Recordações da guerra - Moçambique (1970-1972), Nangade
Poucos dias depois da operação de Tartibo, fui visitar os trabalhos em Nangade.
Tartibo, pequeno estacionamento militar no alto das margens do Rovuma, fôra a minha última missão.
Cada vez que chegava a época das chuvas a companhia que estava estacionada lá em baixo a pouca distância das margens do rio, era literalmente submergida pela enorme cheia, obrigada a dormir no alto das árvores e a passar as rações de combate por um sistema de cordas. Era, compreende-se, uma situação insustentável e a exigir uma nova localização e um outro estacionamento para a desgraçada companhia que lá ia ficar.
Foi o que fez o meu pelotão.
Ainda me lembro da minha ânsia em me refrescar quando chegámos ao Rovuma, depois de um penoso, poeirento e matagalento percurso desde Mueda.
Precipitei-me, todo vestido, botas e tudo, para uma pequena lagoa no meio de descomplexadas gargalhadas dos “ mainatos “.
“Porque é que te estás a rir, meu malandro ?
“crocodili alferi, crocodili” e riam-se a bandeiras despregadas.
Na altura não achei piada, como também não achei piada à sessão de certeira morteirada com que foi brindada a partida da engenharia depois do trabalho concluído.
O meu recente amigo, professor de filosofia na vida civil e então capitão miliciano da companhia de caçadores que lá ficou, também não.
Nangade só se parecia com Tartibo pela proximidade do grande rio.
Aldeamento relativamente importante, no alto de um planalto, rodeado e semeado de cajueiros, era limpo, bem administrado e sede de um batalhão.
Lá a guerra parecia longe e era quase como que um descanso para a tropa de engenharia ali destacada.
De Nangade só tenho boas recordações, começando pelo “meu“ comandante, grande senhor, oficial de cavalaria, culto, de invulgar competência e com particular simpatia pela engenharia.
“Ó António” dizia ele para o cozinheiro, com a sua careca vermelha e escorrendo suor “este caril não está suficientemente picante aqui para o nosso alferes...” e olhava para mim sorrindo amigavelmente.
E (como posso esquecer?) aquela visita que um dia recebi de outro oficial superior de outra arma vindo de Nampula, que não percebia nada de nada e, ainda menos, as minhas reservas quanto à utilização da pista, por nós recém-construída, para aviões Noratlas.
“Compactação? Compactação? Que não está em condições? Isto está bom, isto está bom”, exclamava ele convicto depois de bater com a bota no chão, como se aquele bater de bota fosse equivalente ao impacto de uma aterragem de mais de 15 toneladas...
Foi, pois, com prazer que um dia voltei a levantar vôo de Mueda em direcção a Nangade.
Ia com o meu amigo de infância André, piloto da força aérea e que, depois de tantos perigos e missões arriscadas na fronteira Norte de Moçambique, morreu tragicamente num naufrágio aqui, perto de Peniche.
“Olha” disse-me ele “hoje não vens ao meu lado.
Isto está a abarrotar com tudo e mais alguma coisa.
Vais atrás de mim, ali em cima dos sacos de batatas”.
“Está bem”.
E a DO levantou, mas não como era hábito, levantou em parafuso, na vertical.
“Recebemos informações.
Isto hoje não está bom, os gajos estão lá em baixo e mais vale nós irmos alto, muito alto”.
“Está bem” e olhava lá para baixo para Mueda que, felizmente, se afastava cada vez mais.
Ficava tudo o que eu conhecia estranhamente pequeníssimo.
Era uma sensação algo desagradável, nada que se parecesse com os inebriantes vôos que tinha feito de heli escoltado por dois T6, quase lado a lado e a rasar a copa das árvores.
E subimos, subimos na vertical até o André achar que já era seguro e, depois, rumo a Norte.
Chegámos àquilo que para mim era um oásis.
“Os gajos estavam lá” disse-me ele inspeccionando a fuselagem e ao meu olhar interrogativo respondeu apontando para um buraco de bala na barriga do nosso aviãozito.
“Cá está” e riu-se.
Eu menos, era mesmo por de baixo do saco de batatas onde eu viera sentado.
”Ó António, hoje o caril tem que estar muito picante... ver se animamos aqui o nosso alferes”, exclamou o "meu" comandante quando soube da ocorrência.
Pois.