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quinta-feira, 3 de março de 2016

Histórias do Chai IV, por Livre Pensador



Estávamos nos primeiros dias de Abril de 1972 quando a CCAV. 3508 foi informada que iria ser desencadeada uma longa operação, com o nome de código "OMO 1", destinada a destruir machambas e palhotas da população afeta á Frelimo.

Para a execução da mesma, a CCAV. 3508 deveria contribuir com 3 grupos de combate ( o 1º.gr., o 3º.gr. e salvo erro o 4º.gr.) os quais teriam de se apresentar em Macomia, onde começaria a referida operação.

Reunido o pessoal e o equipamento deu-se início á coluna militar assim que despontaram os primeiros raios solares, para fazer os cerca de 40 km que separavam as duas localidades.

Com todo o cuidado procurámos pôr em prática os procedimentos a que tínhamos assistido quando o Esquadrão de Cavalaria escoltou a nossa companhia de Macomia para o Chai, no final de Fevereiro, para lá ficarmos instalados.

A progressão era feita em marcha muito lenta, com várias zonas do percurso feitas apeadas, fazendo picagens atentas sempre que necessário (ver fotos 1, 2 e 3), ao mesmo tempo que se fazia fogo de reconhecimento para a dianteira da coluna, umas vezes de tiro (com a HK-21) outras vezes de morteiro 60, em todos os locais que nos pareciam suspeitos, com especial incidência no famigerado Monte das Oliveiras.

E foi assim que passadas 6 ou 7 horas chegámos a Macomia perto da hora de almoço, "sãos e salvos" como se costuma dizer e sem que tivesse havido qualquer contacto com o inimigo.

Formados os três pelotões na parada de Macomia, fomos recebidos pelo oficial de operações major Rui Fernandes (mais conhecido por major Alvega).

Após as apresentações da praxe, o major quis saber se tínhamos tido problemas durante o percurso do Chai até Macomia, pois tinha ouvido alguns rebentamentos.

Ao ser informado que os ditos rebentamentos foram causados pelas granadas de morteiro 60 durante o fogo de reconhecimento ao longo do trajecto, o "ilustre oficial" entrou em paranoia e proibiu tal prática com uma frase que ficou célebre: "LEMBREM-SE QUE MUNIÇÕES COMPRAM-SE E HOMENS REQUISITAM-SE" !!!

Para este oficial era mais importante o dinheiro gasto em munições do que a vida de um ou mais homens.
Decerto que nem Hitler chegou tão longe!
Entretanto, passadas 1 ou 2 horas fomos informados que a operação tinha sido adiada e ainda nesse dia regressámos ao Chai.
 

 
 
 

 
Luís Leote No meu tempo, também gastávamos uma pipa de massa em munições, com a esperada reação do comando.
Até ao final da comissão em Cabo Delgado, continuámos a gastar uma pipa de massa.
Paciência

 

 
Luís Leote A deslocação do Chai para Macomia, era sempre apeado?
 

 
Livre Pensador Grandes extensões do percurso eram feitas apeadas.
 

 
Fernando Bernardes Mais um bom e verdadeiro relato do que se passou feito pelo Livre Pensador(Ribeiro).
Parabéns e obrigado.
A picada entre Chai e Macomia, que era, pretensamente, de asfalto, tinha muitos locais onde já tinham rebentado minas, pelo que era necessário fazer picagem, o que obrigava a andar muito a pé.
 

 
Américo Condeço E então os sítios onde os gajos tinham cavado o alcatrão e plantado machanba, lembro-me bem que quando lá fui havia uns dois ou três locais onde plantaram mandioca onde era alcatrão, o dito ficava todo aos montinhos .
 

 
Segundo relato do sr Duarte, quando lá chegaram " andavam todos os papéis".
Copiava-se a experiência, dos que já por lá andavam. 
 Na 3509 a companhia antiga fez pelo menos a primeira coluna.
Disparou nos sítios mais altos e mais fechados.
Ainda era a MG-42 e muito ela disparou.
Se os srs alferes foram chamados, o sr Duarte não deu por isso.
Após uns três meses, com o alargar da estrada, foi caindo em desuso.
 

 
Rui Briote Amigo Ribeiro ( Livre Pensador) obrigado por este texto.
Acho que foi à segunda tentativa que esta operação se fez ou estarei enganado?
 

 
Livre Pensador É exato Briote.
A operação "OMO 1" foi desencadeada á segunda tentativa e teve inicio no dia 23 de Abril de 1972. Nessa data foi o 1º. grupo de combate (o meu) que ficou no quartel.
Abraço. Ribeiro.
 

 
Rui Briote Só mais uma questão Amigo!
A morte do Delgado não foi na primeira tentativa?...Abraço Amigo
 

 
Livre Pensador Não Briote.
O Delgado faleceu numa coluna para Macomia no mês de Maio.
Suponho que no dia 25, mas mais logo já posso confirmar quando estiver junto dos meus "auxiliares de memória".
 

