sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Ainda a história do macaco à caçadora..., por vários

Velhas DE Estremoz Alentejanas
(Duarte Pereira)

Há uns anos atrás

Boa tarde senhoras e senhoras.

Poucos nos conhecerão.

Fomos e seremos " a voz incómoda deste Batalhão".

Fomos " militantes" deste Grupo.
Estivemos, saímos e voltamos a entrar uma série de vezes.

Só hoje tivemos o prazer de ler este texto do compadre. Fernando Afonso.
Fernando Afonso 17 de Janeiro de 2018 22:14
Para mim a guerra terminou em Março de 74.
Procuro não falar muito desses tempos.
As minhas memórias estão bem arrumadas na gaveta.
Vivo tranquilo e feliz.
Um abraço.
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O que nos oferece dizer sobre o mesmo ?
Muitas "situações" deverão ser esquecidas, mas outras deveriam ser relembradas.
Exemplos:
Históricas pitorescas que terão ficado na memória.

Na Mataca : O padre foi convidado para um "divinal" almoço que foi " macaco".

Um furriel ? foi o mentor .
Quem terá sido? recorda-se? .

Fernando Afonso, sabemos que não foi o compadre, mas estaria lá para recordar este famoso almoço?
Recorda esta "Autoestrada"?


Armando Guterres No célebre almoço - também não estava eu.

Paulo Lopes Um pouco extenso (aliás, gostaria de transcrever um pouco mais para trás para ficarem bem melhor elucidados) mas, para quem quiser ou estiver interessado conhecer um pouco desta "história" do divinal e eclesiástico almoço, aqui fica:

.................................................... Chegados ao aquartelamento, o F......, com a nossa participação e conivência, continuou com o seu projecto, dando a conhecer a todos os graduados que se tinha apanhado dois coelhos para se fazer um petisco. 
Os bichos foram entregues ao primeiro-sargento que de imediato entrou na paródia, para que este, exímio cozinheiro de patuscadas —notava-se que gostava de comer a avaliar pela sua formosa barriga, tendo em conta que gordura é formosura— fizesse um belo coelho à caçadora.Entretanto fomos dando dois dedos de conversa com o capitão capelão. Dava perfeitamente para entender que era um homem de não tiranizar ninguém nem tão pouco apresentar a força divina com a sua força de galões de capitão.Tinha uma candura ingénua de jovem eclesiástico não tendo, no entanto, a boca constantemente cheia de milagres. Sabia bem o que estava a fazer e qual a sua missão: era apenas um pastor de ovelhas fardadas e sabia que, naquele local de cheiro a guerra, nem todos acreditavam nas suas palavras. Eu, pelo que me diz respeito, apenas ponho em causa o seguinte e que não consigo compreender muito bem: se do outro lado da guerra, dos que teimosamente tinham o cognome de turras, existe outro qualquer padre, pedindo ao mesmo Deus exactamente a mesma protecção para os seus homens, como é que o bom Deus iria resolver esta questão? Que lado ele defenderá? Que homens mereciam a sua salvação? Será que conseguirá terminar o conflito entre as partes terrestres? 
Pelo menos, até agora, não conseguiu pôr termo à ganância dos poderosos que, aliás, a grande maioria deles, se não todos, são muito dados a essas bênçãos do Céu, quando mostram o lado falso da sua face oferecendo este mundo e o outro aos altos eclesiásticos! Será que até ao bom Deus eles conseguem enganar? 

E lá fomos conversando. Laracha daqui, laracha dali, até que veio a ordem para início da festa: —O petisco está pronto! 

Todos os graduados, sem excepção, nem mesmo os sabedores do que estava dentro das travessas pronto a ser servido, se fizeram rogados aos pretensos coelhos! Estranhamente ninguém se lembrou que, coelhos, e desconheço a razão, foi animal que nunca foi visto em todo o enorme palmilhar que fizemos ao longo de toda aquela selva, provavelmente porque, se alguma vez existiram, pela sua fraqueza defensiva, depressa foram dizimados e extintos pela enorme quantidade de animais esfomeados, de tais apetitosas presas, que abundavam naquelas matas!!! 
O certo é que todos comeram alegremente e os comentários fugiam sempre para os mesmos adjectivos: 
— Maravilhoso. 
— Delicioso manjar. 
— Ricos coelhos. 
— Divinal. 
— Porra que esta merda está boa! 

