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quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Roubaram-me Deus, outros o Diabo, por Manuel Bastos, apresentado por José Leitão

Terapia?
Talvez...



Boa leitura!
Roubam-me Deus, outros o diabo
A minha cabeça é uma casa assombrada.
Dentro de mim, um tumulto de almas penadas espiando culpas de que estão inocentes.
Caminho por entre pessoas que não entendo, como se o riso fosse uma alucinação e a alegria uma obscenidade.

As minhas memórias são fantasmas que me acompanham para onde for. 
Amigos que tombaram pelo caminho, que me recuso a esquecer. 
Juntos, rimos e lutámos, e agora falamos em segredo, para não acordar a indiferença do mundo.

Querem que a gente volte da guerra como se nada tivesse acontecido, porque não querem ser assombrados com os pormenores. 
Nós falamos dos tiros e dos furos das balas na pele. 
Das minas e do interior dos corpos que fica à vista. 
Dos sons da guerra próximos do limite da frequência sonora audível, e que às vezes ultrapassam esse limite e deixam de se ouvir, como se estivéssemos num filme mudo. 
Falamos do cheiro do sangue fresco e da carne ainda pulsante. 
O osso limpo, os tendões cortados e as fibras dos músculos rasgadas. 
Durante meses não se pode ver uma coxa de frango; depois acabamos por falar disso como se fala de um ofício a que nos dedicámos.

O Manel até tirava fotografias. 
Eu: Ó furriel, essas fotos são pra não se esquecer disto? 
E ele para mim: Ó Zé, nós nunca nos vamos esquecer disto até morrer.

Acho que ele, com o tempo, foi criando uma raiva contra aquilo tudo, enquanto eu ia aceitando as coisas para poder aguentar, para poder sobreviver. 
Andámos ao contrário para obter a mesma coisa. 

Depois, de repente, disseram-nos que tudo o que dantes era inevitável, tinha de acabar, e deixámos de ser precisos. 
Só servíamos para alimentar a guerra, como lenha para a fogueira, e decidiram apagar a fogueira e deitar a lenha fora. 

Regressámos a um país diferente daquele que nos enviou para lá, e tudo o que fizemos passou a estar errado, do dia para a noite. 
Num país em que a ignorância é obrigatória por lei, podemos ser apanhados com uma arma na mão como um bombeiro de mangueira em punho para apagar um fogo onde há uma inundação.

O Manel a tirar fotografias, como se quisesse reunir provas para demonstrar que a estupidez humana realmente existe. 
E eu via-o como um turista que não levava aquilo a sério para não ficar louco. 
Se não tivesse lerpado com uma mina, estava agora pior do que eu, tenho a certeza.

Mas eu não estou traumatizado, não, eu tenho é saudades da guerra. 

Deram-nos uma missão importante para cumprir e nós demos a nossa vida por essa missão. 
Ensinaram-nos desde sempre que isso era o nosso dever e ensinaram-nos também a sentir orgulho por ele nos ter sido confiado. 

Há alguma coisa pior do que descobrir que nos enganaram? 
Que a nossa missão era um crime e que o nosso dever era uma maldição?

Que fazer agora com os mortos? 
Como resgatar os inocentes sacrificados? 
Como reverter a dor depois de sentida?

Tenho saudades de me sentir do lado certo da História, de me sentir um soldado a servir uma causa justa.
Anseio por uma causa justa por que lutar.

Só que me roubaram a fé. 
Roubaram-me Deus. 
Fiquei de mãos vazias e sujas de guerra. 
Não se pode rezar com as mãos sujas de guerra e não se pode ser herói numa ato criminoso.
Roubaram-me Deus e roubaram-me o Diabo, por quem lutarei?

Esfrego a pele para limpar a tatuagem do meu patriotismo e a tatuagem não sai. 
Amei o meu país com um amor impúbere e fui abandonado por ele, prenhe de pesadelos. 
A tatuagem das minhas memórias é um ferro em brasa que me não saí do pensamento. 
Ninguém regressa do inferno inocente, ninguém regressa vivo do calvário.

O que vês, Zulmira, quando fechas os olhos? 
Será que vês o que eu vejo?
Sou uma homem-bomba pronto a explodir de memórias.
Sou um comboio em chamas rasgando a noite escura, exorcizando os fantasmas no meio das trevas da indiferença dos que nunca fazendo perguntas estão sempre de bem com Deus e com o Diabo.

