segunda-feira, 27 de abril de 2020

A Berliet não queria subir a Serra Mapé, por Paulo Lopes

Paulo Lopes 



Sendo assim e para dar uma "achega" à verdade que o amigo Armando Guterres fala no seu comentário em cima, lá vai mais um pouco do livro. 

Só para chatear.
Poderá dizer-se que a coluna decorreu normalmente se nos debruçarmos sobre o aspecto de minas, armadilhas ou emboscadas, mas se olharmos para outros aspectos menos perigosos mas igualmente demolidores, a coluna correu-nos bastante mal.

Logo no inicio da subida da serra a Berliet, que sempre insistíamos em levar pela sua capacidade de carga que poderíamos transportar, mas que nunca ou raramente conseguíamos que subisse a serra, e por mais tentativas que fizéssemos, teimou em não subir.

Teve que se alterar o projecto!. 
Duas secções do 1ºgrupo de combate regressaram ao estacionamento com a Berliet.

Segunda contrariedade: tínhamos sido informados que as pontes já estavam consertadas. 
Tretas!

Quando chegamos as pontes verificamos que só uma estava reconstruída. 
A outra estava no chão, ou melhor, não era ponte!. 
E esse pequeno pormenor não nos dava um acesso muito fácil a passagem das viaturas para o outro lado do riacho. 
O outro lado que estava tão perto e que se tornava demasiadamente longe para as nossa pretensões!  

Tivemos de inventar e colocar em prática a nossa veia do desenrasca que tanto caracterizava o nosso exército. 

Tinha de ser uma intervenção rápida e sem muito alarido. 
Aproveitamos os nossos habituais "turistas" que sempre nos acompanhavam até Macomia, auxiliando-nos na busca e abate de troncos que proporcionassem a nossa tentativa de solução para atravessar o riacho com um pouco mais de segurança. 
Ou não!. 

Depois deste trabalho suplementar, feito duma forma muito rudimentar, prosseguimos a marcha com todos nós de semblante abatido, mental e fisicamente cansados. 
E ainda faltavam tantos quilómetros para percorrer!!. 

Terceiro contratempo: mais a frente, uma viatura avariou! 
Outra paragem. 
Cada vez mais se notava nas nossas faces a saturação. 
Estas paragens prejudicavam bastante o ritmo de andamento e cansava-nos muito mais. 

Cada paragem é sempre um tónico para não recomeçar. 
Para mim, estas paragens, davam-me a coragem de voltar a pensar. 
A bem dizer, não eram pensamentos, mas recordações que me perseguiam na minha fraqueza e dava comigo a perguntar-me: — Que estamos nos aqui a fazer? 
Que vida é esta para jovens de vinte e poucos anos? 
Porque nos estão a tirar este tempo da nossa existência? 

Mais uma vez me veio à lembrança a flor do cano da minha espingarda, mas o que mais fez estremecer todo o meu ser, foi o pensamento de que, com toda a certeza, todos os verdadeiros culpados da guerra estariam bem confortáveis junto das suas famílias, longe de quaisquer perigos eminentes, saboreando o prazer de viver sem, tão pouco, lhes doer a consciência nem pensar no que estavam a fazer a maioria da juventude portuguesa. 
Mas tudo a bem da nação. 
Mas porque é que estas situações não acontecem como no tempo dos nossos primeiros Reis? (pelo menos como nos foi contada nas aulas de Historia de Portugal! (Será que era mesmo assim?) 
Eram eles, os Reis, que iam para a frente da batalha! 
Pois. 

Foram horas sem conto, de sofrimento e angustia e já o sol se afogava no longínquo horizonte quando finalmente chegamos a Macomia. 

No dia seguinte e como já estava mais ou menos previsto, fomos proteger os trabalhadores na apanha do caju. 
Uma das várias fontes de receita para engordar contas bancárias de uma meia dúzia de abutres e claro, untar as mãos dos energúmenos brigadeiros, coronéis, marechais e outros que tais que estão a mais! (mentira!! Estou a brincar!!!). 