O F........, como era hábito nas chegadas das operações, já não estava com todos os seus sentidos a trabalhar em pleno. 
Ria a bom rir, gozando deliciosamente a sua partida mas, tal como todos os outros, encharcava o pão no delicioso molho de macaco à caçadora! Não sobrou nada! Se mais houvesse, mais iria! O pior veio a seguir: na continuação da sua maquiavélica construção, o F........ saiu da mesa e apareceu um pouco depois com uma bandeja onde trazia, não uma qualquer sobremesa para terminar a patuscada, mas sim, as cabeças dos desgraçados macacos! E para colocar um pouco mais de pimenta no seu cenário, só por si, bastante elucidativo, uma das cabeças vinha com um cigarro aceso na boca como que a gozar o espectáculo que se seguiria: Os sabedores do que tinham estado a comer, riam-se às gargalhadas. Os outros, que pensavam ter acabado de se deliciarem com coelho, depressa transformaram essa guloseima em mau estar. Sofreram um impacto digestivo que, não fosse o restaurante ter um parque de estacionamento do tamanho do mundo e não haveria lavabos que chegassem para tanto vomitar! A maior vítima foi o capelão que, coitado, enquanto ficou na Mataca ,o que durou até à chegada do táxi aéreo das quartas-feiras, não conseguiu comer nada que se pudesse chamar realmente de comer! Tudo vomitava! 
Espero que nos tenha perdoado e nos mantenha nas suas orações diárias que, presumo, as tenha e esqueça esta pequena maldade praticada por este seu rebanho de lobos com pele de cordeiros (ou será que é ao contrário?!!!). 
........................................
in "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
paulo lopes


Fernando Afonso Vamos lá então relembrar. No final de uma operação fizemos uma paragem nas imediações do aquartelamento fazendo tempo para entrar (só entrávamos no fim do dia). De repente fomos visitados por um bando de macacos fazendo acrobacias nas árvores por cima das nossas cabeças. Surgiu então a ideia de alguém e prontamente corroborada pelo Capitão Salgado, de matarmos 2 macacos. E assim foi de facto. resto da história é como o Paulo Lopes diz contudo tem uma imprecisão. Quando entrámos no aquartelamento eu próprio avisei o Paulo do que iria acontecer porque ele tinha na altura alguns problemas de estômago. Eu e ele fomos talvez os únicos que não comemos. Na altura estava lá também o médico que comeu sem problemas. O padre é que passou mal de facto. 
Geri




Fernando Afonso Já agora e para ser mais preciso devo dizer foi um jantar e não almoço.

 Não consigo dizer com precisão mas não me ademinaria nada que a ideia fosse do Ferreira 

( conhecido entre nós por LONTRA ).

Paulo Lopes Viva Fernando Afonso! Tudo bem contigo amigo?

Conforme já diversas vezes informei por aqui e para que não ficassem algumas dúvidas, o livro que escrevi, não o fiz com o intuito de ser um diário mas sim um romance que, não tendo as devidas e correctas acções dos factos (até porque não me recordava exactamente de tudo), tentei dar-lhe uma parte de ficção sem, no entanto, lhes alterar o essencial das questões por que passámos. 

Os diálogos teriam que ser inventados mas dentro do contexto, as histórias terão, forçosamente, que ter imprecisões mas aproximam-se. 
Por isso também já por aqui disse que foi pena não ter conhecimento desta página porque, com ela, e nas diversas conversas, avivei a memória e tive conhecimento de situações que me passaram ao lado mas que ficariam bem "encaixadas" no dito livro. Assim como, e exactamente como este capitulo, me alertaste e bem, para factos mais correctos da verdadeira história. 

Fico-te grato pela tua correcção e que, também, elucidará melhor os que queiram saber algo da nossa "história".

Quanto ao mentor deste "filme" e disso tenho a certeza, foi o nosso amigo e sempre bem disposto Ferreira (Lontra). 
Só não coloquei o nome no livro, como o não fiz com os nomes de todos os nossos camaradas (excepto o meu) com quem convivemos estas passagens da nossa vida porque não estava devidamente autorizado para o fazer.

Obrigado pela tua correcção amigo.

