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terça-feira, 8 de outubro de 2013

A EMBOSCADA..., por Paulo Lopes

Hélios a descolar
Os patrulhamentos à volta do nosso estacionamento continuavam como continuava a nossa vegetação no tempo.

Com estratégia um pouco diferente mas com intenção exatamente igual: assim que o sol punha em questão a sua continuidade diária dando inicio ao seu desaparecimento por detrás do horizonte, saia um grupo para patrulhar em redor da zona circundante ao estacionamento, acampando e emboscando diversificados pontos da mata, só regressando pela manhã.
 
Quando chegou a vez de o meu grupo sair, em vez de ir patrulhar, calhou-nos em sorte, uma operação com a previsão para cinco dias:
— Encontrar e emboscar trilho muito batido por elementos IN, na direcção dos Montes Metecos.
Era a finalidade desta operação!
A festa continuava.
A luta prosseguia.
As horas seguiam pachorrentas. Pachorrentas em demasia para quem queria ver o tempo correr, pular a cerca do arame farpado, voar por cima da extensa floresta e aterrar num local de paz, se possível bem longe de armas e, principalmente, dos abutres desta incompreensível guerra.
Tudo nos parecia igual ao dia anterior... ou quase tudo: operações, picadas, emboscadas, cansaço, sofrimento, desilusão, esperança e de vez em quando, à mistura, muito disfarçado, aparecia um pouco de falsa contradição à regra para alegrar o ambiente.
Por isso também estas minhas memorias que vou transcrevendo para estas longas paginas são quase sempre iguais.

Procurámos o tal trilho, qual agulha no palheiro, mas a Av. da Liberdade nunca mais dava mostras de si!... No nosso pensamento pairava a incerteza de se estaríamos corretamente orientados.
Se não estaríamos em coordenadas erradas ou que julgaríamos estar ou, mais uma vez, o tal trilho era invenção ou má informação do nosso querido major. Andámos de um lado para o outro.
 
Dirigimo-nos a norte e a sul, percorrendo toda aquela zona indicada pela mensagem e nada, absolutamente nada! Já nos preparávamos para regressar à Mataca quando, ao comunicarmos dando informação das coordenadas onde nos encontrávamos, do insucesso da operação e pedindo autorização para o regresso, fomos informados para abrir uma clareira nas coordenadas “X” a fim de os helicópteros poderem reabastecer-nos para mais três dias.
Noticia muito mal recebida mas a qual não havia espaço nem forma para contestação e tinha de ser cumprida.
Fomos ainda pernoitar nas coordenadas indicadas e na manhã seguinte fizemos a preparação necessária para a aproximação e aterragem dos hélios.

Ao longe, já se ouviam os motores do bombardeiro T6, companhia habitual nestas andanças de reabastecimentos.
Para facilitar a tarefa dos pilotos das aeronaves que vinham ao nosso encontro e para uma mais rápida e eficaz deteção do local, tentámos comunicar com eles através do radio banana mas —espanto dos espantos— não funcionou!!
Entretanto os helicópteros já se avistavam mas um pouco distantes do objetivo e numa direção errada à que se pretendia.
As tentativas de comunicação com o T6 ou com os pilotos dos hélios continuavam a ser frustradas. Não conseguíamos obter qualquer sinal e quanto mais tempo eles andassem a mostrar-se no ar, maior era a hipótese de serem observados pelo IN dando-lhes indicação correta do nosso posicionamento e da nossa presença na zona.
Nada a fazer: radio avariado!
Conclusão brilhantemente encontrada!
Comunicámos com Mataca através do Racal:
— Alo XY9. Alo XY9. Aqui macacos. Informa se me ouves. Escuto.
— Diz lá ó macaco. Respondeu o radiotelegrafista de serviço no posto da Mataca com um certo ar de gozo devido ao cognome que foi dado à formação de combate para esta operação, coisa que se fazia muito nestas comunicações até talvez para nos dar um pouco de animo e aliviar tensões.
— Aqui o macaco está à rasca com os pássaros. Vê se consegues comunicar com eles que eu já estou farto de estar empoleirado nos galhos das árvores.
— OK., vou tentar. Continua atento.

Esperámos um pouco.
Entretanto lançámos duas granadas de fumo.
Quê do fumo? Lançámos mais duas. Uma amostra de fumo, ou tentativa disso, saiu vagarosamente e muito a custo duma delas que mais parecia o apagar de um cigarro que nem aos primeiros ramos das árvores chegaria. Mais uma brilhante conclusão: granadas de fumo deterioradas! Exatamente igual aos nossos altos comandantes: mentes deterioradas!
Voltámos a ligar:
— Alo XY9. Alo XY9. Aqui macaco. Diz se me ouves. Escuto.
— Sim macaco. Estou a ouvir.
— Conseguiste alguma coisa ?
— Já estou em contacto com os pássaros. Vai dizendo a tua posição..
— Eles que voem mais para sul. Estamos numa clareira perto de árvores secas e queimadas.
Apenas mais um pouco de espera e prosseguimos: — Assim esta bem. Venham sempre em frente. Se correto termino. Um Alfa Bravo.

