quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Histórias do Chai II (1972/1974), por Livre Pensador

Livre Pensador
 
Quando os militares da CCav. 3508 ocuparam o aquartelamento do Chai, foram informados que a sua missão contemplava também a proteção e defesa permanente da ponte do rio Messalo, local onde se fazia a recolha de água para o consumo diário da companhia, a qual estava situada a 10 km do Chai.
 
Coube ao meu pelotão a "honra" de ser o primeiro a ocupar as instalações do Messalo.
Eu disse "instalações"?
Que disparate!!!
 
Dado que a ponte do Messalo era considerada um local estratégico naquela que era pretendida como a estrada de comunicação a Antadora, Mocímboa da Praia e até Mueda, seria de imaginar que esse dito local dispusesse de um mínimo de condições e/ou instalações para quem nele tinha de permanecer 24 horas por dia e 365 dias por ano.
Mas isso era o que nós jovens pensávamos e como é comum dizer-se: "é jovem ... não pensa!".
 
Na realidade, quando o meu grupo de combate chegou á ponte do Messalo todos ficámos incrédulos perante a realidade que os nossos olhos viam.
 
A ponte que ligava a margem sul (lado Chai) á margem norte (lado Antadora) cuja extensão teria aproximadamente 150 metros, resumia-se a duas vigas paralelas e afastadas entre si de modo a permitir a passagem dos rodados das viaturas, vigas essas que estavam apoiadas em quatro pilares construídos no leito do rio (ver fotos 1 e 2).
 
A qualquer viatura que quisesse passar a ponte era exigida, ao seu condutor a máxima prudência, pois o menor descuido significava a saída do rodado do piso da viga e a possível queda ao rio.
 
E que dizer das instalações e/ou alojamentos dos militares que defendiam a ponte?
Não exagero se disser que nessa altura perdemos o estatuto de seres humanos e ganhámos a condição de toupeiras.
As nossas "instalações" resumiam-se a três buracos escavados na terra, na margem sul da ponte, e cobertos com uns troncos e alguma terra onde se comia, dormia e defendia um local considerado "estratégico".
 
Para completar a "eficiente" defesa dispúnhamos de dois postos de sentinela (entenda-se 3 ou 4 bidons cheios de terra com uma chapa metálica a servir de cobertura) localizados um em cada margem (foto 3).
 
Durante a noite, enquanto dormíamos, tínhamos como companhia enormes ratazanas que passeavam por cima de nós com a mesma descontração com que os humanos passeiam em qualquer rua de vila ou cidade.
 
Numa das noites, quando um dos soldados da minha secção acordou (o João Carvalho Malícia) por causa duma ratazana, já a dita cuja lhe tinha roído ligeiramente a ponta do nariz.
 
Verdade seja dita que, durante o dia, a estadia na ponte permitia criar alguma descontração com uns banhos agradáveis no rio, mas a noite tornava-se muito angustiante pois tínhamos a convicção de que por muito valorosos e destemidos combatentes que pudéssemos ser na defesa da nossa ... pele, não teríamos quaisquer hipóteses de salvação se a Frelimo decidisse fazer um ataque em força.
 
A permanência na ponte do Messalo serviu para que todos aqueles que tinham alguns dotes de pescador ou caçador tivessem oportunidade de pôr as suas capacidades á prova.
 
Eu, que durante muitos anos tive a mania de ser pescador, durante o dia e com um simples pau a servir de cana, um cordel a servir de linha de pesca, um alfinete dobrado a servir de anzol com um pouco de pão na ponta, cheguei a pescar camarões que quase tinham um palmo de comprimento (autênticos camarões tigre) (foto 4).
 
Todos aqueles que tinham preferência pela caça, passavam parte da noite a tentar matar as ratazanas que muito nos apoquentavam.
Foi este o meu batismo como primeira semana de guerra em terras moçambicanas.
Nada mau para começar, como se costuma dizer!
 
Nada mau para começar, como se costuma dizer!
 

 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Histórias do Chai I (1972/1974), por Livre Pensador

Livre Pensador
 
A Companhia de Cavalaria 3508 instalou-se no Chai no dia 21 de Fevereiro de 1972, rendendo a C. Cav. 2751.
 