Se ao menos ainda te amasse, Zulmira, deitava-me ao teu lado e adormecia ignorante, que o conhecimento incomoda, mas alguém me roubou também o meu amor por ti.
Deixa, ainda assim, meu amor passado, que me deite ao teu lado, deixa que arrefeça esta acha ainda em chamas, tirada da fogueira em que arderam os meus sonhos de criança. 
Eu, de mim dei o que dão os heróis, mas coube-me o papel errado. 
Sou um personagem criado por uma história escrita por criminosos.

Esta noite sonhei que era uma criança inocente brincando. 
Será que acordei para a realidade ou agora sou um velho soldado com que uma criança inocente está a ter um pesadelo?

Tanta coisa acontece na vida de um homem e tanta coisa é esquecida, lembramo-nos apenas de meia dúzia de coisas boas, mas das tragédias lembramo-nos bem.

Sei que passei horas de convívio caloroso e camarada como nunca se consegue passar em tempo de paz, porque as coisas escassas são mais preciosas, mas não me recordo de quase nenhuma. 

E os amigos que fiz e que esqueci? 
É como se não tivesse vivido esses momentos, porque o que ficou na memória foram sobretudo as experiências dolorosas.

A felicidade é o luxo da mente, e o luxo é uma fraude. 
Não é real, é um cenário montado para exibir a opulência de uma minoria que ofusque o ruído e o desconforto de que é feita a imperfeição da vida para a maioria. 

Resta o amor. 
O amor é sempre possível, mas deveria haver mais do que uma palavra para dizer amor. 
Há amor que mata e amor que salva, há amor que castiga e amor que redime, há amor que revigora e amor por que se morre.

Dizem que se o amor acaba, é porque não era amor de verdade, então quando um homem morre é porque nunca viveu de verdade também? 
Que pensa um homem olhando o cano da arma com que vai matar-se? Que nada na sua história merece mais um dia de vida, ou que a sua história é tão preciosa que o futuro previsível não merece ser vivido?

O inflexível arco do tempo não sai nunca do mesmo lugar, nós é que somos perecíveis.

Tudo o que acontece é passado. 
O que fizemos no passado é que faz de nós o que somos hoje, e o que somos hoje é que dá forma ao passado, que o passado só é passado quando o vemos do presente. 
Igualmente, o que fazemos agora será passado amanha; não preparamos o futuro, preparamos um passado que mereça os dias de vida que temos para viver.

Sem ti, Zulmira, para recuperar a ignorância original, recosto-me no sofá, vítima do conhecimento do inferno imposto à minha juventude perdida.

O LP no gira-discos entre estalidos. 
O cantor cantando o poeta. 
As lágrimas que não seguro. 
E as palavras do poeta na voz do cantor, como facas:
Roubam-me Deus, outros o Diabo.
Quem cantarei?

Roubam-me a pátria e a humanidade, outros ma roubam.
Quem cantarei?

Um dia cantarás a revolução. Nesse dia, cantor, as lágrimas serão de esperança.
MANUEL BASTOS
In Cacimbo

sexta-feira, 11 de abril de 2014

O "KIKO", por Duarte Pereira



 
ESTA FOTO É PARA REPARAREM NO "KIKO".

ACHO QUE CHEGUEI A TER DOIS.
ERAM FEITOS POR ENCOMENDA.
RECORDO COM SAUDADE DE UM QUE TINHA MAIS BURACOS QUE PANO E AGUENTAVA-SE PELO FORRO.
ERAM LAVADOS TANTAS VEZES QUE PERDIAM CONSISTÊNCIA E A COR.

O KIKO NORMAL PARECIA NÃO PROTEGER DAS BALAS.
QUANDO ESTREEI UM NOVO ERA UM DESCONFORTO.
TECIDO DURO E AINDA NÃO MOLDADO À CABEÇA.
DEPOIS O SUOR, NÃO DO ESFORÇO, MAS SIM DO CALOR, IAM DERRETENDO AQUELE PANO QUE NOS PROTEGIA EM CENTENAS DE QUILÓMETROS DO CALOR DO SOL.
 
AINDA RECORDO QUE DEPOIS DE COLUNAS COM POEIRA E DEPOIS DE TIRAR O KIKO COM SUOR E PÓ, LOGO LAMA, DAVA UMA IMAGEM ENGRAÇADA AO NOSSO ROSTO.

ESTES KIKOS NUNCA VIRAM DIVISAS.
ERAM PARA SER USADOS FORA DE MACOMIA ONDE NÃO HAVIA DISTINÇÕES ENTRE SOLDADO, CABO, FURRIEL OU OFICIAL.
EU ATÉ PENSAVA PARA MIM, QUE ALGUNS SOLDADOS TINHAM MAIS PINTA DE OFICIAIS PELO SEU PORTE, DO QUE ALGUNS QUE USAVAM OS MESMOS.
 

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