Finalmente desceram. Um após outro depois do levantamento do anterior. Descarregaram as rações de combate e a água, voltando a afastar-se rapidamente.
Confusa mas ordenadamente fez-se a rápida distribuição dos mantimentos e de água destinados a cada um de nós.

Continuámos em busca do malfadado trilho mas agora possuidores de novas ordens de direção a seguir.
Palmilhámos horas fazendo paragem para almoço numa esplanada com vista para os Montes! Agradável visão mas o “serviço” era péssimo e o menu, lastimável, por isso, sem deixar gorjeta, fizemo-nos à “estrada” porque o tempo escasseava e o trilho não queria aparecer.
Conseguimos encontrá-lo ao fim da tarde!
Afinal existia!
Seguimos por ele durante algum tempo.
De repente surgiu uma sucessão de trilhos que se dividiam em forma de forquilha e avançavam em três frentes.
Escolhemos o mais batido!
Todos nós redobrámos a nossa atenção, convictos de que algo nos esperava no extremo do trilho!
Cautelosos e desconfiados, com uma lentidão de caracol, olhos de Lince e ouvidos afinados, íamos progredindo no trilho.
De repente, num relâmpago e numa sequência vinda da frente, todos nos deitámos no chão: o homem que seguia no ”olho” da formação tinha detetado uma palhota e deu o alerta através dum sinal gestual para o que seguia na sua retaguarda fazendo sucessivamente o elo de ligação aos outros que, como é óbvio, seguíamos em formação de progressão.
Do lado da palhota o silencio predominava!
Tudo levava a crer que não se encontrava la ninguém, mas nada de fiar, nada nos dava a garantia que não estivessem emboscados, prontos para disparar sobre nós.
Por isso todas as cautelas tinham de ser tomadas e qualquer movimento tinha de ser avaliado como suspeito.
Os primeiros homens do grupo que ia na frente adiantaram-se um pouco mais originando a falta de comunicação entre nós, desfazendo a necessária e indispensável ligação.
O meu grupo seguia na retaguarda e no meio do mato, uma a uma, iam surgindo mais palhotas.
De repente, um dos homens do grupo, deu a sinalética para nos baixarmos e deitou-se preparando-se para disparar:
Tinha detetado vultos em movimento no meio das palhotas !
Fazendo uso de toda a força dos pulmões, alguém gritou:
— ALTO. NÃO DISPARES SÃO OS NOSSOS.
Creio que este berro protetor, auditivo a longa distancia, evitou algo de muito mau!
Se aquele homem tem disparado a sua arma, originava um pandemónio geral que, depois, ninguém saberia quem era quem e ficaríamos ali a disparar contra nós mesmos, pois os vultos que vagueavam por entre as palhotas pertenciam ao grupo que seguia na frente e que, com a excitação do achado, se afastara demasiadamente ficando assim a comunicação visual e gestual perdida, esquecendo- se de que, com esta falha, os que seguiam na sua cauda ficavam sem conhecimento do que se estava a passar na frente da coluna desconhecendo a posição deles.
São falhas humanas que só sucedem a quem anda no meio desta guerra e desta mata agressiva de densidade extrema e de perigos constantes.
São também estas falhas que demonstram a nossa fragilidade, a nossa meninice para estas façanhas. Provas evidentes da quão relativa era a nossa experiência e capacidade de guerrilha.
Apesar de estarmos já com muitas e longas horas de “voo” nesta máquina que é a guerrilha de floresta, existem pormenores que nos escapam e são completamente varridos trazendo ao de cima toda a nossa estrutura de amadores da guerra.

Quando parte de um exército, aquela que combate no mato, só está em ação porque a isso é obrigada, sem ter em mente um objetivo comum e enraizado nas suas entranhas que luta por uma causa justa.
 