Mas quem ia proteger essa receita? 
Nós, pois então! 
E quem a iria apanhar a troco de quase nada? 
Os nativos, claro e transparente como a brisa que sopra nas tardes limpas do calor de África!

  • paulo lopes
    in "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
  • NATAL DE 1971..., por José D'Abranches Leitão

    Olá bom dia!
    Desaparecido em combate???
    Não! Ainda respiro!
    NATAL DE 1971
    Tal como tinha prometido ao Duarte Pereira, eis o ataque ao aquartelamento de Macomia - Natal de 1971.



    O dia começou com a azáfama habitual, render dos sentinelas, o café com leite com um bocado de "carcaça" que tinha um sabor especial, ainda quente, pois os padeiros quiseram dar-lhe um gosto natalício.
    O meu grupo de combate, para variar, saiu num patrulhamento de rotina.

    O aldeamento, aqui e ali com o fumo característico de fogueiras, o colmo das palhotas tão característico de África.
    As crianças semi nuas a correrem alegres....o choro dos que andavam colados as costas da mãe, enrolados numa capulana de cores garridas, os seios da mãe descaídos, quando se debruçava para varrer a entrada da palhota!
    A mandioca, o pilão. ...a farinha moída com o "almofariz"...o som do bater do "pau", com as mãos ágeis .... Flashs que passados 48 anos ainda retenho na memória.

    Alguns soldados, sentados nos bancos corridos do "pincha", vão lembrando o Natal da sua santa terrinha!

    O bacalhau, as couves, o azeite, as filhoses, as rabanadas, o bolo-rei com a fava, o pão caseiro, a broa, as bolas, tão típicas feitas com sardinha ou bacalhau, que o forneiro fazia, após cada fornada de broa, no forno comunitário da aldeia.

    As prendas, o presépio, com os pequenos bonecos de barro, com o menino Jesus, em destaque....a imaginação de cada um, o musgo, o riacho, as ovelhas...a gruta com o calor do bafo da vaquinha, do burrito...
    Enfim o imaginário de cada um, para atenuar um pouco o degredo, a distância, a saudade dos entes queridos, que se reúnem à volta da fogueira na cozinha, para os preparativos da Consoada.

    Ao regressar a meio da tarde...começo a idealizar a noite de Natal.
    Uns ramos de palmeira....a mesa grande de tábuas corridas, as toalhas, as pinturas com motivos natalícios....o centro de mesa....as luzes...os pratos, os guardanapos com um sino de Natal pintado, imaginação do "artista plástico" da Companhia, o Furriel Oliveira....o gira-discos preparado para ouvirmos o Zeca Afonso....os vinis singles que levei...

    Os abraços, os desejos de um Feliz Natal, ao camarada que passa por nós, enfim....tudo estava a 'postos" para que a Noite de Natal, fosse a "mais familiar" possível.

    O 1° Sarg Urze com a sua guitarra, já aquece os dedos, com umas variações em ré menor.
    O fado de Lisboa também iria ser cantado à desgarrada!
    E alguns fadistas improvisados...já aqueciam s gargantas!!!

    Recordo, que tinha colocado no prato do gira discos um single com o "Menino d'oiro" do Zeca Afonso!

    Vejo que algumas lágrimas correm pelas faces de alguns!
    Durante a nossas estada na Cruz Alta/Serra do Mapé, consegui que quase toda a Companhia começasse a gostar de Fado de Coimbra, pois mesmo com um gerador a dar o berro, o gira-discos. ...funcionava com os únicos discos que havia...os meus singles de 45 rpm...do Zeca Afonso!

    O bacalhau cozido fumegante começa a chegar à mesa ... as batatas cozidas....as couves...os galheteiros...as cervejas distribuem-se ao longo da mesa....e o vinho tinto!!!

    As gargalhadas....os sorrisos....de repente são interrompidos pelo silvo caractarístico dos morteiros 60 ou 82....
    Estamos a ser atacados!
    O IN quer estragar-nos a ceia de Natal. Gera-se alguma confusão. ...alguns escondem-se debaixo da mesa, muita correria.