 
 
Jose Capitao Pardal E na 2ª tentativa alinhei eu que era do 2º pelotão... e não chegámos a ir a Macomia.
Entrámos na mata a seguir à descida do Monte dos Oliveiras, num local onde existiam vestígios de uma antiga picada que ia ter ao antigo aquartelamento da Cruz Alta...
 

 
Velhas DE Estremoz Alentejanas Nós confirmamos a presença do nosso compadre Jose Capitao Pardal.
Há pelo menos um documento comprovativo.
Foi pôr o "bico". numa foto dos graduados da compª. 3509.
 

 
Livre Pensador Amigo Briote já consultei o meu "auxiliar de memória" e devo corrigir que o Delgado faleceu junto á ponte do rio Mapuedi (suponho que era esse o nome) no dia 24 de Maio de 1972.
Eu ía começar a picar os acessos á ponte, ele ía atrás de mim a montar segurança, quando lhe rebentaram os dilagramas que levava á cintura. Abraço.
 

 
Velhas DE Estremoz Alentejanas O sr Duarte, tem ideia de levar sempre dois dilagramas enfiados em cada par de cartucheiras.
Ás vezes punha a bala própria na G-3 e levava um montado.
 

 
Luís Leote Os dilagramas estavam desencavilhados?
 
 
 
Velhas DE Estremoz Alentejanas Deve ter-se desencavilhado pelo menos um, quando teria saltado da viatura.
Terá sido isso ?.
 
 
Livre Pensador Sim, chegámos á conclusão que só poderia ter sido alguma cavilha de um dos dilagramas que saiu quando ele saltou do Unimog que ia atrás da Berliet, para iniciarmos a operação de picagem.
 

 
Livre Pensador Só sei que naquela altura foi como se me tivesse saído o totobola.
A Berliet ficou com os pneus furados, a minha arma (que eu levava na mão) ficou cravada com uns quantos estilhaços na coronha e eu nem um arranhão tive.
 

 
Luís Leote Um segundo de sorte para o teu lado.
 

 
Armando Guterres Só mexi em dilagramas (esventrados) aquando do ardimento do material de guerra na arrecadação
- não precisámos de ajuda da frelimo - a Mataca era competente.

 

 
Fernando Bernardes De fato o Delgado morreu no dia 24 de Maio de 72 numa coluna para Macomia, quando se preparava para iniciar a picagem.
Ele foi sentado no mesmo Unimog nas minhas costas e penso que ao lado do alferes.
Depois de descer da viatura, vi ele "meter"o carregador da G 3 entre o corpo e as cartucheiras do lado esquerdo, onde levava 2 dilagramas.
O corpo dele foi levado para Macomia.
 

 
Rui Briote Ainda hoje tenho bem presente o que o nosso enfermeiro Gardete fez....CORAGEM E MUITO SANGUE FRIO...
 

domingo, 11 de agosto de 2013

A EXPLOSÃO NO PAIOL, por Paulo Lopes

 
 
 

 
Terminado o estranho mas bastante apreciado "descanso" voltaram as operações: desta vez o meu grupo não participou ficando no estacionamento acompanhados pelo grupo de apoio.

Dentro do nosso "quartel" nunca havia obrigações diferentes para fazer, chegando mesmo a dar origem a um certo desmazelo em relação à nossa própria segurança de tão consequente e repetitiva ser a vida dentro dele.

Assolava-nos a solidão do isolamento que nos apertava o peito mas o silêncio de uma clareira plantada no meio de uma interminável selva com todos os perigos espreitando a cada ramo de árvore, a cada passo que poisávamos nos trilhos fora do arame farpado que nos separava, contrastava com esse espírito de solidão e transmitia-nos uma paz que nos ia aliviando a pressão da guerra.

Enganadora paz que nos alterava a forma de estar no alerta constante como se, estando para cá desse arame farpado, nos livrasse dos perigos que, ocultos na mata, espreitavam qual leão esfomeado preparando o assalto à sua presa.

Mas a regra à excepção existe e, numa bela tarde, à mesma hora, com as mesmas pessoas, no mesmo campo, com a mesma bola e eu defendendo as mesmas balizas, fomos interrompidos pela gritaria de expressão aflitiva que nos fez deixar a nossa fuga à realidade e voltarmos a entrar no tempo e espaço em que vivíamos:

- O paiol está a arder. O paiol está a arder! Venham ajudar. O paiol está a arder!

Para dar razão à lei dos supersticiosos, era dia treze de Outubro, sexta-feira.

Aquilo a que chamávamos de paiol só poderia ter esse nome pelo facto de lá estarem guardados todos os tipos de materiais bélicos, desde armamento a munições para diversos tipos de armas. Inclusive tínhamos também lá guardados dois bidões de duzentos litros cheios de combustível de helicópteros para eventuais abastecimentos de urgência que ocasionalmente pudessem surgir.

Uma casota com pouco mais de quinze, ou menos, metros quadrados, revestida de tijolo.
Uma porta simples de madeira com uma fechadura normalíssima.
Tecto de chapas de zinco ondulado cobriam a casa da penetração do sol, chuva ou do que a meteorologia nos oferecesse.
De pouca, se não nenhuma, ventilação.
Era o paiol!...