Quando apenas a intenção é simplesmente manter-se vivo, sobreviver ao tempo, defender a sua própria pele e a dos seus companheiros e ir-se embora o mais rápido possível, abandonar as vestes de militar, esquecer as armas, ignorar os que nos enviaram para esta vida, descomprimir o nosso espaço, nunca poderá existir uma coesão total de força comum, nunca será uma real fileira de guerra nem de máquinas mortíferas capazes de matar por matar e dar a vida pela tal causa justa que a todos beneficiaria.
Arrisco a dizer que nós, os amadores, os incompetentes, os inadaptados a esta vida, poderíamos não perceber nada do que estávamos involuntariamente a fazer mas tínhamos um conhecimento que nos generalizava a questão: esta guerra nada tinha de justa e muito menos iria beneficiar o povo português.
Beneficiaria sim, os tubarões nacionais e internacionais.
Esta guerra não era nossa, apenas tínhamos de a suportar e obrigatoriamente defender, com a nossa própria vida, os interesses bilaterais instalados no sistema minado de corruptos e corrompidos poderosos, mágicos da mentira, malabaristas das palavras.
Figuras escondidas por de trás de outras caras menos poderosas na politica mas tão ciosas do poder monetário e protagonismo quanto os seus mandantes.
Por isso e por razões de defesa própria, estando no meu pensamento que tal sentimento, não sendo generalizado era, no mínimo, em grande maioria, razão para que, podendo nós dizer não, seguindo os nossos instintos, desprezar por completo as ordens dadas pelos profissionais, o faríamos.
 
Profissionais da guerra que nunca estão presentes nestas nem em nenhumas ocasiões onde a presença do perigo nos aperta o peito e assola a calma.
Nenhuma destas peripécias e de outras tantas de desfecho trágico que acabaram com vidas de jovens inocentes na flor da vida acontecem numa daquelas maquetas feitas em cima de uma mesa, com a operação a ser comandada pelo ponteiro de um qualquer general ou de patente parecida.
Aí, com a destreza, valentia, coragem e amor à Pátria do ar condicionado, tudo é perfeito e não existem falhas, receios ou negações às ordens e até éramos capazes de terminar a guerra em meia-dúzia de dias.
Mas esses heróis dos mapas e ponteiros para alem de pensarem que sabem de táticas e esquemas desta guerrilha mas que não percebem patavina, também não tinham no seu horizonte de vida, terminar com a guerra.
Não era fator que estivesse nos seus reais interesses!.
Porquê terminar com a boa vida cheia de prazeres e tão lucrativa?... Não eram eles que corriam perigo eminente e os seus filhos, naturalmente, estariam no Colégio Militar!
Ou na Suiça!
Digo eu que, apesar das circunstâncias adversas, continuo a gostar de dizer coisas!

Felizmente alguém se apercebeu e teve olhos e frieza suficiente para ver que, quem estava do outro lado das palhotas, eram os nossos próprios companheiros!
Mas o forte grito não perturbou os homens que naquele momento já destruíam todas as palhotas que, sem duvida, era um posto avançado de uma base próxima, dada a forma de construção e de como era a continuação e estilo de trilhos.
Depois de tudo destruído, avançámos paralelamente e bastante cautelosos por um dos trilhos.
Decerto que os habitantes daquele posto avançado já se tinham apercebido há muito que andávamos por ali e, como tal, tudo era de esperar, desde minas colocadas no trilho, emboscadas previa e minuciosamente preparadas, a morteiradas enviadas da base.
Já o sol se começava a esconder no horizonte e a luz do dia ameaçava o colapso quando nos afastámos um pouco do trilho para pernoitar e montar uma emboscada.
Com todas as instruções dadas e tudo já “acomodado” nos seus locais de pernoita e emboscada, ligamos para Mataca:
- Alo XY9. Alo XY9. Aqui macaco. Diz se me ouves. Escuto.
— Diz lá meu macaco!
— Toma nota e chuta para DN6.
Detetadas e destruídas varias gaiolas vazias. Estou quieto. Espero ordens. Diz se correto. Escuto.
— OK. Macaco. Volta daqui a dez que eu vou informar DN6. Escuto.
— Correto XY9. Termino. Um alfa bravo.
Passado o tempo recomendado, voltamos a ligar:
— Alo XY9. Alo XY9. Aqui macaco. Diz se me ouves. Escuto.
— OK. Macaco. Estava a tua espera. Já tenho bananas para ti. Toma nota. Continua quieto e amanhã quando almoçares volta a este. Diz se correto. Escuto.
— Correto. Um alfa bravo. Termino.

Tal como o major ordenara, ficámos emboscados até cerca das onze horas da manhã seguinte sem que nada tenha acontecido. Quando ligámos a Mataca para informar que nada tínhamos visto nas horas anteriores, deram-nos ordem de regresso, o que fizemos de bom grado, numa caminhada, o mais direta possível e com a rapidez que as nossas pernas cansadas permitissem.

in "Memórias dos Tempos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
 Paulo Lopes

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A MINHA PRIMEIRA COLUNA DE REABASTECIMENTO A MACOMIA, por Paulo Lopes



"Picada" Mataca - Macomia (foto Paulo Lopes)
PRIMEIRA “PICADA” ATÉ MACOMIA

Ficámos alguns dias sossegados da azafama constante do vai e vem das operações, o que nos admirou bastante, mas não nos preocupou absolutamente nada.

