Navio Niassa – 4 de Agosto de 1967.
Era o nosso segundo dia de viagem a bordo do Navio Niassa, o qual pertencia à Companhia Nacional de Navegação, mas que desde o inicio da guerra ultramarina, servia para transportar, os mancebos mobilizados para o chamado ultramar.
O nosso destino era Moçambique.
Rapidamente compreendemos que a vida dentro daquele navio não seria fácil.
Os porões tinham sido transformados em dormitórios, centenas e centenas de camas, que não eram mais do que umas tábuas cobertas com os chamados “colchões de espuma” e uma manta.
Não existia qualquer local para as refeições, os duches eram de água salgada e as retretes eram uns cubículos mal amanhados, onde a privacidade dos utilizadores não existia.
Bastou uma única noite, a primeira, para que a vida a bordo daquele navio se transformasse num inferno.
O cheiro a vomitado que vinha dos porões era indescritível.
Começava bem a nossa viagem a caminho de uma guerra que ninguém queria.
Nessa manhã de 4 de Agosto de 1967, tivemos a primeira palestra dada pelo nosso capitão, o comandante da Companhia de Cavalaria 1728, e também a primeira revista ao fardamento, entre outras coisas.
O Marroquino, o soldado condutor 044483/67, era a gargalhada da companhia 1728.
Quando recebeu o fardamento, poucos dias entes do embarque para Moçambique, meteu-o dentro do saco de viagem e nunca mais lhe tocou, ficou tal e qual como lhe tinham entregue.
Antes da formatura já todos riam do fardamento do “marroquino” destacava-se de todos os outros que tinham o fardamento à sua medida.
O alferes Guerra gritou, sentido, e todos ao mesmo tempo obedeceram à ordem.
O Capitão Pereira Monteiro, ou seja o “Becas” acabava de chegar para proceder à primeira revista da companhia.
Olhou para todos, um a um, e ia fazendo alguns reparos sobre o cabelo, a barba, as camisas desabotoadas, e até o emblema da boina que não estava direito.
A meio da revista, deu com os olhos no marroquino, não acreditou no que estava a ver.
Tinha um verdadeiro espantalho na sua frente, no meio do seu pessoal.
Ficou vermelho (particularidade do “Becas” quando se irritava).
Fez-se ainda mais silêncio.
Todos esperavam pela reação do comandante da companhia.
- Então você, (o Becas tratava todos por você) não tinha ninguém para lhe tratar do fardamento?
Porque não trocou a camisa e os calções?
O algarvio mantinha-se em sentido.
Diga- me lá porquê?
O Niassa avançava para Moçambique e enquanto o “Becas” falava o silêncio ainda era mais pesado, até os motores do navio faziam menos barulho.
- Como o meu capitão sabe, os meus pais estão em França, vai para dois anos, e eu não sei coser roupa e também não tenho ninguém na família que tenha o curso de “ Corte e Costura.”
Ouviu-se um burburinho na formatura, o Augusto, mesmo ao lado do marroquino, fazia um grande esforço para não rir.
- E as camisas, meu capitão, só haviam estas quando chegou a minha vez de receber o fardamento.
Ainda ficou mais vermelho, o “Becas.”
A sentença caiu pesada, chamou pelo furriel, responsável pelos condutores, mais conhecido por “Parafuso” e disse-lhe.
- Este soldado deverá comparecer na próxima formatura com o cabeça rapada, e fica proibido de sair do navio quando chegarmos a Luanda.
Saiu-lhe cara a piada do “corte e costura.”
Em pleno Atlântico tinha começado uma relação, entre o “Becas”, o marroquino e o barbeiro, que só terminaria no dia 12 de Outubro de 1969 quando regressaram a Lisboa.
Depois e durante os vinte e sete meses moçambicanos, foram só mais umas doze carecadas, o marroquino, partiu careca e chegou careca.
Evidentemente que o “ Becas” quando da nossa escala em Luanda, deixou-me sair do Niassa, para um breve conhecimento da capital angolana.
Depois do nosso regresso de Moçambique e já no quartel de Estremoz, e na hora das despedidas, o “Becas” abraçou o marroquino e disse-lhe: Se algum dia tiver filhos e eles se portarem mal......não se esqueça de lhes dar uma carecada.
Ainda hoje, quando entro numa barbearia e me sento na cadeira, sinto a vontade de dizer...
É mais uma carecada.
RIP – Capitão Pereira Monteiro, nunca me esquecerei de si.