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sábado, 8 de dezembro de 2018

Sobre um jogo de futebol militar, Macomia - Mataca..., por Paulo Lopes

Paulo Lopes

O dia marcado para a festa de Macomia estava nas vésperas e então, aproveitando também para trazer mais mantimentos, efectuou-se mais uma coluna. 
Tudo decorreu normalmente, sem qualquer problema a estragar o ambiente festivo (provavelmente alguns guerrilheiros da Frelimo estariam também presentes nessa festa) que, quer queiram quer não ia-se apoderando, a uns mais a outros menos, do nosso espírito até porque era uma coisa nova e como tal havia que explorá-la ao máximo como em quaisquer ocasiões que surgissem e que nos dariam a sensação de uma diferença no estado normal do dia-a-dia. 
Fosse festa ou não, pouco importava. 
Apenas tinha de ser, por muito pouco que fosse, diferente! 





Chegámos a Macomia três dias antes da data marcada para o Dia de Macomia, (assim se chamava tal comemoração) mas nós, como quem quereria demonstrar uma certa liberdade de movimentos, por nossa conta e risco, iniciámos a festa mais cedo, tanto assim que, no primeiro treino (???) efectuado ninguém, ou quase ninguém, via apenas uma bola e correr era assunto para depois...

Em Macomia, tal atitude, era um risco. 
Mas, pensando bem: o que nos fariam? 
Castigavam-nos e mandavam-nos para a Metrópole?... 
Eu não treinei nem participei nessa antecipação festiva, (tinha passado a noite com febre e estava ainda um pouco combalido) limitando-me a assistir a todas as peripécias que iam espontaneamente surgindo. 

Apesar de em Macomia, perto dum sistema militar já bastante acentuado, tentássemos manter uma falsa aparência de militares a sério, principalmente de nossa parte, graduados, deixávamos sempre escapar algo e aos olhos das altas esferas, essa liberdade de hierarquia que todos nós, na Mataca, utilizávamos, sempre nos valeu uma severa repreensão lançada lá do alto do poleiro.

Felizmente que depressa voltaríamos a Mataca e aí, não havia coronel que nos fosse fazer ver o quanto é necessária uma forte e severa disciplina.


O dia chegou e todas as altas individualidades civis e militares de Macomia estavam presentes. 
Como não poderia deixar de ser, a abertura da festa começou com discursos sendo o primeiro orador o major médico do batalhão. 

Este major até era um homem fora do contexto habitual de militar bem posicionado. 
De ideias positivas e de uma forma pouco comum de tratamento com os militares de todas as patentes, deixando sempre de parte e em qualquer circunstância as suas divisas, colocando-se no mesmo degrau de um soldado ou de um tenente-coronel, sabendo dar continuidade a toda e qualquer conversação seja ela de um grau de baixo nível ou de uma forma mais extensa e filosófica discussão. 
Mas neste discurso, como tinha de agradar às individualidades, tornou-se falso enganando-se a si próprio fugindo às realidades e entrando também no campo da guerra psicológica. 

Apoiou a guerra. 
Tirou o nome de ladrões aos comerciantes que há custa de altas aldrabices (bem apoiados pelas altas patentes militares) prosperavam em Macomia. 
Falou da coragem e valentia do exército. 
Deu bravas à persistência e querer dos civis. 
Enfim, um discurso completo de mentiras, recheado de tretas com a única objectividade de agradar à ocasião. 
Aproveitou-se a lição que, pelo meio, nos deu de História Universal. 

Depois discursou o governador do distrito de Cabo Delgado. 
Mais um abutre entre tantos outros que subiu a Macomia, decerto com uma enorme pouca vontade de o fazer mas que a sua folgada posição o teria obrigado a isso. 
Este desfez-se em agradecimentos e elogios aos militares. 
E toda a burrice ficou satisfeita e convencida que todas aquelas palavras de machucar corações eram verdadeiras e sentidas! 

Continuaram os discursos de muita gente, mas não houve surpresas: tudo bem. Tudo certinho no seu papel. 
Também não seria um discurso de um qualquer maluco que violasse a regra e vomitasse umas realidades sem medo, que acabaria com a guerra e com exploração monetária e mental. 
Continuariam alguns (poucos) a encher a pança e outros (muitos) a esticarem o cordel das calças porque já nem cinto existia. 

Veio o almoço onde se comeu e bebeu do bom e do melhor que se podia encontrar por aquelas bandas enquanto os que nem sempre comiam para além do trivial, assistiam do lado de fora. 

Mas era uma festa e finalmente veio o jogo. 
Acto onde Mataca entrava na peça deste festim! 
Todos desceram ao campo pois ninguém estava pelos ajustes de deixar a festa a meio. 

O campo estava repleto onde se misturava o exército com os civis. 
Misturados mas não tanto: Os abutres estavam no poleiro/ As equipas foram anunciadas pelos altifalantes e como seria de esperar, tinham de vir as patentes antes do nome: «– Nº. 1. furriel miliciano Lopes. Nº. 2. soldado Caldeira. Nº. 3. 1º cabo Rodrigues Nº. 4. alferes miliciano Lameira Etc...Etc...Etc..». 

O jogo começou e entre pontapés na bola e na atmosfera, falhanços de toda a espécie, correrias sem nexo e até desculpe meu capitão se o aleijei, lá se ia distraindo a populaça. 
Gargalhadas, palmas e até hooooos! dos espectadores, chegámos ao fim da contenda com a nossa vitória por 2-1. 

A entrega da taça foi efectuada quando já não existia luz do sol (e da outra mal se via!). 
O capitão da nossa equipa, que também era o capitão da nossa companhia, ergueu a dita, recebendo uma salva de palmas de todos os presentes e a festa, oficialmente, acabou! 
Amanhã começava a realidade! 

Mas à noite, ainda antes do amanhã, já sem os olhares dos galões de brilho dourado e peitos medalhados, apenas com a presença estranha, mas não indesejável, do major médico, juntámos-nos (os jogadores) e a festa continuou. Então foi comer e beber sem qualquer discurso falso. 
Confraternizámos: os soldados, o major médico, o capitão, os alferes, os furriéis e cabos, tudo brincou e conversou sem a diferença de galões a incomodar os mais e os menos.





in "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"