sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Ainda a história do macaco à caçadora..., por vários

Velhas DE Estremoz Alentejanas
(Duarte Pereira)

Há uns anos atrás

Boa tarde senhoras e senhoras.

Poucos nos conhecerão.

Fomos e seremos " a voz incómoda deste Batalhão".

Fomos " militantes" deste Grupo.
Estivemos, saímos e voltamos a entrar uma série de vezes.

Só hoje tivemos o prazer de ler este texto do compadre. Fernando Afonso.
Fernando Afonso 17 de Janeiro de 2018 22:14
Para mim a guerra terminou em Março de 74.
Procuro não falar muito desses tempos.
As minhas memórias estão bem arrumadas na gaveta.
Vivo tranquilo e feliz.
Um abraço.
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O que nos oferece dizer sobre o mesmo ?
Muitas "situações" deverão ser esquecidas, mas outras deveriam ser relembradas.
Exemplos:
Históricas pitorescas que terão ficado na memória.

Na Mataca : O padre foi convidado para um "divinal" almoço que foi " macaco".

Um furriel ? foi o mentor .
Quem terá sido? recorda-se? .

Fernando Afonso, sabemos que não foi o compadre, mas estaria lá para recordar este famoso almoço?
Recorda esta "Autoestrada"?


Armando Guterres No célebre almoço - também não estava eu.

Paulo Lopes Um pouco extenso (aliás, gostaria de transcrever um pouco mais para trás para ficarem bem melhor elucidados) mas, para quem quiser ou estiver interessado conhecer um pouco desta "história" do divinal e eclesiástico almoço, aqui fica:

.................................................... Chegados ao aquartelamento, o F......, com a nossa participação e conivência, continuou com o seu projecto, dando a conhecer a todos os graduados que se tinha apanhado dois coelhos para se fazer um petisco. 
Os bichos foram entregues ao primeiro-sargento que de imediato entrou na paródia, para que este, exímio cozinheiro de patuscadas —notava-se que gostava de comer a avaliar pela sua formosa barriga, tendo em conta que gordura é formosura— fizesse um belo coelho à caçadora.Entretanto fomos dando dois dedos de conversa com o capitão capelão. Dava perfeitamente para entender que era um homem de não tiranizar ninguém nem tão pouco apresentar a força divina com a sua força de galões de capitão.Tinha uma candura ingénua de jovem eclesiástico não tendo, no entanto, a boca constantemente cheia de milagres. Sabia bem o que estava a fazer e qual a sua missão: era apenas um pastor de ovelhas fardadas e sabia que, naquele local de cheiro a guerra, nem todos acreditavam nas suas palavras. Eu, pelo que me diz respeito, apenas ponho em causa o seguinte e que não consigo compreender muito bem: se do outro lado da guerra, dos que teimosamente tinham o cognome de turras, existe outro qualquer padre, pedindo ao mesmo Deus exactamente a mesma protecção para os seus homens, como é que o bom Deus iria resolver esta questão? Que lado ele defenderá? Que homens mereciam a sua salvação? Será que conseguirá terminar o conflito entre as partes terrestres? 
Pelo menos, até agora, não conseguiu pôr termo à ganância dos poderosos que, aliás, a grande maioria deles, se não todos, são muito dados a essas bênçãos do Céu, quando mostram o lado falso da sua face oferecendo este mundo e o outro aos altos eclesiásticos! Será que até ao bom Deus eles conseguem enganar? 

E lá fomos conversando. Laracha daqui, laracha dali, até que veio a ordem para início da festa: —O petisco está pronto! 

Todos os graduados, sem excepção, nem mesmo os sabedores do que estava dentro das travessas pronto a ser servido, se fizeram rogados aos pretensos coelhos! Estranhamente ninguém se lembrou que, coelhos, e desconheço a razão, foi animal que nunca foi visto em todo o enorme palmilhar que fizemos ao longo de toda aquela selva, provavelmente porque, se alguma vez existiram, pela sua fraqueza defensiva, depressa foram dizimados e extintos pela enorme quantidade de animais esfomeados, de tais apetitosas presas, que abundavam naquelas matas!!! 
O certo é que todos comeram alegremente e os comentários fugiam sempre para os mesmos adjectivos: 
— Maravilhoso. 
— Delicioso manjar. 
— Ricos coelhos. 
— Divinal. 
— Porra que esta merda está boa! 