O trajeto de Macomia para o Chai realizado nesse dia, em coluna escoltada pelo Esquadrão de Cavalaria, deixou em todos nós, mesmo sendo "checas", a intrigante pergunta: "ONDE SERÁ QUE VAMOS PARAR"?
O fogo de reconhecimento que os camaradas do esquadrão sentiam necessidade ...de fazer, á medida que se avançava na picada e que foi aumentando de intensidade com a aproximação ao famigerado Monte das Oliveiras, ia deixando em nós a convicção de que nada de bom nos estaria reservado.
 
Chegados ao Chai, foi bem evidente aos nossos olhos toda a enorme alegria, satisfação e simpatia com que fomos recebidos pelos camaradas da 2751, o que era compreensível.
 
Poucas semanas se passaram após a rendição e logo começámos a compreender na pele as razões de tanta alegria por parte dos camaradas da companhia rendida.
 
 
 
As primeiras impressões sobre o aquartelamento do Chai foram más por um lado e de alguma resignação por outro.
É certo que em termos de instalações não sendo propriamente boas, também não se poderia exigir muitos mais "luxos" atendendo ao local onde estava inserido.
É justo dizer-se que paisagisticamente até disfrutava de um belo panorama, localizado no alto duma colina sobranceira ao lago Chai.
 
Alarmados e preocupados ficámos, pelo menos os mais responsáveis, com a segurança do aquartelamento.
O seu sistema defensivo resumia-se a uma vedação em arame farpado como 1ª. linha de defesa, após a qual havia uma 2ª. linha constituída por bidons cheios de terra.
O aquartelamento não dispunha de valas defensivas nem tão pouco de abrigos que dessem alguma proteção a possíveis ataques de morteiro e/ou canhão.
Os próprios postos de sentinela em redor do aquartelamento não ofereciam o mínimo de condições de segurança.
Estou em crer que, se alguma vez a Frelimo tivesse sido mais audaz com uma tentativa de golpe de mão, decerto que nos faria bastantes estragos.
 
Mas foi este o legado que recebemos da companhia 2751 que, para além de ocupar e defender o Chai, ocupava e defendia permanentemente com um grupo de combate, um posto avançado na ponte do Rio Messalo, situado a 10 Km do Chai e onde era necessário ir 2 vezes por dia buscar a água para o abastecimento do aquartelamento.
 
Esse tema ficará para uma próxima "Histórias do Chai" se não me castigarem com uma carecada.
  • Rui Briote Parabéns Amigo...texto muito bem escrito....abraço
     
  • Livre Pensador Desta já estou safo! O oficial de dia não me castigou com a carecada!
     
  • Armando Guterres só uma pequena repreensão - Monte DOS Oliveiras.
  • A única vez que fui à ponte do rio Messalo foi sem escolta.
  • Fernando Bernardes Muito bem e bom texto Ribeiro(Livre pensador).
  • Por favor não pares.
  • Fico aguardando ansiosamente o desenrolar desses teus bons relatos.Abraço
     
  • Velhas DE Estremoz Alentejanas É gratificante passar por aqui e encontar uma narrativa "daqueles tempos".
  • Sr Livre Pensador (Ribeiro), nas suas horas de ócio pode ir continuando, que estamos a gostar.
     
  • Julio Bernardo Que mente não deixe esquecer o que ainda há a dizer da vossa companhia, a quando ataque Chai e ponte, poderei dar umas dicas, boa gente encontrei na ponte, muito em perigo, mas bem despostos sempre.
      
  • José Guedes Cá ficarei aguardando novos relatos da vossa estadia pelo Chai,.. gostei deste texto e é bom recordar depois de tantos anos, muitos de nós ainda hoje desconhecemos muitos dos problemas que cada companhia tinha e passou,..
     
  • José Dias Nunes Amigo Livre Pensador (Ribeiro) gostei do testo escrito de uma formula simples mas muito realista.
  • O pessoal do Chai é sem sombra foi sem sombra de dúvidas o pessoal mais massacrado, quer pela Frelimo quer pelo nº de Operações em que estavam constantemente envolvidos.
     
  • Jose da Silva Livre Pensador, gostei de ler o que escreveste pois eu não posso avaliar muito o que vos passas-te lá no Chai, porque eu nunca saí de Macomia, não posso avaliar isso.
     
  • Luís Leote Boa noite
    Gostei imenso de ler.
    Sem floreados, ciso e conciso (é assim que se diz?).