    A pedido do Capitão Marinho Falcão, conduzimos as mulheres e filhos de alguns oficiais, para o bunker da Casa do Administrador de Macomia.

    Após alguns minutos, seriam 15 a 20 minutos do ataque, verificamos que todas as granadas passaram por cima do aquartelamento, e vão explodir no meio do aldeamento!
    Consta-se que haverá mortos entre a população!

    Entretanto chegam a correr o Gouveia e o Carias Mendes, que ficaram no aldeamento para comprarem umas mangas !! (?)....

    Mais uma vez, para variar, o 4° Grupo de Combate, sai para patrulhamento, sob as ordens do Major de Operações, vamos até ao Laku.
    O senhor Major queria, via rádio, que fizéssemos uma incursão no vale!
    A noite estava escura como breu!

    Um soldado africano, destemido, mas cauteloso, vai dizendo que será um risco grande pois o IN estará emboscado à nossas espera!
    Tinha razão, pois no dia seguinte, verificamos que havia indícios da sua presença e até o rodado de um canhão sem recuo, ainda era visível no capim, para alem de termos encontrado um morteiro 60, completamente enterrado no matope!

    Depois de mais uma comunicação, via rádio, regressamos ao aquartelamento!
    O bacalhau estava à nossas espera.
    O Gouveia, entre dentes, vai-me sussurrando ao ouvido que apanhou um susto do caraças, pois estava com as calças na mão, a "negociar"...as mangas, quando começou o ataque !!!????
    O Carias Mendes....ri...a bom rir....mas não ganharam para o susto!

    Entretanto a noite vai longa e algumas garrafas de Whisky e muitas Laurentinas, vão "afogando" as mágoas! !!!

    Canta-se à desgarrada, com os acordes da guitarra do 1° Sargento que fez questão de tirar a boina e colocar entre os colarinhos da camisa um lenço. ...de fadista!!!

    Por ultimo, o desabafo do Sarj Ajudante Musico, Anjo ( que compôs a letra do hino do Batalhão )
    : -Menino (era assim que me tratava)! Estava a ver que já não voltávamos à nossa Coimbra!!!

    E o Carlos David (também de Coimbra) ...associou-se a nós num fraterno abraço!
    Fim

    UM FELIZ NATAL PARA TODOS!
    Abraço
    José Leitão

    O nascimento de uma criança, Américo Condeço


    20/03/2015

    MAIS UMA EXPERIÊNCIA DE VIDA

    Um belo dia fomos chamados, o Doutor e eu, ao Hospital Civil de MACOMIA para assistirmos a um parto pois a parturiente estava em trabalho de parto já há vários dias e a criança não queria nascer.

    O Dr Cardoso esteve a analisar a situação e decidiu-se pela evacuação, pois tanto Mãe como Filho já estavam com poucas forças e a situação estava a tornar-se perigosa para ambos.

    Chamados os meios de evacuação, tratámos de transportar a dita senhora de ambulância para a pista pois o avião já vinha a caminho para proceder ao seu transporte para o Hospital Civil de Porto Amélia.

    A mulher dentro do avião procedimentos normais e avião no Ar.

    E foi ai que aconteceu o bom da situação, quando do contacto com o piloto para o adeus e até ao regresso o mesmo informou que a criança tinha acabado de nascer, ordem imediata para regresso pois tanto a mãe como a criança necessitavam de cuidados imediatos.

    Ainda acompanhámos os dois durante alguns dias no hospital civil de Macomia, mas depois perdemos-lhe o rasto.

    Por baixo da perna da galinha..., por Duarte Pereira


    Poucos leram um comentário que fiz hoje por baixo da perna da galinha.
    Agora vem para aqui.
    ================
    DIA 8 DE DEZEMBRO DE 2014.


    ...
    Estava com a Isabel na terra da minha sogra.
    Sacorelhe-Ventosa-Vouzela- Beira Alta.

    Visita inopinada, mas combinada.
    Era costume irmos almoçar a casa de uma prima.
    Lá na terra são todos "primos", mas estes primos, são mesmo primos.
    Eu com a minha "experiência" de dois anos de Macomia, disse à prima.

