sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

QUANDO UM ATAQUE (De morteiro) SE TRANSFORMA EM REGOZIJO, por Paulo Lopes

Paulo Lopes
 
Tal como prometi e pedi desculpa ao nosso estimado amigo Rui Briote pela antecipação, aqui vai o meu documento para desespero de alguns críticos escondidos que não gostam de partilhar as "desventuras"!
 
QUANDO UM ATAQUE
(De morteiro)
SE TRANSFORMA EM REGOZIJO
 
Quarta-feira, dia 8 de Agosto de 1973.
 
Estava na hora, mais minuto menos minuto, dos nossos olhos não darem tréguas ao horizonte possível tentando avistar a silhueta do avião milagroso que colocava sorrisos nos nossos rostos ansiosos de carinhos concentrados nos envelopes.
Tudo pronto.
 
 
 
Segurança habitual na pista com os homens destacados metidos nas extremidades junto ao inicio da densa floresta.
Pessoal a postos para retirar o conteúdo do avião (principalmente o saco do correio).
 
Ele ai estava.
Ainda a uma distancia longa mas já de possível visão lá vinha ele em direção a nós.
 
Passou uma vez.
Bandeira verde desfraldada —sinal significativo de que tudo na pista estava apto para a aterragem— O piloto fez uma segunda passagem por cima de nós antes de se fazer à pista, o que não era normal. Estranhamos.
 
A avioneta ainda tinha os seus pequenos motores a funcionar quando começamos a ouvir, ao longe, o ruido característico e bem conhecido dos nossos já experimentados e alertados ouvidos: a saída do disparo de morteiros.
 
 
 
Os rebentamentos não tardaram.
As granadas de morteiro, que eram sempre disparadas a longa distancia, como estávamos situados num planalto, a visão de quem disparava não daria grande exatidão do local da queda destas, não só devido a tal exagerada distancia entre nós e o local de proveniência dos disparos como também a visibilidade que era quase nula a meia-dúzia de metros, deixando antever o que seria a distancias muito mais extensas.
Por isso como sempre ou quase sempre, caiam a cerca de um quilometro o que também, como sempre ou quase sempre, fez com que não nos mostrássemos muito preocupados com a situação apostando na sorte e esperando que desta vez não fosse diferente de outras.
 
Os homens lançaram-se à descarga do avião!
Surpresa!
A resposta à nossa estranheza da anormal segunda passagem do piloto vinha dentro do avião: o nosso comandante do batalhão!
 
A segunda passagem pela pista deveria ser uma tentativa de aviso por parte do piloto à qual nos não demos devida atenção e compreensão a esse sinal codificado.
Apenas deveria querer dizer: Portem-se bem que temos graúdos a bordo!
 
Tarde piou e como o portarem-se bem incluía o devidamente fardado... escrita borrada!
 
A demonstrada passividade e indiferença aos, para nós "mataquenses", rebentamentos que deflagravam ainda bem longe da pista, foi a pincelada final para tamanha borradela na pintura.
 
Desconheceu-se qual a razão de tão ilustre visita a estas paragens do fim do mundo povoadas por seres com parecenças de militares —esquecidos para umas coisas, lembrados para outras— sem um aviso prévio e formal para um recebimento condigno duma alta esfera do nosso exercito!
 
Provavelmente, e aposto fortemente nessa hipótese, vinha apenas de passagem e a caminho de Macomia!
 
O certo é que o homenzinho nem pôs os pês em terra firme!
 
Foi descarregar o material de qualquer forma e ai vai ele pista fora, tomar balanço e até quarta-feira se isso for possível!
 
E não foi pelo piloto que tamanha pressa foi ordenada!
Nem sei como foi possível ou autorizada a descarga do material!!!
 
Então, aquele súbito ataque longínquo de granadas de morteiro que deveria ter sido tomado como uma preocupação, transformou-se num completo regozijo!
Toda a minha gente ria a desgarradas gargalhadas e mesmo aqueles que porventura não tivessem achado graça, contagiados pelo ambiente, foram forçados a espalhar também os seus sorrisos!
 
Se, por acaso, os que há minutos atrás nos estavam a oferendar as morteiradas nos ouvissem em tal risota e pensassem que era pelo facto da tentativa de ataque ser tao frustrada, ficavam de tal forma envergonhados que nunca mais pegavam num morteiro!
 
Nunca o comandante do batalhão deve ter tido tão grande oferta de diversificados títulos do reino animal num monologo de intensa cultura!
A quem nós, meninos inexperientes da guerra, estávamos entregues!
 
O pior veio depois, e principalmente para o capitão, que ainda não deveria estar sossegadamente sentado a rasgar os envelopes das cartas com a emoção habitual e comum em todos, fazendo esse ritual como se fosse sempre a primeira carta que recebíamos e já o comandante do batalhão estava, via radio, a dar-lhe nas orelhas!
 
 
Terminada a leitura das apetecíveis cartas viessem elas de quem viessem, fomos saber das outras novidades, as mais próximas, as do fugitivo.
Então contou-nos o capitão que o homem lhe disse que estávamos mal instruídos.
Que existia entre nós uma total indisciplina de combate.
Uma completa anarquia imperdoável a quem tinha deveres militares.
Fardados duma forma mais propicia para um bando de foragidos e que mais assim e que também e ...
 
Terminou a conversa com um encolher de ombros e nós também não nos preocupamos muito com o assunto.
 
É capaz de ter razão, o senhor!
O que nós deveríamos fazer era seguir o exemplo dele e ao primeiro tiro fugirmos... de avião e para a nossa terra.
Para a nossa família.
Para fora daquela miserável vida a que este e outros senhores nos obrigaram e que agora e sempre nos criticaram e caluniaram.
 
in "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
 
 
paulo lopes

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