    Parabéns smile emoticon
     
  • Velhas DE Estremoz Alentejanas Sr Luís Leote- Imagem de dente do siso
  • Luís Leote Está bem Comadres.
    Siso e conciso wink emoticon
     
  • Armando Guterres com siso e conciso L L
    O médico mandou-me contar os dentes e contei 32 contando dois e mais outro que ele tirou.
  • O primeiro foi tirado aos 13 anos com o estilete do compasso, enquanto se via a investidura do Paulo VI na TV.
  • Passado mais uns anos fiquei com uma placa com dois dentes nesse espaço que era de três.
     
  • Jose Capitao Pardal Livre Pensador gostei e estou à espera de mais...

     

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

História do Chai VII (1972/1974), por Livre Pensador



Livre Pensador

Os primeiros tempos de permanência da 3508 no Chai não se revelaram nada fáceis para a companhia.
 
Em 22 de Junho de 1972 (ao 4º. mês de missão) tombava já o segundo combatente.
Uma emboscada no trajeto para o rio Messalo, onde fazíamos o reabastecimento de água 2 vezes por dia, tirou a vida ao condutor Rogério e feriu gravemente um atirador (creio que se chamava Silva) do 3º. pelotão, do alferes Briote.
 
Foi uma emboscada desferida quase "á queima roupa", pois a imensa vegetação existente ao longo da picada permitiu que os guerrilheiros da Frelimo quase se "colassem" ás nossas viaturas.
O condutor Rogério conseguiu parar o seu "Unimog" e no momento em que se preparava para saltar, a viatura foi atingida por uma granada de RPG7, ferindo de morte o infeliz Rogério.

Entretanto, as operações no mato sucediam-se a grande ritmo com 2 grupos de combate em simultâneo.
Foram constituídas (já naquela altura) duas PPP (Parcerias Públicas de Pelotões).
O 1º. pelotão atuava com o 3º. e o 2º. pelotão atuava com o 4º.
Chegou a haver meses em que passávamos mais dias no mato do que no quartel.
 
Uma dessas operações (em julho de 1972) com o código "Bufalo 5" foi realizada para os lados da Serra do Mapé.
Para esses lados, o contacto com o inimigo era quase sempre inevitável, mesmo que as nossas tropas o tentassem evitar.
E foi assim que, quase sem darmos por isso, entrámos numa machamba contígua a um aldeamento com 9 palhotas.
Seguiu-se uma breve troca de tiros com os elementos da Frelimo que fugiram.
Não vimos vestígios de sangue o que prova que a nossa pontaria não estava famosa.
Porém, capturámos uma mulher, seus dois filhos e uma granada de mão. Logo ali, uma surpresa para nós que ainda éramos "checas".
A mulher capturada correu para o nosso guia a abraçá-lo: eram irmãos!
Após a destruição das palhotas decidimos (com autorização do major "Alvega") regressar ao Chai.
 
Tomámos o rumo mais curto em direção á picada Chai-Macomia para facilitar a deslocação da mulher com as crianças.
Ao chegar próximo da picada (perto da ponte de Mapuedi) solicitámos que as viaturas da companhia nos fossem buscar.
Quando os "Unimogs" chegaram, nova surpresa para os "checas" da 3508: a mulher começou a fugir com medo, porque nunca tinha visto um carro.
Aqui junto uma foto dos primeiros prisioneiros feitos pela 3508.
O menino que se encontra do lado direito da mulher tinha um tom de pele bastante mais claro que a sua mãe.
A criança tinha ainda alguns traços orientais, o que nos fez supor que a China não se limitava a dar apoio material á Frelimo e, por conseguinte, enviava cidadãos seus para dar ... apoio sentimental.
 

Foto de Livre Pensador.
 

 
Artur Gingão sim foi uma realidade o Silva ia ao meu lado e é algarvio.
 

Armando Guterres Na zona da Mataca, numa op para destruir um acampamento temporário, entre a serra e Muaguide, fomos 2 pelotões e GE de Muaguide, passámos por um grupo de machambeiras ao caju e nem nos ligaram, continuaram a trabalhar.
Disseram que o da espera um pouco se afastou.
Foi a única vez que vi população civil, se noutras seria possível um encontro imediato, pelo que me apercebi, seria possível em duas.
Mas o silêncio ensurdecedor ... se estivessem por ali ...
 