    Infelizmente este ano, não poderemos estar no vosso convívio.
    Estão cá umas visitas e vamos almoçar com eles.
    Resposta da prima. 
    Nada disso, o casal será bem recebido na nossa casa.
    Assim foi.

    Numa mansarda, tipo daquelas da Bretanha, lá fomos.
    O rés do chão é um salão com um enorme fogão a lenha em ferro.
    Lá fora, debaixo de um taipal, outro fogão a lenha.

    Em Julho quando lá fomos, tinham umas perninhas de porco penduradas.(vulgo presunto).
    Uma casa farta.

    Um aviário, terrenos de cultura de várias espécies hortícolas, criação de porcos, já tiveram um cavalo, fazem vinho e guardam-no em recipientes próprios (cubas metálicas). 
    Que perigo. :)

    Voltando à perna de frango.
    Mais mulheres que homens nos trabalhos de campo.
    Calças por todo o lado.

    Só quando há festas, baptizados ou casamentos, correm todas a Vouzela para arranjar o cabelo e fazerem depilação.

    Os meus amigos estiveram lá e não deram por nada disso.
    Vinte e quatro horas, não dá para ver tudo.
    Como vamos lá há mais de quarenta anos, fomos vendo e aprendendo os usos e costumes daquele povoado e gentes.

    MORAL DA HISTÓRIA: OS FRANGOS SÃO MAIS VEZES DEPILADOS, DO QUE AS PERNAS DAS SENHORAS :) .

    quarta-feira, 22 de abril de 2020

    Apresentação na Mataca, por Paulo Lopes

    Devidamente autorizado e para que não constasse o meu nome em qualquer escala de serviço, até porque estava apenas em transito e à espera de guia de marcha para seguir o meu destino, hospedei-me em casa dos meus amigos, tendo que fazer uma visita diária ao quartel para saber da minha viagem até Mataca. 



    Ainda estive vinte e oito dias em Porto Amélia, os quais foram utilizados da melhor maneira possível, fazendo de tudo e de todos um escape para a ideia atormentadora de que se aproximava a derradeira epopeia para a qual servia a minha presença nesta terra tão distante da minha e que nada me dizia.



    Estava na esplanada do Hotel Cabo Delgado desfrutando o prazer de beber uma fresca cerveja para acalmar o estalar na pele do quente sol africano, quando um dos amigos do casal que me dava guarida e que já me tinha sido apresentado, e até já confraternizando numa ou noutra conversa, interrompeu esse prazer: — É pá, vai ao Sector para te entregarem a guia de marcha.

    O interlocutor nem me deixou pestanejar e prosseguiu com a sua informação em primeira-mão: segues amanhã comigo para a Mataca.

    Fiz-lhe sinal com a cabeça para ele se sentar e acompanhar-me numa bebida. 
    Aceitou e enquanto puxava pela cadeira continuou a sua prelecção: — Em vez de ires em coluna de Porto Amélia para Macomia, o que já é mau, e depois ficares lá à espera doutra coluna que te leve para Mataca, o que ainda é muito pior, vais comigo de avião directo a Mataca.

    Este meu recente amigo era um piloto de aviões ligeiros, mais conhecidos por Táxis Aéreos, os quais eram fretados pelo exército para fazerem varias distribuições pelos diversos postos militares espalhados por todo o Distrito.



    Acabámos a nossa desinteressante conversa no ultimo gole de cerveja e fui cumprir o meu dever de militar.

    Feitas as respectivas diligencias no quartel de Porto Amélia estava, no dia seguinte, a despedir-me do casal meu conhecido e pronto para descolar asas até ao meu próximo destino, aproveitando a boleia de avião em vez de fazer as tais colunas de tão má reputação mas que eu, desconhecedor das realidades, não fazia a mínima ideia do que eram.

    paulo lopes 
    in "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"




    A viagem para África..., por Luís Leote - Fonte: Guerra Colonial 1961-1974

    A viagem

    A viagem para África começava muito antes do embarque. 
    O processo que levava um jovem até Angola, Guiné ou Moçambique iniciava-se habitualmente logo após o final da instrução da especialidade. 


