Memórias...
As primeiras, escritas num "diário"...que ao final de cada dia, ia guardando ...
Memória...
Serra do Mapé. ...um "buraco" algures no norte de Moçambique.
Difícil? ! !!! Não se apagará no meu "disco rígido "!
E já lá vão 49 anos!!!!
Antes que...se faça tarde!!!
Escrevo.
Recordo...
Em cada dia que os dramas nos afectam aumentam as nossas carências de afectos, mas cresce também a cumplicidade para enfrentar as dificuldades.
A solidariedade cresce na medida em que os esforços individuais dão lugar ao esforço colectivo.
À distância do fulcro da confusão, ninguém entenderá as carências vividas no meio da guerra.
E quanto maiores forem os tormentos, maior será a solidariedade.
Só quem não conhecer os horrores provocados pela guerra poderá pensar que ela tem alguma coisa de atractivo, salvo as bestas que a fomentam!
Os outros, de marmita na mão, olham-se amargurados pela evacuação do Furriel Mil Vellasco Martins, vitima de uma mina anti-pessoal, perto do morro da "Tentativa".
Estávamos apenas à 21 dias na "guerra"!!!!!
- Serei o próximo?
Quando soa a tampa do panelão, que o cozinheiro Rolim Rosa faz ecoar chamando para o rancho, percebemos que estamos aprisionados entre o infinito das matas e a lonjura da civilização.
Amarrados ao isolamento, sobra tempo para pensar, pensar... pensar em quê?
A vida dentro do arame farpado, torna-se tão abstracta que nem os pensamentos têm sentido.
O espaço exterior assusta, pela imensidão da mata imemorável!
Ao cair da noite, uma espécie de cortina de breu deixa toda a gente amarrada aos temores das granadas de morteiro com trajectórias orientadas para o massacre.
Ninguém sabe qual é a matriz da morte na ponta da espoleta.
Para evitar que sejamos comidos pelos ratos, que são às centenas, vindos da mata e percorrem a vala comum, procurando os restos de uma ração de combate ou mesmo um bocado de pão esquecido no abrigo.... ao final do dia são acesas, à volta do arame farpado, umas lanternas improvisadas, numas garrafas de cervejas....com uma mecha embebida em petróleo.
Assim o "alvo" é óptimo para qualquer atirador!!!!?
É assim que vamos tentando equilibrar os ânimos.
Amargurados pelo sofrimento em condições hostis, abandonados no isolamento daquele inferno chamado Serra do Mapé, desvanecem-se as motivações para continuar uma guerra que não tem fim à vista!
Só ao alvorecer, o sol anuncia o fim deste embrutecimento, quando se dissipam os medos suscitados pelo fluxo das "obusadas" matinais.
Sem rendilhados, movemo-nos devagar, descomprimindo os nervos para que o sangue circule com mais vigor e limpe os restos do pânico provocados pelos ruídos da noite, que acordam os fantasmas imaginados, que evocam o terror do inferno.
Como é que vamos resgatar o tempo assim perdido entre o céu e o inferno, sem esperança no futuro próximo?
Serra do Mapé - Norte de Moçambique - Setembro de 1970.
Jose Leitão
CCav 2752
Nota: recordo hoje todos os pormenores daquela "saga" !
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