 
Rui Briote A emboscada a que te referes podia ter provocado mais mortes.
Na primeira ida à água costumava levar o pelotão até à ponte, mas naquele dia resolvi deixar uma secção na ponte que estava a ser reconstituída uns metros antes da ponte.
Essa secção ia no unimog do malogrado Rogério, logo os que ficaram além de se safarem ainda contribuíram para que a emboscada não provocasse mais mortes.
A ação do meu lançador de morteiro 60 o Cardoso, que começou a lançar granadas paralelas à picada levou os turras à debandada, provocando inclusive um morto, cujo corpo viria a ser descoberto uns dias após.
Quanto ao ferido foi o Silva atingido numa coxa.
Só nos apercebemos da morte do Rogério quando decidi avançar e deparamos que faltava um condutor...foi nesse curto espaço de tempo que o vimos morto do lado esquerdo da viatura.
Uma forte dor invadiu todo o grupo...
 
 
Luís Leote A vivência desses momentos, é de ir ás lágrimas.

 
Rui Briote É mesmo Luís Leote! Custou- me imenso em escrever o que escrevi, mas foi um descarregar do que vivo no meu dia a dia. São imagens e momentos que nunca mais se esvanecem.., desabafei.

 
Livre Pensador É verdade, Briote.
Esse elemento da Frelimo que foi abatido nessa emboscada só veio a ser descoberto uns meses mais tarde quando se fez a "capinagem" nas margens da picada.
Nessa altura encontrámos um esqueleto e uma cabeleira.
Abraço.
Ribeiro.
 
 
Ant Enc Ótima reportagem.
Um relato factual muito objetivo.
 
 
Rui Briote Amigo, como já disse ao Luís, foi muito difícil descrever o que passei, mas funcionou como um escape...ainda estou com as lágrimas nos olhos...
 

 
Livre Pensador Amigo Briote, todos os momentos difíceis vividos naquela guerra mexeram com os nossos sentimentos.
Porém, penso que "estes desabafos" podem contribuir para aliviar um pouco o stress que temos guardado dentro de nós.
Pelo que me diz respeito, posso confessar que após o meu regresso de Moçambique, frequentemente tinha pesadelos durante a noite relacionados com essa maldita guerra mas, devo confessar também, esses mesmos pesadelos foram diminuindo a partir do momento em que participei no meu primeiro encontro do batalhão no ano de mil novecentos e oitenta e ... tal em Coimbra, pois foi-me possível desabafar e "desopilar" com quem tinha passado pelos mesmos sacrifícios.
Abraço.
 
Duarte Pereira Livre Pensador (Ribeiro). Para ler com calma mais ao entardecer.
 
Rui Briote Duarte Pereira lê também os comentários...
 
José Guedes Para ler mais logo agora vou sair,..até mais logo,.
 
Duarte Pereira Nem todos terão reparado.
No meio dos comentários, por vezes vêm aparecem respostas relacionados com o assunto do comentário logo acima.
 
 
Duarte Pereira Mais um bom relato do Livre Pensador (Ribeiro).
O ter tomado algumas notas, ajuda agora a complementar as suas narrativas.
Essas "experiências" e outras "marcaram" quem "lá" esteve.
Houve e continuará a haver "traumas psicológicos". 
 "Perdemos" dois anos da nossa juventude?
99% assim o pensarão.
"Eu não".
Aprendi muitas coisas.
Apreciar o que nos cai no prato.
Alguns passaram fome e sede na serra do Mapé, eu fui um deles.
Se não fosse esse "estágio", só teria um amigo (EU). 
Andar aqui a conviver no Grupo, dá-me uma certa alegria.
Se eu lá não estivesse estado, poderia ainda estar mais "parvo".
Emoji smile
 
 
José Guedes Livre Pensador,. (Ribeiro) é sempre bom relembrar estes momentos por mais que a alma nos dóia,... e a prova é aquilo que o Briote diz que estava com as lágrimas nos olhos,. nunca ninguém vai esquecer aqueles momentos difíceis que todos por lá passaram,. uns de uma maneira outros de outra,... de uma maneira ou de outra todos sofremos,.
 
 
Ant Enc Nunca me queixei, por respeito a quem passou mal a sério.
E pelo que me recordo, as companhias da Mataca e do Chai tiveram estadias difíceis.

Não esqueço os anónimos heróis que, um pouco por toda a parte, se sacrificaram.