    Para um atirador, e tanto fazia sê-lo de Infantaria, Cavalaria ou Artilharia, após ser dado como pronto vinha a ordem de mobilização. 
    O caso mais vulgar e típico era o de o militar pertencer a uma companhia e esta a um batalhão.

    A ordem de mobilização originava a guia de marcha para a unidade mobilizadora. 
    Aí se juntavam os militares vindos dos vários centros de instrução, os graduados e os comandantes. 
    A companhia e o batalhão já tinham um número de código atribuído e, aos poucos, surgiam os especialistas diversos, os condutores, transmissões, enfermeiros e cozinheiros, de modo a que se preenchesse o quadro orgânico respectivo.



    Enquanto se formava a unidade, realizavam-se os exercícios de instrução - IAO, a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional - com os conselhos sobre o que fazer em África para sobreviver. 

    Recebiam-se as vacinas, o camuflado e, por fim, a unidade estava pronta.
    Chegava a ordem de embarque e então o contingente formava na parada do quartel. 
    Nos primeiros tempos, o capelão rezava uma missa campal, que depois caiu em desuso; o comandante da unidade mobilizadora, um coronel, proferia umas palavras alusivas à missão e entregava o guião ao comandante do batalhão mobilizado, um tenente-coronel, ou então da companhia, um capitão; as tropas desfilavam ao som da música, era concedida a licença de dez dias antes de embarque e pagas as ajudas de custo. 



    Neste momento, o militar era um mobilizado, ia a casa, despedia-se da família, fazia umas asneiras por conta, arranjava umas correspondentes para lhe escreverem, ou umas madrinhas de guerra, e voltava à unidade mobilizadora para daí iniciar verdadeiramente a viagem.

    Neste regresso faltavam uns quantos camaradas, que tinham decidido dar o salto para o estrangeiro ou baixado ao hospital com uma doença mesmo a calhar, mas os que restavam formavam de novo na parada do quartel, com as malas, e embarcavam nas viaturas militares para a estação de caminho de ferro mais próxima.

    Na estação, quase sempre de noite, o contingente embarcava num comboio especial em direcção a Lisboa, ao Cais da Rocha ou ao de Alcântara.




    O navio que os iria levar estava atracado e as famílias apinhavam-se nas varandas da gare marítima com lenços de acenar, cartazes com o nome do militar, para chamar a atenção, e lágrimas da despedida.

    A tropa, vinda de vários pontos em quantidade suficiente para encher o navio, desfilava de novo, agora em continência perante um alto representante militar, com as senhoras do Movimento Nacional Feminino e da Cruz Vermelha a distribuírem lembranças e mais folhetos sobre o território de destino.

    Chegava o momento do embarque. 
    Subiam-se as escadas e arrumava-se a bagagem junto ao beliche armado nos porões, transformados em casernas. 

    Depois, voltava-se ao convés, lutava-se por um lugar na amurada ou trepava-se aos mastros, para os últimos acenos.

    Por volta do meio-dia, o navio recolhia as escadas e os cabos, a sirene apitava e, durante alguns anos, a instalação sonora tocava a marcha intitulada "Angola é Nossa", independentemente do destino - um ritual abandonado nos anos mais próximos do fim da guerra.

    O navio afastava-se lentamente, virava a proa à foz do Tejo, passava por baixo da ponte e deslizava diante da Torre de Belém.

    A fome já apertava e eram dadas instruções para a primeira refeição abordo. 
    Os oficiais seguiam para a primeira classe, os sargentos para a segunda e os praças para a terceira, Neste caso, e dada a grande quantidade de tropas embarcadas, havia um sistema de self-service. 
    Cada grupo nomeava os seus faxinas, que se aproximavam dos caldeirões, montados à proa e à ré, para receber um tacho de sopa, um de «segundo», o pão e a fruta, que redistribuíam aos seus camaradas, no regresso aos seus postos. 
    Comia-se como num piquenique, sentado no convés.
    Este sistema já funcionava mal com o mar calmo, mas piorava nos dias de tempestade. 
    Nesses dias, os respingos do mar salgavam a comida, os faxinas desequilibravam-se com o balanço, entornando a sopa, e os restos espalhados ajudavam a escorregar os que vinham em sentido contrário. 
    Valia nessas ocasiões o enjoo da maioria, que os tornava menos exigentes na qualidade e quantidade da alimentação.

