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terça-feira, 10 de setembro de 2013

FUI INSPECCIONADO, por Paulo Lopes


Paulo Lopes
 
 
Conforme prometi aqui vai mais um "chateanço" de cabeça à rapaziada e, mais uma vez, creio que vou estar em sintonia com muita malta desta página (uns nem tanto, mas...)

De disciplina em disciplina; de filme em filme; de tacada em tacada; mais conversa menos musica; mais musica menos conversa; mais rua menos avenida caminhada; mais pontapé na vida e menos na bola, lá ia cultivando um futuro que, afinal, estava logo a seguir, ao virar da esquina.

A proximidade do futuro que se adivinhava para jovens como eu, estava nas mãos dos governantes e eles precisavam dos meus préstimos para outros empreendimentos os quais não estavam nos meus planos nem sonhos.
 
Como prova desta minha teoria, existia o meu completo esquecimento de que para alguma coisa tinha ido, uns meses atrás dar o nome a um obrigatório recenseamento militar.

Fiquei conhecedor de que não estávamos só nas mãos de Deus, como sempre nos quiseram fazer acreditar, mas também nas dos diabos e seus apóstolos que proliferavam lá para as bandas de São Bento, acompanhando os nossos passos, controlando as nossas ideias, não nos deixando cair na tentação de devaneios que nos levassem a criar obstáculos e por em causa as suas indiscutíveis razões do bem-fazer aos seus semelhantes.
 
Isto com a ajuda imprescindível de quem nos queria fazer crer que só Deus nos guiava.
 
Ouvíamos, mas pouco comentávamos (talvez receio, talvez ignorância imposta ou simplesmente por não querermos falar) o tema tabu da guerra colonial.
Íamos sabendo que fulano tal e sicrano, que estavam a cumprir o serviço militar, tinham partido para terras de África, mas não nos era facultado qualquer pormenor ou conhecimento do que se passava para lá do Cais da Rocha de Conde Óbidos, para além das águas que banhavam os muros onde os barcos atracavam e se enchiam de jovens duma nação comandada pela ganância, embarcando ao som de choros e gritos de lamentações, lenços brancos a abanar, já encharcados de saudades.
 
Martelavam-nos a cabeça com outros assuntos bem mais fáceis de digerir e cheios de fé.
 
Incutiam-nos a ideia, esta reforçada pelos nossos pais, talvez querendo enganarem-se a eles próprios ou com o pensamento de que nos estavam a proteger de assuntos que nos fizessem alertar para a realidade completamente desconhecida, que quando chegasse a nossa hora de ir para a tropa já a guerra estava terminada e Angola, Moçambique, Guiné ou os outros diversos territórios espalhados pelo mundo, eram e continuariam a ser nossos.
 
(Angola é nossa...Angola é nossa...Angola é nossa).
 
Ouvíamos isto numa música passada constantemente na rádio, na televisão e nas ruas.
 
Inconscientemente íamos alimentando o nosso espírito de que era verdade e que não nos deveríamos preocupar muito com essa coisa da guerra do Ultramar, além de que, na tropa, é que "aprendíamos a ser homens"!...

Sempre nos foram vedadas a sete chaves pelo regime de então toda e qualquer verdade da questão.
 
A guerra colonial tinha de ser vista e sentida pelo povo como um estandarte do nosso país, pelo qual tínhamos de dar tudo por tudo para que esses nossos territórios não caíssem por terra, para que não caíssem nas mãos dos “terroristas”.
 
E no “tudo por tudo” estavam incluídas vidas e esperanças de uma juventude que, apesar de tudo, ainda mantinham sonhos e horizontes por descobrir.
 
Claro que a juventude filha dos poderosos do nosso país estava bem resguardada e alheada desse estandarte pelo qual o povo, sempre o povo, tinha de defender a bem da nação (e dos poderosos dela).
 
Mesmo que nos esforçássemos para conseguir ir um pouco para além do que nos era permitido (o que, contra mim falando, não era o caso porque deixava correr o tempo e esperava que as coisas se resolvessem por si próprias), logo se deparavam obstáculos complicados de transpor que nos colocava de imediato em maus lençóis.
 
A forma mais premente que surgia nos jovens que não queriam participar nos ideais dos poderosos do nosso estado e do nosso país, estavam presentes na fuga imediata.
 
Na subversiva passagem para o outro lado da fronteira.
Numa vida de fugitivos da própria sombra.
Numa incerteza do futuro, mas com a firme certeza que não iriam morrer ao serviço de beneficiados ocultos na capa de benfeitores e no escudo de "a bem da nação".

Na minha mente nunca esteve essa hipótese, para mim absurda, porque, ou teria a sorte do meu lado e venceria essa batalha ou ela não me acompanharia e decerto, para sobre viver noutro lugar, em outro pais, iria dar o meu esforço, não sabia a quem, ser escravo dos meus próprios minutos.
 
Vender a minha alma em troca de quase nada a incessantes ávidos de sangue e do suor alheio.
Na imensurável questão do vai ou fica, do ter ou não ter sorte, do questionável ou não, optei por jogar "no que for soará", mas junto dos meus familiares e amigos.
Não desdenho dos que pensaram o contrário, nem faço elogios a quem por essa prática enveredou.
Cada qual deve pensar pela sua cabeça e seguir o caminho traçado por si mesmo.

O povo tem razão (nem sempre. Quase sempre, quanto muito!) quando diz que o tempo voa.
Num instante se tinha passado mais um par de tempo e sem dar por ela estava no edifício da Junta da Freguesia da Penha de França a conferir os editais, procurando avidamente o meu nome agregado a uma data para me apresentar na inspeção militar, sempre com esperança de não enxergar a minha graça.

Mas não! Nestas ocasiões eles, os nossos amigos, os governantes, nunca se esquecem de nós e lá estava o meu nome numa extensa lista de futuros magalas.
O esquecimento ficaria para contas de outro rosário.
Quem não podia esquecer essa data era eu, se queria não arriscar passar instantaneamente de um pacato rapaz bem comportado a um refratário.
Palavrão que, nesses tempos, era sinónimo de grande malfeitor, assassino ou coisa pior ficando, inclusive, marcado para a sociedade.

O tempo que separou o dia da minha minuciosa leitura do edital até a data nele marcada (a memória atraiçoa-me e a exatidão dessa data deixa-me na incerteza) foi passado nervosamente veloz.
Tão veloz que num ápice estava a dizer (dizer, é uma forma de expressão!... Pedir, será o mais correto) ao meu chefe que tinha de faltar para me apresentar num edifício, se não me falha a memória, ficava perto da Praça de Espanha onde, na altura, funcionava o Hospital Militar, a fim de ser inspecionado para o serviço militar.
 
Pedido que, alastrado, fez soltar um exclamado “jáááá!!!” e umas quantas palmadinhas nas costas, amigavelmente, dadas por todos os meus colegas, todos mais velhos que eu e livres destas andanças, como que, antecipadamente, despedirem-se de mim e desejarem-me sorte para uma nova vida.

In "Memórias dos Tempos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
Paulo Lopes  1 de Agosto de 2013