Aquele abraço e, por favor, se leres mais alguma coisa extraída do livro e que eu coloque por aqui, se tiveres memória, "arrefinfa-lhe" a correcção.

Gerir




Velhas DE Estremoz Alentejanas Compadre Jose Augusto Palminha - O compadre também " macacou" ? 
Fernando Afonso Evidentemente que a 45 anos de distância é natural que algumas imprecisões possam surgir. A minha intenção foi apenas e só aproximar mais a história da realidade. Como já disse as minhas memórias da guerra estão guardadas e ao longo destes anos raramente falo delas. Claro que nunca se podem apagar mas evito falar. A vida continuou. Estou bem comigo e espero que todos vós também. Um abraço.
Gerir




Paulo Lopes E que continues sempre bem Fernando Afonso, feliz e de saúde é o que te desejo meu amigo. E não julgues que tive quaisquer pensamento menos próprio pela tua correcção! Como disse, e estou a ser sincero, agradeço todas essas correcções, muito úteis e esclarecedoras, para um melhor entendimento dos factos. E não foi 45 anos depois que eu escrevi o livro. Escrevi-o há mais de dez anos mas, como te disse, não é um diário nem foi escrito como tal. Apesar de não quereres trazer para fora dessas tuas "gavetas" onde guardas as memórias, por vezes faz bem "arejar" as coisas guardadas! Aquele abraço Fernando Afonso e não deixes de aparecer por aqui,
Gerir


Fernando Afonso Aproveito para vos comunicar que o nosso amigo furriel enfermeiro 

Lourenço está internado há cerca de um mês no hospital. 

A situação é complicada. 

Ontem foi transferido para uma unidade de cuidados continuados em Idanha a Nova.

Paulo Lopes Isso é que é uma má notícia!


Paulo Lopes Se te for possível amigo Fernando Afonso, vai-nos mantendo informados.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

A Escolha Satânica, por Manuel Bastos, apresentado por José Leitão

A ESCOLHA SATÂNICA de Manuel Bastos
Eu? 
Eu estou bem. 
Só quando passa o efeito dos remédios é que a vida parece um lugar onde não se pode estar.
Estou cheio de cicatrizes, furriel, cicatrizes por dentro, das que não saram.

E você furriel? 
Como estão as suas cicatrizes? 
Não tenha vergonha das suas cicatrizes furriel, elas são a prova de que corremos riscos; e viver é correr riscos. 
Uns ganham ou perdem, outros nem uma coisa nem outra, porque não correm riscos. 

Eu não estou doente da cabeça furriel, eu tenho saudades. 
Tenho saudades da guerra. 
Lá, quando as coisas corriam mal, a gente trocava-lhes as voltas, a gente atacava os gajos pelos flancos. 
Com o tempo aprendemos a resolver os problemas à porrada. 
Pró fim até sabia bem quando tínhamos que dar uns tiritos. 

Você esteve lá pouco tempo…
Está bem: Tu!
Estiveste lá pouco tempo, e às vezes penso que tiveste sorte. 
Ficaste sem uma perna, não é pêra doce, mas há coisas piores furriel…

Ok, ok: Bastos!
Acho que aquilo deu cabo de mim.
Fiquei amputado por dentro. 
Mas ainda não inventaram uma prótese para esta amputação. 
Atafulham-me com remédios e eu fico meio grogue; e depois que se lixe, fico a voar baixinho.
Isto aqui é assim. 
Um dia puxa o outro. 
Começa devagar e vai acelerando, acelerando, e no final do dia, pumba! 
Uma carrada de comprimidos e eu fico sem sentir nada; nem mau, nem bom.

É por isso que às vezes me lembro que se ao menos pudesse trocar as voltas a isto, atacar pelos flancos. 
- Ai é? 
Vocês estão aí emboscados à nossa espera? 
E nós atrás deles pelo capim fora, lembra-se ó furriel... ó Bastos, lembras-te? 
Nesse dia não tiraste fotografias. 
Estavas mais branco que a cal da parede. 
Mas os gajos fugiram, e no mato quem é que apanha aqueles gajos? 
Nem pensar.

Depois, no Chindorilho, foste ferido. 
E tu a dizeres que nunca mais jogavas à bola. 
Às vezes penso nisso e apetece-me rir… 
Tu nunca jogaste à bola, foste sempre um nabo. 
Mas na altura até me vieram as lágrimas aos olhos. 
"Nunca mais jogo à bola."
Dizias tu para o enfermeiro Costa.