O F........, como era hábito nas chegadas das operações, já não estava com todos os seus sentidos a trabalhar em pleno. 
Ria a bom rir, gozando deliciosamente a sua partida mas, tal como todos os outros, encharcava o pão no delicioso molho de macaco à caçadora! Não sobrou nada! Se mais houvesse, mais iria! O pior veio a seguir: na continuação da sua maquiavélica construção, o F........ saiu da mesa e apareceu um pouco depois com uma bandeja onde trazia, não uma qualquer sobremesa para terminar a patuscada, mas sim, as cabeças dos desgraçados macacos! E para colocar um pouco mais de pimenta no seu cenário, só por si, bastante elucidativo, uma das cabeças vinha com um cigarro aceso na boca como que a gozar o espectáculo que se seguiria: Os sabedores do que tinham estado a comer, riam-se às gargalhadas. Os outros, que pensavam ter acabado de se deliciarem com coelho, depressa transformaram essa guloseima em mau estar. Sofreram um impacto digestivo que, não fosse o restaurante ter um parque de estacionamento do tamanho do mundo e não haveria lavabos que chegassem para tanto vomitar! A maior vítima foi o capelão que, coitado, enquanto ficou na Mataca ,o que durou até à chegada do táxi aéreo das quartas-feiras, não conseguiu comer nada que se pudesse chamar realmente de comer! Tudo vomitava! 
Espero que nos tenha perdoado e nos mantenha nas suas orações diárias que, presumo, as tenha e esqueça esta pequena maldade praticada por este seu rebanho de lobos com pele de cordeiros (ou será que é ao contrário?!!!). 
........................................
in "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
paulo lopes


Fernando Afonso Vamos lá então relembrar. No final de uma operação fizemos uma paragem nas imediações do aquartelamento fazendo tempo para entrar (só entrávamos no fim do dia). De repente fomos visitados por um bando de macacos fazendo acrobacias nas árvores por cima das nossas cabeças. Surgiu então a ideia de alguém e prontamente corroborada pelo Capitão Salgado, de matarmos 2 macacos. E assim foi de facto. resto da história é como o Paulo Lopes diz contudo tem uma imprecisão. Quando entrámos no aquartelamento eu próprio avisei o Paulo do que iria acontecer porque ele tinha na altura alguns problemas de estômago. Eu e ele fomos talvez os únicos que não comemos. Na altura estava lá também o médico que comeu sem problemas. O padre é que passou mal de facto. 
Geri




Fernando Afonso Já agora e para ser mais preciso devo dizer foi um jantar e não almoço.

 Não consigo dizer com precisão mas não me ademinaria nada que a ideia fosse do Ferreira 

( conhecido entre nós por LONTRA ).

Paulo Lopes Viva Fernando Afonso! Tudo bem contigo amigo?

Conforme já diversas vezes informei por aqui e para que não ficassem algumas dúvidas, o livro que escrevi, não o fiz com o intuito de ser um diário mas sim um romance que, não tendo as devidas e correctas acções dos factos (até porque não me recordava exactamente de tudo), tentei dar-lhe uma parte de ficção sem, no entanto, lhes alterar o essencial das questões por que passámos. 

Os diálogos teriam que ser inventados mas dentro do contexto, as histórias terão, forçosamente, que ter imprecisões mas aproximam-se. 
Por isso também já por aqui disse que foi pena não ter conhecimento desta página porque, com ela, e nas diversas conversas, avivei a memória e tive conhecimento de situações que me passaram ao lado mas que ficariam bem "encaixadas" no dito livro. Assim como, e exactamente como este capitulo, me alertaste e bem, para factos mais correctos da verdadeira história. 

Fico-te grato pela tua correcção e que, também, elucidará melhor os que queiram saber algo da nossa "história".

Quanto ao mentor deste "filme" e disso tenho a certeza, foi o nosso amigo e sempre bem disposto Ferreira (Lontra). 
Só não coloquei o nome no livro, como o não fiz com os nomes de todos os nossos camaradas (excepto o meu) com quem convivemos estas passagens da nossa vida porque não estava devidamente autorizado para o fazer.

Obrigado pela tua correcção amigo.

Aquele abraço e, por favor, se leres mais alguma coisa extraída do livro e que eu coloque por aqui, se tiveres memória, "arrefinfa-lhe" a correcção.

Gerir




Velhas DE Estremoz Alentejanas Compadre Jose Augusto Palminha - O compadre também " macacou" ? 
Fernando Afonso Evidentemente que a 45 anos de distância é natural que algumas imprecisões possam surgir. A minha intenção foi apenas e só aproximar mais a história da realidade. Como já disse as minhas memórias da guerra estão guardadas e ao longo destes anos raramente falo delas. Claro que nunca se podem apagar mas evito falar. A vida continuou. Estou bem comigo e espero que todos vós também. Um abraço.
Gerir




Paulo Lopes E que continues sempre bem Fernando Afonso, feliz e de saúde é o que te desejo meu amigo. E não julgues que tive quaisquer pensamento menos próprio pela tua correcção! Como disse, e estou a ser sincero, agradeço todas essas correcções, muito úteis e esclarecedoras, para um melhor entendimento dos factos. E não foi 45 anos depois que eu escrevi o livro. Escrevi-o há mais de dez anos mas, como te disse, não é um diário nem foi escrito como tal. Apesar de não quereres trazer para fora dessas tuas "gavetas" onde guardas as memórias, por vezes faz bem "arejar" as coisas guardadas! Aquele abraço Fernando Afonso e não deixes de aparecer por aqui,
Gerir


Fernando Afonso Aproveito para vos comunicar que o nosso amigo furriel enfermeiro 

Lourenço está internado há cerca de um mês no hospital. 

A situação é complicada. 