    A meio da viagem realizavam-se.exercícios de salvamento a bordo, e todo o contingente enfiava o colete salva-vidas e cada um apresentava-se junto à baleeira que lhe estava destinada em caso de naufrágio. 
    Tiravam-se umas fotografias e estava passada mais uma tarde.

    Os dias de calma eram gastos a jogar às cartas e a receber alguma instrução sobre o destino, em que ninguém, verdadeiramente, queria pensar.

    A passagem do Equador fornecia o pretexto para uma cerimónia da praxe e, entretanto, aproximava-se a chegada, que, quase sempre de manhã, era o tempo da curiosidade de África, o tempo de refazer as malas e do desembarque. 

    Nova formatura, agora ao calor, um desfile e um discurso. 
    Depois, a partida para um campo militar, o Grafanil, em Luanda, o Cumeré, em Bissau. Aqueles para quem Moçambique era o destino, prosseguiam viagem de Lourenço Marques para norte, até à Beira, Nacala ou Porto Amélia. 
    A partir daqui, seguiam-se os dois anos da comissão.

    Fonte: Guerra Colonial 1961-1974

    É ilusório pensar-se que África são as lindas paisagens..., por António Encarnação

    António Enc

    É ilusório pensar-se que África são as lindas paisagens.

    Os milhares de fotos de África que circulam nas redes sociais, são a prova, para mim, de que não estamos a entender nada.



    África, são as pessoas.
    Pessoas com quem temos de partilhar e de aprender, ou não, depois de abandonadas as respostas absolutas, os pressupostos garantidos e os figurinos de organização e de desenvolvimento que carregámos na bagagem de vinda.

    Se conhecermos as pessoas, não há mais segredos ou surpresas. 

    Entendemos as casas, as ruas e os países, entendemos a cultura e o desenvolvimento, entendemos o passado e o presente.

    A África, tal como a queremos ver e mostrar, não existe.


    Fui apanhado e têm de levar comigo, por Duarte Pereira


    Fui apanhado e têm de levar comigo.
    Ainda não fui despedido.

    O quinto ano vem a caminho.
    Não sei por quanto mais tempo poderei seguir esta picada.

    Vejam onde põem os pés, as teclas, os comentários, a vossa colaboração.
    Como diz um amigo meu "TUDO TEM UM FIM".

    Dou-lhe razão, mas não tenho pressa para que ele a possa ter.
    Poderá depender de mim e de todos vós.
    Viva o almoço convívio em Coimbra.

    Falem uns com ou outros, apesar que ainda não se conhecerem, passados quarenta e tal anos.
    O convívio é do batalhão.

    Cada vez serão menos.

    Vão tentando conhecer ex-combatentes de outras companhias. 
    Do oficial ao soldado, do cozinheiro ao padeiro, do pintor ao bate chapa e outras especialidades.
    Eu fiquei a conhecer mais alguns, serão poucos, eu sei.

    O convívio anual do batalhão para mim é um "mito". 
    Os mesmos sempre a conviver com os mesmos.

    Escrevi, está escrito.


    Comentários

    segunda-feira, 20 de abril de 2020

    A primeira refeição..., por Paulo Lopes


    Paulo Lopes 


    Como sempre digo, cada coisa que os meus amigos partilham das suas memórias e em relação à primeira refeição na tropa, vem-me logo à moleirinha um pouquinho do meu livro!

    Sem querer massacrar ninguém, sai para a mesa do canto mais umas " letrinhas apenas" do livro:......

    Falando nisso, vamos almoçar...



