixa-me ver o que resta do mundo: uma paisagem descarnada onde as árvores ficam como manchas numa fotografia com o lençol do céu por cima sem cor nenhuma, nem cinzento sequer. 
Vêm-se ao longe três vultos. 
Um mais atrás que parece andar e dois à frente que parecem falar um com o outro. 
Se eu fechasse a janela talvez se respirasse melhor. 
O cigarro entre os dedos, que acendi mecanicamente, gangrena numa torcida de cinza, desafiando a gravidade. 
Sinto o calor da brasa a chegar aos dedos, mas não me mexo. 
Sei que posso mexer-me, se quiser, mas não me mexo. 
Olho apenas os três vultos ao longe que parecem não se ter mexido também. 
Apesar de um, mais atrás, parecer andar. 
Os dedos pulam sob o efeito da dor sem que eu tivesse querido, e o cigarro cai no chão, soltando uma pequena centelha e depois um cabelo de fumo risca o vazio em linha recta à procura, em vão, de uma aragem que o disperse.
A música no pequeno leitor de cassetes é ininteligível, como se a mesma frase musical se alongasse no tempo sem progredir. 
No quadro que a janela desenha na parede do quarto, que olho sem a mínima vontade de fechar, os três vultos continuam no mesmo sítio, embora o de trás, já disse, pareça andar, na pele ressequida daquela paisagem com um lençol de céu incolor por cima. 
Não quero acreditar que isto seja apenas a memória do dia em que morri. 
Não quero ter morrido num dia assim.

…O parasita do paludismo ataca primeiro o fígado e a pouco e pouco, destrói as células sanguíneas alimentando-se da hemoglobina dos glóbulos vermelhos, o que inibe a sua capacidade de transportarem oxigénio, provocando anemia e favorecendo a introdução de toxinas que provocam febres elevadas.
Depois de uma sucessão de várias horas de frio e de outras tantas de febres altas, segue-se uma fase de transpiração intensa que precede, nas ocorrências benignas, o fim da malária e que é acompanhada por uma sensação de alívio e bem-estar…

Acordo e fico completamente desperto. 
Tive um sobressalto com o barulho repentino da chuva que se abateu abruptamente sobre o telhado de fibra de cimento. 
Toda a gente dorme profundamente devido à noite de batota até às tantas. 
A chuva não forma uma cortina, é uma parede compacta, um corpo de água, uma cascata que provoca um trovão contínuo no telhado. 
Acho que se saísse agora para a rua corria o risco de morrer afogado.
No quarto, os outros viram-se para se agarrarem ao sono, mas o ribombar da chuva e o calor sufocante não os deixam sossegar.
Estou completamente encharcado de suor, mas aparte uma grande debilidade e uma ligeira sensação de fome, sinto-me bem. 
Por contraste com o mal-estar dos dias anteriores até sinto uma certa leveza.

A chuva, uma hora depois, parece cansada de tanto cair. 
Agora é uma poalha espessa. 
A água a escorrer por todo o lado faz crer que a terra acabou de emergir do próprio mar. 
As flats; como nós, os furriéis, chamamos às barracas onde dormimos; parecem submarinos que acabaram de vir à superfície. 

O calor, porém, não abrandou nem um pouco. 
Saí da flat e estou completamente nu à beira da principal rua de Mueda. 
Esfrego o corpo todo com sabonete Pati e a chuva lava-o de imediato. 
Em Mueda é a única maneira de tomar banho em água limpa. 
Agora que a chuva amainou já se consegue ver à distância, e há alguém ao longe que parece ter interrompido a corrida para o bar para se certificar que havia um gajo nu no meio da rua. 
Dou por terminado o banho e dirijo-me para a flat, nu, de sabonete na mão, mas com passo decidido e ar digno.

…É assim a roleta russa desta guerra: poupa-se um soldado à morte quase certa, não por humanidade ou por compaixão, nem tampouco por estratégia, apenas pelo mais fortuito acaso. 
Até parece que Deus joga xadrez com eles. 
O que estará reservado nesse jogo a este peão? 
Uma mina na picada de Omar aguarda silenciosa que ele se restabeleça completamente. 
Quem ficará a perder é o erário público.
Manuel Bastos