Ontem foi transferido para uma unidade de cuidados continuados em Idanha a Nova.

Paulo Lopes Isso é que é uma má notícia!


Paulo Lopes Se te for possível amigo Fernando Afonso, vai-nos mantendo informados.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

A Escolha Satânica, por Manuel Bastos, apresentado por José Leitão

A ESCOLHA SATÂNICA de Manuel Bastos
Eu? 
Eu estou bem. 
Só quando passa o efeito dos remédios é que a vida parece um lugar onde não se pode estar.
Estou cheio de cicatrizes, furriel, cicatrizes por dentro, das que não saram.

E você furriel? 
Como estão as suas cicatrizes? 
Não tenha vergonha das suas cicatrizes furriel, elas são a prova de que corremos riscos; e viver é correr riscos. 
Uns ganham ou perdem, outros nem uma coisa nem outra, porque não correm riscos. 

Eu não estou doente da cabeça furriel, eu tenho saudades. 
Tenho saudades da guerra. 
Lá, quando as coisas corriam mal, a gente trocava-lhes as voltas, a gente atacava os gajos pelos flancos. 
Com o tempo aprendemos a resolver os problemas à porrada. 
Pró fim até sabia bem quando tínhamos que dar uns tiritos. 

Você esteve lá pouco tempo…
Está bem: Tu!
Estiveste lá pouco tempo, e às vezes penso que tiveste sorte. 
Ficaste sem uma perna, não é pêra doce, mas há coisas piores furriel…

Ok, ok: Bastos!
Acho que aquilo deu cabo de mim.
Fiquei amputado por dentro. 
Mas ainda não inventaram uma prótese para esta amputação. 
Atafulham-me com remédios e eu fico meio grogue; e depois que se lixe, fico a voar baixinho.
Isto aqui é assim. 
Um dia puxa o outro. 
Começa devagar e vai acelerando, acelerando, e no final do dia, pumba! 
Uma carrada de comprimidos e eu fico sem sentir nada; nem mau, nem bom.

É por isso que às vezes me lembro que se ao menos pudesse trocar as voltas a isto, atacar pelos flancos. 
- Ai é? 
Vocês estão aí emboscados à nossa espera? 
E nós atrás deles pelo capim fora, lembra-se ó furriel... ó Bastos, lembras-te? 
Nesse dia não tiraste fotografias. 
Estavas mais branco que a cal da parede. 
Mas os gajos fugiram, e no mato quem é que apanha aqueles gajos? 
Nem pensar.

Depois, no Chindorilho, foste ferido. 
E tu a dizeres que nunca mais jogavas à bola. 
Às vezes penso nisso e apetece-me rir… 
Tu nunca jogaste à bola, foste sempre um nabo. 
Mas na altura até me vieram as lágrimas aos olhos. 
"Nunca mais jogo à bola."
Dizias tu para o enfermeiro Costa.

Mas nós ficámos lá, percebes? 
Aquilo parecia que não tinha mais fim. 
Aquilo mexe com um gajo, Manel. 
O pessoal aqui não sabe. 
E a malta nova então? 
Às vezes começo a falar sobre estas coisas e a Zulmira olha para a filha, a filha olha para ela, e passado um bocado já nem me ouvem. 
Eu calo-me, e elas nem notam que eu não acabei a história.
Deve ser uma chatice ouvir um gajo falar destas coisas. 
Nós é que sabemos como aquilo foi, não é?
Até eu acabei por ficar cansado de me ouvir. 
Ouço os meus pensamentos, percebes? 
Estou cansado.
Estou farto de ser eu. 
Queria despir-me de mim como quem tira um casaco usado de mais. 
E ficar nu, livre de mim. 
E depois, quem sabe, sendo outro, ter esperança de novo. 
Ilusão de novo ao menos.
Estou cansado. 

A cada dia que passa parece que acabei uma grande viagem, mas que logo tenho que partir. 
Tenho um relógio dentro de mim que não pára, um carrossel fantasma sem um único passageiro, que gira, gira, e não vai a lado nenhum.
Mal fecho a pestana, logo me voltam os pesadelos. 
Para onde foram os meus sonhos é que eu não sei. 
Mal me deito para dormir vejo logo um milhão de olhos a acusarem-me, sem eu saber de quê. 
Pessoas e sombras. 
Mas as sombras são muito mais que as pessoas.

Não me olhes assim sem dizer nada. 
Tinhas sempre uma palavra pronta para dizer, uma piada. 
Mesmo quando as coisas não eram para piadas.
Metia-te confusão quando me vias escrever sem pôr as cartas no correio, não era? 
E tu: - Hás-de arranjar inspiração antes da guerra acabar!

Acho que nessa altura já me incomodavam os meus pensamentos, e precisava de os pôr cá para fora. Punha-os no papel e pronto, ficava mais sossegado. 
O que é que um homem que anda a brincar com a morte diz à mulher que deixou em casa? 
Ela queria ir para França, e eu: - Nem sou homem nem sou nada...