    Um militar de divisas douradas em pano de fundo verde tropa (fiquei a saber que era 2º sargento) veio chamar-nos à caserna, agora um pouco mais calma e menos conflituosa com a confusão gerada pelo homem/roupa/apetrechos/cama de cima ou de baixo/cacifo esquerdo ou direito:
    — Tudo lá fora, rápido. 
    Vociferou com voz de comando num tom feroz a querer meter-nos medo, como se disso houvesse necessidade, a nós, pobres mancebos que ainda nos tremiam as pernas só de ver o lustroso fardamento que enfeitava a besta feita militar.

    Após reunidos e perfilados na parada à saída da caserna e sem muitos rodeios, pôs-nos a caminhar mais ou menos ordenados em direcção ao refeitório.
    Primeira refeição: Chicharro frito com arroz. 
    Até que do chicharro gostei ou então seria a fome que já fustigava o estômago e resmungava por qualquer ementa, mas o arroz, coitado, parecia feito de um bago só, qual cimento quase seco! 
    Enfim, do mal, o menos, e dava para afugentar a fome que se ia aproximando dos nossos esfomeados esqueletos! 

    Decerto que me esperavam coisas bem piores que um simples arroz mal confeccionado! Digo eu!

    In "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
    Paulo Lopes

    Os trabalhos liquidatários e o adeus a África, por Paulo Lopes


    Paulo Lopes




    Luís Leote, sem te querer massacrar, toma lá a resposta à tua pergunta, extraindo do livro apanhando o final de um capítulo e o início de outro! :-) :-) :





    A partir da Beira, eu, o capitão Salgado e o primeiro sargento, separámos-nos da restante Companhia e iniciámos os nossos (?) trabalhos liquidatários. 




    Por muito estranho que possa parecer, ao despedir-me da restante família que ia tomar rumo às suas casas — verdadeiras casas — cortou-se, como por encanto, o cordão umbilical de tanto tempo, de companheiros de tantas lutas, de tanto sofrer. 
    Parecia que apenas nos tínhamos conhecido numa esplanada de um qualquer café, numa conversa banal e apenas isso! 
    Estranho! 
    Estranhamente estranho! 
    Mas foi isso mesmo que eu vivi nesta despedida! 
    Não sei como teria sido se tivesse ido com todos até Lisboa. 
    Se a forma de despedida seria diferente. 
    Não sei... Também não sei o dia exacto em que eles partiram da Beira para Lisboa pois já estávamos vagueando pelas burocracias da tal liquidatária, passeando com documentos na mão, com total desconhecimento do seu conteúdo e do que fazer com eles. 
    Ainda hoje não sei bem o que eram! 




    Sei que voávamos entre Porto Amélia, Beira, Nampula e Lourenço Marques. Tanto eu como o capitão, pouco ou nada "liquidatávamos", deixando esse soberbo prazer ao primeiro-sargento que, empenhadamente, tratava de toda a papelada! 
    E que papelada! 





    Aqui sim... aqui nestes quartéis e repartições sim... aqui já vi aquelas lustrosas fardas, coloridas com divisas de belo parecer. 
    Aqui já conseguia detectar verdadeiros heróis (da banda desenhada).
    Devidamente fardados e duma apresentação invejável que colocavam o nosso exército numa plataforma de grande representação militar Portuguesa! 
    Altos defensores da pátria. 
    Mas mesmo assim nunca os vi a fazer grande coisa! 
    Azar meu! 

    Chegava sempre na altura do merecido descanso destes bravos combatentes e então via-os nas ruas da cidade, ou a saírem das repartições, nas suas (nossas) luxuosas viaturas conduzidas por escravos feijões verdes a caminho dalguma operação de combate no seio dos seus familiares, que os esperavam na difícil batalha de tirarem as espinhas ao belo peixe assado no forno, cozinhado e servido por outros escravos que trabalhavam nas suas (nossas) luxuosas casas.