Mas nós ficámos lá, percebes? 
Aquilo parecia que não tinha mais fim. 
Aquilo mexe com um gajo, Manel. 
O pessoal aqui não sabe. 
E a malta nova então? 
Às vezes começo a falar sobre estas coisas e a Zulmira olha para a filha, a filha olha para ela, e passado um bocado já nem me ouvem. 
Eu calo-me, e elas nem notam que eu não acabei a história.
Deve ser uma chatice ouvir um gajo falar destas coisas. 
Nós é que sabemos como aquilo foi, não é?
Até eu acabei por ficar cansado de me ouvir. 
Ouço os meus pensamentos, percebes? 
Estou cansado.
Estou farto de ser eu. 
Queria despir-me de mim como quem tira um casaco usado de mais. 
E ficar nu, livre de mim. 
E depois, quem sabe, sendo outro, ter esperança de novo. 
Ilusão de novo ao menos.
Estou cansado. 

A cada dia que passa parece que acabei uma grande viagem, mas que logo tenho que partir. 
Tenho um relógio dentro de mim que não pára, um carrossel fantasma sem um único passageiro, que gira, gira, e não vai a lado nenhum.
Mal fecho a pestana, logo me voltam os pesadelos. 
Para onde foram os meus sonhos é que eu não sei. 
Mal me deito para dormir vejo logo um milhão de olhos a acusarem-me, sem eu saber de quê. 
Pessoas e sombras. 
Mas as sombras são muito mais que as pessoas.

Não me olhes assim sem dizer nada. 
Tinhas sempre uma palavra pronta para dizer, uma piada. 
Mesmo quando as coisas não eram para piadas.
Metia-te confusão quando me vias escrever sem pôr as cartas no correio, não era? 
E tu: - Hás-de arranjar inspiração antes da guerra acabar!

Acho que nessa altura já me incomodavam os meus pensamentos, e precisava de os pôr cá para fora. Punha-os no papel e pronto, ficava mais sossegado. 
O que é que um homem que anda a brincar com a morte diz à mulher que deixou em casa? 
Ela queria ir para França, e eu: - Nem sou homem nem sou nada...

Mas mal pus os pés em Mueda vi logo que devia ter dado à sola em vez de me armar em parvo. 
Você é que levava aquilo a sério furriel… 
Manel, levavas aquilo a sério, pelo menos no princípio, porque depois começaste a abandalhar e a tirar fotografias a tudo, até nos golpes-de-mão.

A Zulmira diz que agora falas contra a guerra. 
Aquilo muda a gente não é?
Foi lentamente ou aconteceu alguma coisa que nos deu a volta? 
Sei que aconteceu alguma coisa, mas não me lembro do que foi. 
Sei que me esqueci, mas como se tivesse acabado de pensar nisso um minuto antes, e logo me fugisse a ideia. 
É como se me tivessem amputado tal como te amputaram a ti. 
Falta-me esse bocado. 
O lugar onde estava essa lembrança de que não me consigo lembrar. 
E sabes lá como isso me incomoda? 
É um pesadelo.

Quando voltares, pede à Zulmira… não, não, talvez seja melhor pedires à minha filha. 
Pede-lhe que me traga fruta, ou flores, ou um livro. 
Algo que me traga algum afecto.
Acho que as assusta este lugar. 
Da primeira vez que aqui estive, vinham todas as semanas ver-me. 
Agora ainda vêm, mas menos.

Sabes como era às vezes, quando íamos pró mato? 
Aquela impressão de que as coisas iam correr mal? 
É o que sinto agora todos os dias.
Parece que ainda te estou a ver a fazer desenhos com um pauzito na areia da picada. 

Eu com a ideia que havia um muro enorme à nossa frente. 
Ou então um precipício. 
Algo que não deixaria a gente sair dali.
Agora, ao pensar nisso, iria jurar que não se ouvia nada. 
Havia um grande silêncio. 
Aquele silêncio que ouvimos quando morre alguém. 
O silêncio de a vida se ter tornado um lugar onde não se pode estar.

Levei tempo a perceber. 
Só havia lugar para dois no helicóptero. 
Eu só pensava: 
- A esta hora da tarde o que ficar vai morrer.