Mas mal pus os pés em Mueda vi logo que devia ter dado à sola em vez de me armar em parvo. 
Você é que levava aquilo a sério furriel… 
Manel, levavas aquilo a sério, pelo menos no princípio, porque depois começaste a abandalhar e a tirar fotografias a tudo, até nos golpes-de-mão.

A Zulmira diz que agora falas contra a guerra. 
Aquilo muda a gente não é?
Foi lentamente ou aconteceu alguma coisa que nos deu a volta? 
Sei que aconteceu alguma coisa, mas não me lembro do que foi. 
Sei que me esqueci, mas como se tivesse acabado de pensar nisso um minuto antes, e logo me fugisse a ideia. 
É como se me tivessem amputado tal como te amputaram a ti. 
Falta-me esse bocado. 
O lugar onde estava essa lembrança de que não me consigo lembrar. 
E sabes lá como isso me incomoda? 
É um pesadelo.

Quando voltares, pede à Zulmira… não, não, talvez seja melhor pedires à minha filha. 
Pede-lhe que me traga fruta, ou flores, ou um livro. 
Algo que me traga algum afecto.
Acho que as assusta este lugar. 
Da primeira vez que aqui estive, vinham todas as semanas ver-me. 
Agora ainda vêm, mas menos.

Sabes como era às vezes, quando íamos pró mato? 
Aquela impressão de que as coisas iam correr mal? 
É o que sinto agora todos os dias.
Parece que ainda te estou a ver a fazer desenhos com um pauzito na areia da picada. 

Eu com a ideia que havia um muro enorme à nossa frente. 
Ou então um precipício. 
Algo que não deixaria a gente sair dali.
Agora, ao pensar nisso, iria jurar que não se ouvia nada. 
Havia um grande silêncio. 
Aquele silêncio que ouvimos quando morre alguém. 
O silêncio de a vida se ter tornado um lugar onde não se pode estar.

Levei tempo a perceber. 
Só havia lugar para dois no helicóptero. 
Eu só pensava: 
- A esta hora da tarde o que ficar vai morrer.

Nem me recordo da emboscada. 
Atirei-me para baixo da Berliet e deixei-me lá estar. 
De vez em quando dava um tiro, mas o capim não deixava ver ninguém. 
O alferes mais uns cinco gajos atacaram os turras pelo flanco esquerdo e eles fugiram. 
Resultado: três feridos graves. 

Depois o furriel... tu... ficaste a fazer riscos no chão como se estivesses a chorar.
Eu perguntei: - Quem é que vai ficar, furriel?
Olhaste para mim como se eu estivesse a falar chinês e passado muito tempo disseste: - Sei lá. Ou o que tiver mais hipóteses de aguentar a noite toda ou o que não tiver hipóteses nenhumas.

Depois continuaste a rabiscar com o pauzito no chão como se estivesses a calcular as hipóteses. 
Há muitas maneiras de chorar.

Lembro-me tão bem de todas as coisas que não têm interesse nenhum e não me lembro nada do que foi realmente importante. 

Qual deles ficou? 
Será que foi porque aconteceram muitas coisas depois disso que já não me lembro? 
É muito estranho que não me lembre. 
Quem decidiu qual deles deveria morrer? 
Quem foi que fez o papel de Deus? 
Como se pode viver depois de uma escolha dessas? 
Uma escolha tão danada que se apagou da minha cabeça.
A verdade é que se me apagaram muitas coisas na minha cabeça. 
Não sei ao certo se seria melhor conseguir lembrar-me, mas pelo menos teria mais descanso. 
Perco noites a tentar recordar-me de uma coisa e depois já nem me lembro a que propósito é que me queria recordar.
É como se eu me tivesse esquecido para não ter que fazer luto. 
A vida é assim, não é furriel? 
Todo o afecto acaba em luto.
Que foi que me aconteceu, furriel? 
Tu estiveste lá pouco tempo.... mas aconteceu alguma coisa importante, muito importante. 
Muito importante de mais...

Sabes o que penso? 
Penso que nas guerras Deus mete dispensa e quem fica a mandar é o Diabo.
Depois, Deus quer voltar de novo ao activo mas o Diabo não deixa. 
Pelo menos comigo é assim, furriel. 
Ainda tenho o Diabo no activo.
Por isso é que eu não posso escolher, não posso decidir o que faço à minha vida. 
Não se pode escolher, quando é o Diabo que está a mandar.

Também deste opinião? 
Atiraram a moeda ao ar? 
Ou fizeram Pim pam pum! 
Cada bola mata um... e depois... ficou um ao calhas? 
Um escolhido pelo Diabo.

Também se te varreu isso da cabeça, ou consegues atirar tudo para trás das costas.
 "Atira isso pra trás das costas." 

Diz a Zulmira para mim, como se fosse possível atirar uma guerra inteira para trás das costas. 
Eu bem quero esquecer, mas o que quero esquecer não esqueço e aquilo de que me quero lembrar não me lembro. 
"Tens que ter coragem." Diz ela. 
Coragem... As pessoas acham que isto é falta de coragem. 
Isto são saudades. 
Não saudades da guerra, Manel. 
Saudades de mim nessa altura. 
Saudades de quando eu era outro e tinha medo e coragem e era tudo nítido. 
Agora não sinto nada, está tudo embaçado, e eu sou um casaco velho que não consigo despir.

