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sábado, 19 de setembro de 2015

Morteirada, por Paulo Lopes

Paulo Lopes
 
 
Como disse... cumpro, só para chatear quem não gosta! Lá vai a passagem em que fomos morteirados numa operação:
(...)
 
Era Domingo de Pascoa.
 
Ao longe já se ouvia o bater das hélices das moscas gigantes.
 
Apressamo-nos a colocar as telas de sinalização de cor berrante para que a nossa localização fosse detectada mais rapidamente.
Primeiro passou um bombardeiro T6 e já se avistavam os helicópteros.
Eram três e enquanto despejavam a carga que traziam (água e rações de combate), o T6 sobrevoava a zona.
Não foi longa a transacção de mantimentos e, um a um, os helicópteros deslocaram ficando o seu ruido característico a desvanecer-se pouco a pouco, devolvendo o silencio sagrado à floresta apenas, aqui e ali, desmantelado com o chilrear duma ave ou um grito de animal que detectava a nossa presença e se sentia ameaçado nos seus domínios.
 
Uma Feliz Pascoa para todos.
 
Rapidamente foram distribuídas as rações e água.
 
À mesma velocidade, abandonamos aquele local que, com o ruido que as máquinas voadoras espalharam a largos quilometros, era alvo fácil para uma tentativa de ataque com morteiros.
 
Na sequencia da nossa caminhada, rasgando a floresta, dilacerando a mata sabendo que, na companhia dos G.E., não haveria desvios de monta que atrasassem a nossa intenção, alcançamos o nosso segundo objectivo ao cabo do sexto dia: não se encontrava absolutamente ninguém e por isso não houve qualquer contacto.
 
Toda aquela zona estava sobejamente avisada da nossa presença e da enorme formação que actuava. Por isso todos se tinham retirado das machambas e abandonado todas as palhotas, refugiando-se numa das tantas bases muito bem simuladas e guardadas naquela difícil Serra de Mapé.
 
Limitámo-nos a rodear toda a zona de plantações e montar segurança para que os nativos destruíssem tudo: milho, mandioca, mapira, amendoim, feijão, tudo o que estivesse plantado e que já estava num processo adiantado de crescimento.
 
Tudo ficou destruído e queimado.
 
Saímos — como manda a lei da guerrilha — o mais rapidamente possível daquela zona e avançamos para outro local onde a floresta nos pudesse oferecer uma melhor protecção em relação ao nosso posicionamento.
 
Depois de andarmos mais uns quilometros, pernoitamos.
 
Nessa noite surgiu o que há muito esperávamos mas que estranhamente ainda não tinha acontecido: fomos atacados com granadas de morteiros!
Ouviu-se a primeira saída e logo a seguir, quase simultânea, a segunda.
Uns segundos depois —que para nós era uma eternidade— os rebentamentos. Aqueles rebentamentos assustadores que nos colocam numa posição de simples espera.
 
Os civis fugiam sem saber para onde.
Apenas corriam para o lado contrario ao dos rebentamentos.
Ideias falsas mas instintivas, pois, como sempre acontece nestes ataques, e imprevisível o local da queda dos projeteis.
Tanto caem aqui, ali ou acolá.
 
Fugir não adiantava absolutamente nada. Poderíamos mesmo estar a fugir para a morte.
Era incontrolável!
 
Caíram mais algumas granadas, mas felizmente e apesar de terem batido bem perto, não nos causaram quaisquer ferimentos.
 
Mas não deixaram de por toda a nossa ansiedade num sobressalto e por muitos ataques do gênero que possamos ter sofrido, cada um tem a sua historia e nada passa despercebido, quanto mais não seja, ao nosso subconsciente.
 
As morteiradas vão passando, mas as marcas, os sons e o próprio cheiro, vão ficando e a nossa memoria vai registando.
 
 
In "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
paulo lopes

domingo, 7 de dezembro de 2014

Quando a fome e a sede apertava..., por Paulo Lopes

 
Em estilo de comentário e resposta a este ultimo comentário do amigo José Capitão Pardal.

Não estava na cabeça do capitão Salvado, nem na nossa, presumo eu, voltarmos ao terceiro objetivo o qual tínhamos deixado em chamas, mas num pensamento de estômago, talvez fosse melhor ir mesmo até lá.



Talvez conseguíssemos encontrar algo para mastigar.
Assim fizemos mas com o pressentimento de que, naturalmente, iríamos ter problemas com os seus habitantes se estes já tivessem regressado.
Arriscámos!

Não levámos muito tempo a chegar, felizmente continuava deserto e bastante desolador.

Um mar de cinzas e um cheiro intenso a queimado.
Factores que já não influenciavam a nossa forma de estar.
Procurámos o que pretendíamos e então foi um ver-se-te-avias: pela primeira vez comi mandioca acabadinha de ser extraída à terra.
Nada melhor!
Qual manjar de lagosta?
Maravilha de menu!
Descascar aquelas batatas pontiagudas e devorá-las como se estivesse a comer nabos crus era, naquele momento, um saboroso acepipe.
Uma delicia!
 

E a bebida meus senhores?
A bebida?
Havia que procura-la!
Ninguém melhor que os G.E. para a procurar.
Como aprendi com eles a sobreviver no mato!
Não foi fácil mas, la estavam elas!
Perdidas no meio da vegetação densamente fechada: raízes longamente penduradas na sua esplendorosa altura!
As lianas.
— Furriel!
É fácil!
Corta-se assim e assim e bebemos!
— Dizia um verdadeiro guerrilheiro do mato!



 
E assim fiz.
E assim bebi.
E assim bebemos todos!
Bastava cortar com uma catana, de um só golpe, em cunha e depois outro golpe mais abaixo trinta ou quarenta centímetros, direcionar um dos cortes a boca e aquilo que me parecia uma corda pendurada numa árvore começava a pingar um liquido de cor branca ligeiramente transparente.
Nada melhor!
Era liquido.
Um pouco espesso para água mas era liquido!
Sabia (digo eu agora) a resina mas era liquido!
Apenas pingava (comento eu neste momento) mas molhava-me os lábios!
Se por acaso ainda duvidasse, teria de desfazer essas duvidas e reforçar: se tenho de estar nesta guerra, se tenho de passar maus bocados, que os passe ao lado dos G.E. pois com eles aprendo a sobreviver nestes locais do fim da linha pois são eles que melhor sabem defender a sua própria vida.
E assim saciámos a nossa fome e matámos a nossa sede seguindo depois novamente para o local de espera.

Chegados de regresso ao local já quase familiar onde até a cama que tínhamos deixado continuava pronta a receber-nos para a estadia de mais uma noite.
 
Ficámos a aguardar silenciosamente que chegasse mais uma manhã, adormecendo com a esperança de que os nossos admiráveis e heróicos conhecedores da guerra nos enviassem os helicópteros que tanta falta lhes faziam para os seus perigosos combates de mesa ou, quem sabe, para uma destemida deslocação algures numa festa nocturna cheia de armadilhas, principalmente femininas!

In "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
Paulo Lopes