Nem me recordo da emboscada. 
Atirei-me para baixo da Berliet e deixei-me lá estar. 
De vez em quando dava um tiro, mas o capim não deixava ver ninguém. 
O alferes mais uns cinco gajos atacaram os turras pelo flanco esquerdo e eles fugiram. 
Resultado: três feridos graves. 

Depois o furriel... tu... ficaste a fazer riscos no chão como se estivesses a chorar.
Eu perguntei: - Quem é que vai ficar, furriel?
Olhaste para mim como se eu estivesse a falar chinês e passado muito tempo disseste: - Sei lá. Ou o que tiver mais hipóteses de aguentar a noite toda ou o que não tiver hipóteses nenhumas.

Depois continuaste a rabiscar com o pauzito no chão como se estivesses a calcular as hipóteses. 
Há muitas maneiras de chorar.

Lembro-me tão bem de todas as coisas que não têm interesse nenhum e não me lembro nada do que foi realmente importante. 

Qual deles ficou? 
Será que foi porque aconteceram muitas coisas depois disso que já não me lembro? 
É muito estranho que não me lembre. 
Quem decidiu qual deles deveria morrer? 
Quem foi que fez o papel de Deus? 
Como se pode viver depois de uma escolha dessas? 
Uma escolha tão danada que se apagou da minha cabeça.
A verdade é que se me apagaram muitas coisas na minha cabeça. 
Não sei ao certo se seria melhor conseguir lembrar-me, mas pelo menos teria mais descanso. 
Perco noites a tentar recordar-me de uma coisa e depois já nem me lembro a que propósito é que me queria recordar.
É como se eu me tivesse esquecido para não ter que fazer luto. 
A vida é assim, não é furriel? 
Todo o afecto acaba em luto.
Que foi que me aconteceu, furriel? 
Tu estiveste lá pouco tempo.... mas aconteceu alguma coisa importante, muito importante. 
Muito importante de mais...

Sabes o que penso? 
Penso que nas guerras Deus mete dispensa e quem fica a mandar é o Diabo.
Depois, Deus quer voltar de novo ao activo mas o Diabo não deixa. 
Pelo menos comigo é assim, furriel. 
Ainda tenho o Diabo no activo.
Por isso é que eu não posso escolher, não posso decidir o que faço à minha vida. 
Não se pode escolher, quando é o Diabo que está a mandar.

Também deste opinião? 
Atiraram a moeda ao ar? 
Ou fizeram Pim pam pum! 
Cada bola mata um... e depois... ficou um ao calhas? 
Um escolhido pelo Diabo.

Também se te varreu isso da cabeça, ou consegues atirar tudo para trás das costas.
 "Atira isso pra trás das costas." 

Diz a Zulmira para mim, como se fosse possível atirar uma guerra inteira para trás das costas. 
Eu bem quero esquecer, mas o que quero esquecer não esqueço e aquilo de que me quero lembrar não me lembro. 
"Tens que ter coragem." Diz ela. 
Coragem... As pessoas acham que isto é falta de coragem. 
Isto são saudades. 
Não saudades da guerra, Manel. 
Saudades de mim nessa altura. 
Saudades de quando eu era outro e tinha medo e coragem e era tudo nítido. 
Agora não sinto nada, está tudo embaçado, e eu sou um casaco velho que não consigo despir.

Quando andavas de máquina fotográfica na mão em vez da G3, era por falta de coragem, era? 
Eu bem vi. 
Aquilo começou a mexer contigo. 
Foi ou não foi? 
Ficavas lá mais uns tempos e vinhas pior que eu.

Fala com a minha filha, pede-lhe que me traga flores. 
Que me traga alguma coisa que me faça sentir que a vida é novamente um lugar onde se pode estar.

Sabes? Acho que devia ter ficado em África. 
Quer dizer, acho que devia ter morrido lá. 
Pensei assim muita vez: se voltar nunca mais serei o mesmo; nada será o mesmo. 
Nunca mais. 
Se ficar aqui, ao menos as pessoas que gostam de mim vão recordar-me como eu era. 
Como eu era quando ainda gostavam de mim.

Antes de Deus ter metido dispensa e o Diabo ter ficado no activo.

Olha, ela que não me traga flores, Bastos, as flores também morrem.
MANUEL BASTOS
In Cacimbo.