Quando andavas de máquina fotográfica na mão em vez da G3, era por falta de coragem, era? 
Eu bem vi. 
Aquilo começou a mexer contigo. 
Foi ou não foi? 
Ficavas lá mais uns tempos e vinhas pior que eu.

Fala com a minha filha, pede-lhe que me traga flores. 
Que me traga alguma coisa que me faça sentir que a vida é novamente um lugar onde se pode estar.

Sabes? Acho que devia ter ficado em África. 
Quer dizer, acho que devia ter morrido lá. 
Pensei assim muita vez: se voltar nunca mais serei o mesmo; nada será o mesmo. 
Nunca mais. 
Se ficar aqui, ao menos as pessoas que gostam de mim vão recordar-me como eu era. 
Como eu era quando ainda gostavam de mim.

Antes de Deus ter metido dispensa e o Diabo ter ficado no activo.

Olha, ela que não me traga flores, Bastos, as flores também morrem.
MANUEL BASTOS
In Cacimbo.


quarta-feira, 11 de julho de 2018

O Paludismo..., por Manuel Bastos, apresentado por José Leitão





José D'Abranches Leitão

PALUDISMO (Quantas vezes ficámos "de molho"!!!!)

O parasita Plasmodium ao atravessar o citoplasma de uma célula epitelial da fêmea do mosquito, na forma com que penetra no corpo do ser humano e de outros vertebrados
O Paludismo

I

O vale de Miteda, visto de cima, é um oceano vegetal. 

Para qualquer lado que se olhe só se vê a mancha verde-musgo da floresta. 
Ao longe, a Norte, somente o Planalto dos Macondes quebra esta monotonia oceânica. 
Um pouco acima das copas das árvores passa uma silhueta de insecto, com a sua cabeça grande, os olhos enormes ocupando a cabeça toda e o corpo alongado. 

Não se vêm as asas, apenas um halo translúcido provocado pelo movimento do ar. 
Chama-se Alouette III e dirige-se solitário, para Sul. 
É estranho que vá tão baixo e ande tão tarde longe da base.

Acima, muito acima do helicóptero, outra silhueta parecida com ele pertence mesmo a um insecto. 
Não menos estranho que voe tão alto e já ande por aqui tão cedo. 
Não pode ver o Alouette, nem tampouco a enorme lagarta, constituída pelo primeiro grupo de combate da CART 3503, que serpenteia lentamente na picada lá em baixo. 

Não pode vê-los porque se trata de um Anopheles Gambiae fêmea, e os mosquitos não vêm, só distinguem a luz da sombra. 
Talvez lhes baste, para saberem quando chega a noite, ou para fugirem às palmadas com que nós, normalmente com os nervos em franja, os tentamos matar. 

Parece pouco para milhões de anos de evolução genética, mas o mosquito faz muito mais do que pôr-nos os nervos em franja, o mosquito é, na verdade, o animal mais perigoso do mundo. 
Uma picada de algumas, de entre as 2.500 espécies existentes, basta para matar um homem e, em África, morre um milhão de pessoas, todos os anos, de uma simples picada. 

Esta anófele, para usar o nome bem português, não precisa de ver os soldados, o dióxido de carbono exalado por eles indica-lhe a uma grande distância que o jantar está pronto. 
Muita hemoglobina suculenta, que os mosquitos não podem ver a refeição, mas por assim dizer, cheiram-na.

O tornado provocado pelas pás do Alluete III aspirou a anófele brutalmente, como se um poder superior quisesse excluí-la desta história, por sabê-la daninha, como é de seu latino nome próprio, porém, esta história está longe de acabar aqui…

A humidade é tanta que custa a respirar. 
O ar tem uma espessura oleosa. 
Estamos encharcados como se tivesse chovido torrencialmente. 
Não tenho um centímetro quadrado do corpo seco. 
A paisagem dissolve-se vinte metros à nossa frente, onde a picada e a fila de soldados desaparecem no nada. 
Parece que caminhamos em direcção a um espelho embaciado que nos vai engolindo. 
O som parece propagar-se como debaixo de água, ouve-se o ruído mais distante como uma percussão nos próprios tímpanos.
Mas vozes, não se ouve nem um sussurro, apenas os passos dos soldados e o ininterrupto fervilhar da floresta. 
Parecemos uma fila de almas penadas. 
Estamos vivos, não há qualquer dúvida; o cheiro acre, inconfundível, da terra húmida de África e o hálito morno da floresta, tão estranhos, mas cada vez mais familiares, chamam à realidade.

À frente o rádio crepita qualquer coisa repetidamente, na tentativa de se fazer entender. 
A antena em forma de fita cresce um metro acima das costas do soldado e vibra no ar com um som metálico. 
O soldado resmunga um chorrilho de palavrões em surdina, intercalados com as frases: "Aqui Charlie Tango. Diga se me ouve, escuto." 
Em resposta, o rádio tossiu e depois calou-se de vez. 
O sentimento de irrealidade regressa e convida ao devaneio. 