A tal improvisação e o desenrasca da nossa característica presença, forma de ser e pensar, menosprezando quase sempre a nossa própria segurança em benefício do "amanhã logo se vê"!...

Aqueles alertantes e expressivos gritos acompanhados de desespero, aflição e manifesto gestual terminaram com a nossa tarde desportiva obrigando-nos a desviar o nosso olhar, focando-o para o local ao mesmo tempo que corríamos para lá.

Num segundo todos estávamos em redor do paiol que deitava fumo pelas frestas da porta e pelas folgas do telhado que uniam ao tijolo, sem sabermos exactamente o que fazer naquele preciso momento.
Sem raciocinar, arrombei a porta e com um camarada que já empunhava um extintor vinda da enfermaria, entrámos na esperança de apagar o presumível incêndio.

Não se viam chamas. Não se via absolutamente nada, pois o fumo era negro e muito denso não permitindo qualquer visão dentro daquela casa.
Voltámos a sair para aliviar os olhos que fraquejavam perante tanto fumo e dar um pouco de ar à garganta que ficara seca num segundo.
Outro soldado foi para o interior do paiol.
Voltei a entrar em auxilio desse camarada e os dois, com o extintor em punho, tentávamos espalhar espuma não sabendo tão pouco para cima de quê.
Mas, tal como em muitas outras coisas do nosso exército, não funcionou.
Há quanto tempo estaria aquele pretenso extintor sem ser carregado? O mais provável é que nunca tivesse sido levado dali para ser inspeccionado e acredito que ninguém se tenha, no mínimo, preocupado com isso.
Pelo meu lado, não sendo, de forma alguma, diferente dos outros no desenrasca (andámos todos na mesma escola) nem tinha conhecimento da existência de tal aparelho!...

Nada mais havia a fazer ali dentro.
A abertura da porta originou que o fumo se dissipasse um pouco mais o que nos deu uma outra visão do que estava a acontecer.

Levantámos uma caixa de granadas de morteiro de onde saía bastante fumo e o que conseguimos fazer com essa operação foi piorar a situação pois, se o fumo já era denso, apesar de mais aliviado, ficou ainda pior!...

Só um acto inconsciente levaria alguém ir dentro de uma arrecadação repleta de fumo quando o seu conteúdo se compunha de quantidades apreciáveis de explosivos de várias espécies: granadas de mão ofensivas e defensivas; granadas de morteiro; TNT; munições das metralhadoras "G3" e "HK21" e sei lá o que mais se encontrava dentro daquela pretensão a paiol!
Para completar e talvez o pior de todo aquele arsenal para "animar" um mais que provável fogo, lá estavam os tais bidões de combustível.

Mas a guerra é uma inconsciência e nós, jovens guerrilheiros improvisados, abandonados à nossa sorte que, apesar de contrariados, quando metidos no centro dos acontecimentos, fossem eles quais fossem, dávamos sempre o nosso melhor e nestes momentos de pressão, éramos arrastados por essa inconsciência esquecendo-nos, por vezes, que a nossa própria vida estava a correr riscos!

Naquele momento não estava em causa o matar para não morrer onde, se virássemos as costas à luta, estaríamos a oferecer a nossa vida ao inimigo.
O defendermos-nos primeiro e pensar na soberania do nosso país depois.
A sobrevivência.
Não! Naquela situação que estávamos a viver poderíamos simplesmente sair dali, esquecer o paiol, deixar arder e fugir para o mais longe possível.
Esperar pelos acontecimentos. Ver o que dava! Mas não foi o que fizemos.

Ninguém saiu daquele local e todos, de uma forma ou de outra, tentámos resolver a questão como se fosse a ultima acção das nossas vidas. Alguém já havia transportado para junto do paiol a viatura que rebocava o tanque que nós utilizávamos para ir buscar água ao poço para os banhos e com o auxilio do motor de água, projectá-la para cima daquela fumarada...

Uma fila de munições da HK21 que se encontrava por cima de uma das caixas de onde saía o grosso fumo, começou a estoirar como se alguém as estivesse a disparar.
Tal som, sobejamente conhecido e gravado no nosso subconsciente, provocou-nos uma reacção instantânea mostrando-nos a realidade dos factos.
A inconsciência tomada nos momentos anteriores foi aniquilada e o regresso à terra puxou pelos meus pulmões que soltaram amarras e gritaram o mais alto que puderam:
Fujam! Fujam! Corram para as valas!...

Não sei em que espaço de tempo todos desapareceram daquele local, mas que foi rápido, isso foi!...

Pelo meu lado nunca corri com tamanha velocidade e tanta vontade!
As munições continuavam a assobiar ao saírem do seu invólucro.
Já deitado dentro de uma vala e com o coração aos pulos, esperei o inevitável: a explosão!...
 
"Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"

Paulo Lopes 20 de Julho de 2013