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quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

O Não Regresso da Guerra...., por José Nobre

O Não Regresso da Guerra....
Paris - Quartier Latin -Dezembro de 1970 - Sábado à noite -
Primeiro uma sessão de cinema, depois um petisco num dos muitos restaurantes da Rue de la Huchette, depois a musica num dos muitos bares da mesma rua. 
Por vezes escolhíamos o Caveau de La Huchette, o famoso Bar, onde durante muitos e muitos anos passaram os melhores músicos de Jazz e também da chamada música cigana ( leste da Europa)....
Noites frias, muitas vezes de neve, mas os nossos 20 anos tudo suportavam......até à hora da abertura das portas da estação do metropolitano.....
Voltávamos para casa no primeiro "metro"....bebíamos um café no "Chez Pierre".....
Aquecíamos as mãos e os pés, ouvindo uma música qualquer vinda do Jukebox.....e planeávamos a próxima saída. 
Nós, só tínhamos vinte e poucos anos. Não, não foi assim há tanto tempo.....49 anos.....somente. 
Eu era um dos únicos que não tinha "fugido à tropa" o único que tinha andado por terras africanas. 
Faziam-me perguntas, muitas perguntas. 
Eu, pouco dizia, não tinha a coragem de lhes dizer que tinha saudades, não da guerra, mas tinha-as dos gajos que comigo andaram de Janeiro de 1967 a Outubro de 1969....IRMÃOS....que um dia deixei à porta do Quartel de Estremoz. 
Como é que se pode explicar esta "merda" a alguém que não esteve onde eu estive....olhavam-me. questionavam-me - Viste alguém morrer?....Não respondia....ainda era cedo, eu ainda não tinha voltado da guerra.....o corpo sim.....TUDO O RESTO NÃO.
Dedicado a todos aqueles que estiveram comigo em África, ( Moçambique ) à malta da Companhia de Cavalaria 1728 e à malta da Companhia de Caçadores 1804
Apontamentos - Boulogne Billancourt (França) - Monchique - Portimão....e onde calha....onde me dá a pancada de escrever.



segunda-feira, 4 de novembro de 2019

O Banco dos Dias, por José Nobre

Nunca Atirei Pedras Aos Cães.
Moçambique – Agosto de 1967 – Outubro 1969.
Paris – 11 de Março de 1972
O Banco dos Dias.
Tenho dias para a “troca”....trocaria bem o dia 11 de Março de 1968, por um outro qualquer, mesmo que fosse um dia sem sol, chuvoso, triste, como o dia de hoje.
Começou a nevar, o verde da relva do jardim vai desaparecendo aos poucos. 
Os sons que chegam da rua são menos agressivos. 
Sim, faz hoje quatro anos. 
Deveriam existir bancos de dias, onde pudéssemos trocar dias maus por dias bons, mais caros claro, porque isto de trocar um dia mau por um dia bom dá muito trabalho. 
Um calor do caraças, o café do quartel de Palma sempre é melhor do que aquele que bebemos no mato.
A neve acumula-se no parapeito da janela. 
Não vejo os pardais que habitualmente picam a relva durante horas e horas procurando o que comer.
Sim. 
Deveriam existir esses tais bancos para trocar dias – Bom dia, tenho um dia para a “troca,” não, não é um dia é uma manhã, uma manhã quente de Cabo Delgado, uma manhã de tiros de granadas, de gritos, chamem o enfermeiro, precisamos do helicóptero....o Amável está morto. 
A vizinha do primeiro andar atravessou o pátio, com cuidado...pé...ante...pé, tal como nós numa qualquer picada de Cabo Delgado...pé...ante...pé. 
A granada que o alferes Guerra trazia à cintura explodiu, ele e o Bibiu morreram. 
Tenho dias para a “troca.” 
Vamos dar um mergulho à praia, a malta da nossa companhia deve estar quase a chegar, depois do banho vamos comer um peixe assado ou umas lulas fritas, e beber umas “catembes.” 
Por favor, pode ver na tabela dos dias quanto custa trocar o dia 11 de Março de 1968, por um outro dia qualquer? 
Tenho dias para a troca. 
O Camilo Alves, também morreu.....
Se não me trocarem os dias, eu dou os meus, não todos. 
Quero regressar a Palma e falar com o senhor que manda nos dias, o gajo que decide...hoje é um dia de sol e de vida....amanhã não sei. 
O senhor do banco dos dias, diz que vai ser difícil trocar o dia 11 de Março de 1968 por um outro dia qualquer, os dias consumidos são considerados em 2ª mão, e para além do mais ninguém compra dias com mortos. 
Posso falar com o gerente? 
Posso falar com o gajo que decide quem morre, que decide quem vive. 
A água do Indico está quente, eu e o Banó estendidos na areia branca da praia de Palma, ao longe os barcos dos negros continuam a pescar. 
Por favor caro Senhor, troque-me este dia, esta manhã, pela merda de outro dia qualquer. 
Sabe caro senhor, nessa manhã morreram na picada de Pundanhar quatro gajos que eram nossos irmãos. 
Não pode? 
Então diga-me quanto custa um milagre. 
Juro que comprarei velas, juro que rezarei, juro que farei peregrinações. 
Como? 
Não pode ser? 
Já é tarde?
A neve continua a cair, da cozinha chega-me o som do rádio e a voz do Jacques Brel que canta--- Ne Me Quitte Pas.
Faz hoje quatro anos......
Não me esqueci......e continuo a gostar de vocês.....IRMÃOS.
(Rectifiquei algumas “coisas” poucas do escrito original )
Paris – Boulogne-Billancourt. - 11 de Março de 1972