Somos uma lagarta gigante de quarenta e seis pernas que avança como se soubesse ao que vai e no entanto, individualmente, nenhum de nós parece ter o ar de quem sabe alguma coisa. 
Num acesso de pânico recordo-me que sou eu mesmo quem de todos nós mais deve saber o que está aqui a fazer. 
Vinte e três homens dependem da minha decisão para irem a algum lado. 
De repente, o mapa que levo no bolso e a bússola pendurada ao peito transformaram-se em objectos estranhos que deixei de saber utilizar. 
Que diabo faço eu aqui? 
Rogo pragas ao alferes que adoeceu, e de repente vem-me à cabeça que se eu der uma ordem estúpida talvez os soldados se amotinem. 
Ora, se a estupidez fizesse amotinar os soldados, nenhum de nós estava aqui agora.

II
O estampido inconfundível de um morteiro acorda-me para as minhas responsabilidades. 
Estiramo-nos no chão aguardando o rebentamento da granada. 
Caiu longe. 
Faço sinal para continuarmos. 
A julgar pelo som, estamos mais perto do local do disparo do que do local do impacto. 
Não parece haver perigo, foi um tiro à sorte, decerto para que uma reacção nossa nos denunciasse. 

Passa um helicóptero sobre nós com aquele som sincopado acompanhado de um silvo. 
Voa muito baixo e vai estranhamente só, provavelmente trata-se de uma evacuação urgente de algum ferido e não foi possível arranjar escolta. 

Começa a anoitecer e ainda estamos longe do objectivo. 
Soa um novo disparo de morteiro, encolhemo-nos um pouco mas não nos atiramos ao chão desta vez, mais por preguiça do que por confiança nos nossos cálculos quanto à falta de pontaria do atirador. 
Se calhar os morteiros são para o helicóptero. 
Ouvi dizer que os turras fazem isso às vezes. 
Seria mais fácil encestar com uma bola de básquete num cesto voador.

Os mosquitos começam a importunar-me. 
Não passam cinco minutos que a minha mão esquerda não pareça um limpa pára-brisas a enxotá-los de um lado e do outro da cara. 
Vão aqui exactamente vinte e três homens e não vejo mais ninguém nesta aflição. 
O alferes Barreiros costuma dizer que é da zurrapa da Bairrada, que se eu bebesse bom vinho verde isto de certo não aconteceria. 
Assim que pararmos lá terei de barrar-me com o repelente que me transforma numa bosta de vaca ambulante e que costuma repelir tudo, até os meus camaradas.
O dia morre de repente e cola-se-nos a noite ao corpo como uma manta húmida e pegajosa.

…Impossível saber o que aconteceu àquele mosquito. 
Aqui em baixo, entre as folhas das árvores onde um risco de luar deixa ver um pouco; uma silhueta escura, a contraluz, na sua habitual posição inclinada, identifica uma anófele. 
Inclinada como um felino que levanta os quadris antes do salto, formando uma linha quase direita com a probóscide, cabeça e corpo. 
Se é a mesma que o helicóptero sugou para baixo ao passar, está em perfeita forma, e o dióxido de carbono, em maior abundância que o habitual, garante-lhe que o terreno de caça foi bem escolhido. Agora é só escolher a melhor presa. 
Ela não vê o soldado que esbraceja como possesso, nem ouve as suas imprecações, mas um componente do seu suor indica-lhe que ele pode fornecer uma boa proteína para o fabrico dos seus ovos, e produzir cerca de 1.000 ovos na sua curta vida de 3 ou 4 semanas requer a melhor proteína que ela puder encontrar.
O soldado deu uma violenta bofetada em si mesmo, mas não por ter enlouquecido de vez: em quase duas horas de autoflagelação, quis certificar-se que antes de pôr o malcheiroso repelente, matava ao menos um mosquito. 
Depois olhou para a mão ensanguentada e sentiu-se vingado.

A anófele acabou inglória antes de ir procurar uma gota de água para largar os seus ovos, mas os parasitas unicelulares que a sua saliva largou, correm agora como torpedos pelo sangue do soldado em busca do fígado. 
Aí se alojarão para a investida final. 
Entretanto multiplicam-se incessantemente. 
Durante os próximos dias o soldado nada notará, talvez um pouco de calor a mais, talvez um estômago mais intolerante à ração de combate, mas aqui se define a sua vida ou morte, dependendo do alvo escolhido pelos torpedos. 
Se for o cérebro, evitará um dia de estourar com uma mina e de dar uma despesa danada ao erário público…

III
A música é a única coisa fluída. 
O ar parou, tal como o pensamento. 
Não parece luz esta claridade tão esquálida e o ar tem uma espessura tão grande que tudo parece preso dentro de uma bolha de âmbar. 
Mas é pura ilusão, toda a vida e o próprio ar devem ter abandonado este lugar e eu não estou mais vivo que o resto, apenas o meu pensamento ainda persiste como um reflexo de uma coisa que aconteceu há muito tempo. 
O meu estômago é um odre virado do avesso e a minha cabeça parece um timbale que estrondeia a cada batimento do coração.
A música, num pequeno leitor de cassetes que alguém deixou esquecido, flúi, é certo, mas não descodificada, como algo que não agrada nem agride, como palavras ditas num língua nunca dantes ouvida, sem qualquer sentido.
Estou sentado na cama sem força para me mexer. 
De duas em duas horas sucedem-se o Verão e o Inverno no meu corpo: dum gelo glacial que me congela o esqueleto dentro do corpo, a um calor dos infernos que me faz saltar os olhos das órbitas. 
O mal-estar atingiu um nível que ultrapassa a capacidade do sofrimento, como o som que de tão agudo se deixa de ouvir.

