O Cachicha (Soldado GE, Maconde)- Memórias da Guerra Colonial
Por Manuel Neves Silva-Furriel
Miliciano GE
Todos os soldados do meu Grupo
Especial (GE) eram macuas muçulmanos, á excepção de dois que eram macondes e católicos,
o Cachicha e o Chitapata. Esqueci-me completamente do nome do primeiro e se
agora ainda a minha memória o chama de Cachicha é culpa minha, assumidamente
minha porque o nicknomeei assim
mesmo, de Cachicha. E à força do hábito e facilitismo de assim o chamar, este
nome virou verdade, o outro ficou esquecido.
Ele, o Cachicha era de estatura
baixa, afável, sempre com um sorriso na sua cara tatuada e de dentes afiados.
Do seu uniforme camuflado apenas o quico lhe enchia a cabeça, o resto, calças e
camisa sobravam muito para além da altura breve do seu corpo. Aceitou
prontamente a alcunha, imposta como castigo, por querer partilhar sempre uma
das minhas latas de salsicha, uma das poucas viandas que se tragavam na ração
de combate para além da sardinha portuguesa e da enlatada carne de vaca” Fray Bentos” made in South África.
O Cachicha, maconde e como tal
“católico”, não tinha problemas em comer carne de porco. Os outos macuas islamizados
dispensavam o pecado por respeito a Alá, embora outro tanto não fizessem em
relação à cerveja, quando esta aparecia no pacote. Este pecado do álcool,
talvez Alá tolerasse. Talvez, por ser um pecado mais líquido, mais fluido,
menos encorpado, mais evaporável. As salsichas eram sólidas, de aspecto fálico
e eram mesmo o pecado da carne, da carne do sujo porco.
Era comum entre macuas e macondes
a troca de latas de sardinha por latas de salsicha, cambio sempre inflacionado
a desfavor dos macuas. A Manutenção Militar do Exército nunca teve em conta a confecção
das rações de combate em função da religião destes soldados. Eles como não
comiam as pecaminosas salsichas, ou as deitavam fora ou teriam de aceitar o
preço de troca imposto pelos macondes que geralmente só abriam mão de uma de
sardinha em troca de duas ou até três de salsicha.
O Cachicha gostava de comer. De tudo comia na
ração de combate. Seus dentes afiados de maconde davam-lhe todas as vantagens
nessa tarefa. E mesmo depois de barganhar aos seus camaradas macuas duas ou
três latas de salsicha, por apenas uma de sardinha, quase sempre abeirava-se de
mim com o mesmo discurso: Siliva, nosso pai, anipe cachicha moja.
Depois de tantas vivências de
tantos perigos partilhados, de tantos minutos com estatuto de horas, de tantas
esperanças de que o pior não iria acontecer e que o melhor estaria sempre para chegar,
eu já entendia a outra língua, para eles mais espontânea, mais corrida, mais natural.
Neste crioulo suaíli-macua-português, eu o Silva que me orgulhava de
ser tratado de pai por todos eles, macuas e macondes, acabei por entender: Silva,
nosso pai dá-me uma lata de salsicha. Deste saboroso crioulo e do
engraçado modo como corrompia a palavra salsicha, e ainda porque o seu original
nome maconde se tornava difícil ao meu chamamento, assim mesmo o renomeei: Cachicha.
O Cachicha aceitou. E Cachicha ficou
“oficialmente” a ser Cachicha.
Cachicha, digo-te que hoje eu já não sei se recordo a
guerra, ou já recordo as recordações da guerra. Na minha memória há uma linha
ténue onde se misturam e confundem as vivências passadas com os pesadelos presentes.
Nessa bruma esbatida ainda te revejo camuflado na tua demasiada farda, de G3
aperrada ao peito de olhos e ouvidos sempre em alerta.
Cachicha gostava de ver-te, de
abraçar-te, de falar contigo em Suaíli ou português. Sei que a vossa esperança
de vida aí em Moçambique é curta, e tu eras bem mais “kokuana” do que eu.
Possivelmente já por aí não estás, mas onde quer que te encontres quero
deixar-te um abraço e manifestar-te a minha gratidão. Gratidão pelas vezes que
me salvaste a vida com os conselhos e avisos de quem sabia de cor cada palmo
dessa terra, porque nela nasceste, cresceste e te fizeste soldado, talvez no
lado errado da guerra se é que essa guerra teve algum lado certo. Foram os anos
onde os jovens do meu e do teu país morriam e matavam por razões que nem eu
sentia, nem tu entendias.
Bem hajas Grande Cachicha! Tenho “maningue” saudades vossas.
Manuel Neves Silva
-Furriel Miliciano GE
-MEMÓRIAS DA GUERRA COLONIAL
-Furriel Miliciano GE
-MEMÓRIAS DA GUERRA COLONIAL
Manuel Neves Silva carregou um ficheiro.
Penso que já publiquei este meu texto sobre as minhas vivências da guerra.
Se assim for ,volto a postá-lo de novo e dedico ao Duilio Caleca, que partilhou comigo a célebre coluna de Nangololo e tb ao Jose Monteiro, que passou por Mueda antes de mim, camaradas que conheci há uns meses atrás num restaurante de Lisboa.
Dedico de igual modo a todos os elementos do Picadas.
Muito bom...Escreves bem. Obrigado por partilhares as tuas recordações de guerra ou da guerra.Abraço.
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