    UM ADEUS A ÁFRICA (que nunca foi, não é, nem será minha) 

    Afinal não tinham sido capazes de destruir completamente os sentimentos humanos que tinha trazido comigo quando saí de Lisboa.
    Qualquer coisa de bom ainda tinha ficado dentro de mim: sem saber porquê nem porque não, entrou no meu pensamento — enquanto navegava pelas ruas das diferentes cidades de Moçambique, ainda de camuflado já gasto e calejado encostado à minha pele— uma constante e preocupada pergunta: como é que teria corrido a primeira picada de regresso à Mataca aos nossos substitutos?
    O meu pensamento voou pelo imenso território e transportei o desejo sincero de que tudo tivesse corrido bem!

    Apesar do estado de espírito ser bem diferente daquele que me tinha acompanhado durante largo e vasto tempo, começava a ficar com uma enorme ansiedade no corpo por tanta demora para a definitiva partida.

    Acabaram em princípios de Julho de mil novecentos e setenta e quatro, todos estes trabalhos liquidatários.

    Finalmente, tínhamos viagem marcada para Lisboa: dia vinte e oito de Julho de mil novecentos e setenta e quatro saímos de Nampula com destino à Beira para, no mesmo dia, apanharmos o avião até Lisboa.
    E assim foi... Assim foi mas só para o capitão e o primeiro-sargento.
    Eu fiquei!
    Um engano mecanográfico mantinha-me preso e à espera de nova marcação.
    Mais uns dias de separação do abraço aos meus!
    Mas, dia um de Agosto de mil novecentos e setenta e quatro (o meu verdadeiro vinte e cinco de Abril) saí da Beira com destino a Lisboa: uma lágrima de alegria escorria pela minha face.



    Um adeus a África que nunca foi, não é, nem será, minha!

    In "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"

    VOLTEI A ÁFRICA (4º e último episódio), por Livre Pensador

    Livre Pensador
    16/04/2020
    VOLTEI A ÁFRICA (4º e último episódio)

    A ilha do Príncipe está situada a cerca de 170 km da ilha de S.Tomé, ou seja, a quase 30 minutos de avião. 

    Tem uma população aproximada de 7000 habitantes e a capital, Santo António que tem cerca de 1200 habitantes é considerada a capital mais pequena do mundo. 



    Toda a ilha está coberta por selva tropical o que nos transporta à sensação de estar na África genuína.



    Por exemplo, a energia eléctrica só funciona entre as 6 e as 24 horas. 

    Também lá imperaram as roças como motor da economia, mas que actualmente estão desactivadas na sua maioria, restando uma ou outra adaptadas ao turismo. 

    As suas praias são espectaculares, ainda mais belas que em S. Tomé, mas com as mesmas dificuldades de acesso, como é o caso da Praia Banana, Praia Boi, Praia Grande e outras. 



    Dispõe ainda de bonitas cascatas (cascata do Rio Baixarel, cascata Oquê Pipi, etc.), cujos acessos só são possíveis por trilhos percorridos através da selva. 

    A maior atracção turística da ilha do Príncipe é, sem dúvida, a visita à Praia Grande onde se pode observar a desova e/ou eclosão das tartarugas. 


    A desova verifica-se entre Setembro e Fevereiro, e a eclosão nos meses de Novembro a Abril. 
    Este "fenómeno" na praia é controlado dia e noite por vigilantes da natureza, funcionários da Associação das Tartarugas Marinhas. 
    Sempre que uma tartaruga põe os seus ovos na praia, num buraco que escava e que atinge 40 cm de profundidade, é espetada uma estaca numerada na areia, a indicar o local da desova. 
    Assim, controlam a data da desova, bem como a data em que acontecerá a eclosão. 



    A Praia Grande tinha desde Setembro de 2019 até ao dia 21 de Março de 2020 "apenas" 994 ninhos de ovos. 
    Todos os dias nascem tartarugas de um ou mais ninhos. 
    Assim que saem do solo, com apenas 6 cm de comprimento, caminham apressadamente para o mar. 
    De quando em vez param por poucos segundos. 
    É para memorizarem o local onde nasceram, segundo explicou o vigilante, e acrescentou: daqui por 20 a 25 anos voltam a esta mesma praia para desovar!!! 

    Que maravilha que é a Mãe Natureza!!! (fim)