A janela do meu quarto deixa-me ver o que resta do mundo: uma paisagem descarnada onde as árvores ficam como manchas numa fotografia com o lençol do céu por cima sem cor nenhuma, nem cinzento sequer. 
Vêm-se ao longe três vultos. 
Um mais atrás que parece andar e dois à frente que parecem falar um com o outro. 
Se eu fechasse a janela talvez se respirasse melhor. 
O cigarro entre os dedos, que acendi mecanicamente, gangrena numa torcida de cinza, desafiando a gravidade. 
Sinto o calor da brasa a chegar aos dedos, mas não me mexo. 
Sei que posso mexer-me, se quiser, mas não me mexo. 
Olho apenas os três vultos ao longe que parecem não se ter mexido também. 
Apesar de um, mais atrás, parecer andar. 
Os dedos pulam sob o efeito da dor sem que eu tivesse querido, e o cigarro cai no chão, soltando uma pequena centelha e depois um cabelo de fumo risca o vazio em linha recta à procura, em vão, de uma aragem que o disperse.
A música no pequeno leitor de cassetes é ininteligível, como se a mesma frase musical se alongasse no tempo sem progredir. 
No quadro que a janela desenha na parede do quarto, que olho sem a mínima vontade de fechar, os três vultos continuam no mesmo sítio, embora o de trás, já disse, pareça andar, na pele ressequida daquela paisagem com um lençol de céu incolor por cima. 
Não quero acreditar que isto seja apenas a memória do dia em que morri. 
Não quero ter morrido num dia assim.

…O parasita do paludismo ataca primeiro o fígado e a pouco e pouco, destrói as células sanguíneas alimentando-se da hemoglobina dos glóbulos vermelhos, o que inibe a sua capacidade de transportarem oxigénio, provocando anemia e favorecendo a introdução de toxinas que provocam febres elevadas.
Depois de uma sucessão de várias horas de frio e de outras tantas de febres altas, segue-se uma fase de transpiração intensa que precede, nas ocorrências benignas, o fim da malária e que é acompanhada por uma sensação de alívio e bem-estar…

Acordo e fico completamente desperto. 
Tive um sobressalto com o barulho repentino da chuva que se abateu abruptamente sobre o telhado de fibra de cimento. 
Toda a gente dorme profundamente devido à noite de batota até às tantas. 
A chuva não forma uma cortina, é uma parede compacta, um corpo de água, uma cascata que provoca um trovão contínuo no telhado. 
Acho que se saísse agora para a rua corria o risco de morrer afogado.
No quarto, os outros viram-se para se agarrarem ao sono, mas o ribombar da chuva e o calor sufocante não os deixam sossegar.
Estou completamente encharcado de suor, mas aparte uma grande debilidade e uma ligeira sensação de fome, sinto-me bem. 
Por contraste com o mal-estar dos dias anteriores até sinto uma certa leveza.

A chuva, uma hora depois, parece cansada de tanto cair. 
Agora é uma poalha espessa. 
A água a escorrer por todo o lado faz crer que a terra acabou de emergir do próprio mar. 
As flats; como nós, os furriéis, chamamos às barracas onde dormimos; parecem submarinos que acabaram de vir à superfície. 

O calor, porém, não abrandou nem um pouco. 
Saí da flat e estou completamente nu à beira da principal rua de Mueda. 
Esfrego o corpo todo com sabonete Pati e a chuva lava-o de imediato. 
Em Mueda é a única maneira de tomar banho em água limpa. 
Agora que a chuva amainou já se consegue ver à distância, e há alguém ao longe que parece ter interrompido a corrida para o bar para se certificar que havia um gajo nu no meio da rua. 
Dou por terminado o banho e dirijo-me para a flat, nu, de sabonete na mão, mas com passo decidido e ar digno.

…É assim a roleta russa desta guerra: poupa-se um soldado à morte quase certa, não por humanidade ou por compaixão, nem tampouco por estratégia, apenas pelo mais fortuito acaso. 
Até parece que Deus joga xadrez com eles. 
O que estará reservado nesse jogo a este peão? 
Uma mina na picada de Omar aguarda silenciosa que ele se restabeleça completamente. 
Quem ficará a perder é o erário público.
Manuel Bastos


quinta-feira, 5 de julho de 2018

A Compreensão da Guerra, por José Nobre



O José Nobre escreveu este texto de uma qualidade impressionante sobre a realidade que viveu...

Ele esteve em Muidumbe (Cabo Delgado - Moçambique), que distava não mais de 40 quilómetros de onde eu estive (Chai), possivelmente em épocas diferentes, dado que o aquartelamento de Muidumbe foi abandonado, creio que antes de Fevº de 1972.
40 quilómetros de picada com uma paisagem deslumbrante, mas de perigos escondidos em cada metro que pisávamos.
Mas o texto posso subscrevê-lo, senão na totalidade, pelo menos em muitos dos sentimentos que a maioria de nós trouxe daquela terra (Moçambique) que nos fez sofrer, mas que aprendemos a amar com todas as nossas forças.
Bem hajas José Nobre...

Jose Capitao Pardal



José Nobre

A Compreensão da Guerra.
Paris – 25 de Abril de 1970.
Pela primeira vez o meu pai questionou-me sobre a guerra, a minha guerra em terras moçambicanas.
Era o dia do seu aniversário. 
Até esse dia, raramente falei da guerra, a interior e a outra, a das armas. 
Estávamos os dois sentados à mesa, enquanto a minha mãe preparava o bacalhau cozido com batatas.
- Nunca falas da guerra em Moçambique.
- Não tenho nada para contar, pai. Voltei e isso é o mais importante.
Calei-me,não sabia o que dizer, o que responder. 

Seis meses depois da minha chegada a Lisboa, depois de ter deixado o navio Niassa, ancorado no caís de Alcântara, vazio, de todos os gajos que corriam para abraçar aqueles que os esperavam. 
Não sabia por onde começar. 
Dizer-lhe que fiz uma coluna militar de Lourenço Marques até Mueda, quase três mil quilómetros de picadas. 
Não te vou contar, guardo essa história só para mim.

Sabes pai, é como ir de Lisboa a Berlim, por estradas de terra batida. 
É veres a riqueza dos colonos portugueses, as grandes plantações de algodão, de café, de ananás, de laranjeiras e de milho. 
É veres a miséria daquele povo negro, que trabalhava desde o dia nascer, até o sol se esconder. 
Não quero chorar, pai, não quero falar das crianças, sim das crianças que nós vimos morrer, e dos comentários que ouvi, “é menos um turra,” diziam. 
Queres que eu te descreva as paisagens moçambicanas? 
Não consigo. 
As trovoadas eram como fogos de artifício, e o cheiro a terra molhada, vermelha, aquela terra que nada tinha a ver com a nossa, mas que me ficou agarrada à pele, ainda hoje. 

Os pesadelos são menos frequentes, mas por estranho que pareça, tenho saudades da minha caserna de Muidumbe, saudades do cheiro da minha espingarda automática, a minha amiga G3, sempre oleada, sempre pronta a disparar. 
Não, não matei ninguém, ou então não sei. 
Numa emboscada, os tiros são tantos, que no final não sabíamos, quem matou quem. 
Não, eu não, só desfiz algumas árvores, estendido na picada, entre Mueda e Muidumbe, naquela tarde chuvosa, naquela emboscada que durou minutos. 
Horas? Não pensei em ti, nem na mãe, não pensei em ninguém. 
Estava ali, deitado na picada tentando sobreviver. 

Por vezes, acordo sobressaltado. 
Volto a Muidumbe, adormeci no abrigo, estou de vigia no posto número cinco, aquele, a norte do aldeamento, alguém cortou o arame farpado e rasteja na minha direção, agarro uma granada, tiro a cavilha, acordo.

Não te conto, pai, não irias compreender, mas não serias o único. 
No início tivemos medo, até da nossa sombra, cada negro era um “turra,” um inimigo, um gajo que nos queria tramar, mas, pouco a pouco compreendemos que os invasores éramos nós e que aquela terra não era nossa, a nossa terra. 
A população branca, os colonos,viviam a anos luz da realidade, nunca se aperceberam que aquela guerra não tinha solução, viviam embriagados pela vida que tinham nas grandes cidades, nas grandes fazendas, na vida mundana, nos bons restaurantes, nas grandes caçadas, conduzindo bons carros, gozando a vida. 
Vida de colono, como dizia o meu amigo, Augusto, condutor, como eu, e que fez comigo a travessia de Moçambique de sul para norte. “Estes gajos é que gozam a vida, têm as negras que querem, fazem filhos mulatos a torto e a direito, compram virgens em troca de um litro de azeite, ou de um garrafão de vinho, e nós é que morremos.”

Pai, não quero que conheças a desumanidade, a nossa e a da guerra, esquece a minha ausência. 
Não tenho palavras para te dizer o que senti o que sentia, o medo, a saudade e a angustia de mais uma noite que se adivinhava, igual a muitas outras. 

Posso contar-te uma história bem diferente daquela que vivi, mas não quero. 
Se soubesses a verdade, dirias que não, que não foi o teu filho que viveu aquela guerra. 
Nunca te contei, nunca te contarei.
Parabéns, PAI.
Apontamentos – Moçambique – 1967/1969 – França – 1970/1980.