Podíamos passar os dias a ler, a jogar xadrez, damas ou cartas, consoante os gostos de cada um e, pela tardinha, fazíamos —os mais desportistas— uma peladinha naquele “estádio” fabuloso onde, enquanto uns corriam atrás da bola fugindo ao tédio, outros viam, aplaudiam e apoiavam os do lado de que mais gostassem naquele momento, como se estivessem no estádio do seu clube eleito.

Quanto ao que me tocava, não dispensava esse momento de desporto e lá estava eu, sempre no meu posto de guarda-redes, defendendo o meu emblema que era, sem duvida, o esgotar dos minutos, o passar do tempo numa actividade com acesso à descompressão do pensamento negativo.
 
Enquanto tentava que nenhuma bola passasse para além das canas de bambu, esquecia-me que, para lá do arame farpado, existia outro “jogo”, onde nenhum de nós, jogadores, ganharia.
 
A vitória ia apenas e sempre, para os abutres que dominam o mundo e as pessoas!
Nestes dias tínhamos, portanto, as duas partes que constituem a felicidade de um soldado: bem alimentados (tendo como conceito que a boa alimentação era apenas e tão só o não comer a ração de combate) e repouso absoluto.
Situação invejável, não fosse o local de isolamento onde permanecíamos e a constante tensão que, mesmo neste sossego interior, estava, apesar das aparências, continuamente presente.
A qualquer momento todo o cenário se poderia modificar e o que era descanso passaria a pesadelo muito antes de um esfregar de olhos!...

Nos primeiros tempos da campanha, mesmo com estas situações pontuais, sentia-me completamente destroçado e incapaz de reagir.
Agora, ventos e tempestades passadas, tormentas e ansiedades desmanteladas, horas consecutivamente contadas minuto a minuto, estes poucos dias de “nada fazer”, faziam-me sentir quase contente e feliz.
É tudo uma questão de hábito.
Assim se comprova, na realidade, que somos um animal de hábitos.
Mas a “boa fruta” chegou ao fim quando uma ordem para nos irmos reabastecer a Macomia entrou pelas antenas do aparelho do nosso criptógrafo.
Era a primeira vez que saía da Mataca para ir a outro aquartelamento atravessando a serra através da picada que nos levava até lá.
Ia “estreá-la” e conhecer todos os seus riscos que espreitavam atrás de cada árvore, à frente do próximo passo.
Mais uma nova experiência não desejada para adicionar a umas já conhecidas, à espera de outras que o futuro espreita.
.
— Amanhã vamos a Macomia e como já não é novidade, os perigos são vários, tanto no caminho para lá, como no regresso e principalmente neste, visto que vimos carregadinhos de mantimentos, portanto, há que abrir bem os olhos e arrebitar as orelhas.
Dizia o alferes S……, continuando: — Daqui a pouco, mais para a noite, como costumamos fazer nestas ocasiões, vão informar a vossa “malta” que por volta das quatro e meia, cinco horas, arrancamos! Creio que não são necessárias mais conversas porque, como sabem, para estas picadas, quanto menos se falar melhor.

E com estas palavras, poucas e simples, saímos! Ainda vinha a sair da reunião e já estava a perguntar, porque me fez uma certa curiosidade, o porque do “quanto menos se falar melhor” e qual a razão de apenas à noite se ir dizer ao grupo que cada um de nós comandava, que iríamos a Macomia no dia seguinte.
As respostas às minhas questões foram tão rápidas e simples, quanto a reunião que acabávamos de ter: — Porque, não sabendo como, mesmo aquela hora da manhã, quando se passa pela aldeola, já lá estão nativos para aproveitarem a nossa deslocação a Macomia, apanhando boleia até lá, correndo assim menos riscos de serem apanhados por elementos da Frelimo e também para pouparem uns largos quilómetros nas pernas.
Ora, se eles sabem, mesmo quando essa viagem só é dada a conhecer já à noitinha, também os “turras” tinham esse conhecimento e tempo para preparar uma emboscada ou colocar minas. Portanto, quanto mais tarde se desse a informação, menor era a possibilidade de ser passada para o exterior.
Dizia-me um camarada.
Simples e agradável de saber!...
Ainda não eram cinco da manhã e mal a aurora tinha chegado, já todos estávamos preparados para a partida.
O roncar dos motores deu o sinal e, ainda em cima das Mercedes 404, quatro ao todo, iniciámos o percurso que tinha passagem inevitável pela aldeola.
Lá estavam eles!!! Tal como me tinham dito, uma dúzia bem medida de nativos já estavam prontos, de malas aviadas e “arranjadinhos” para a “excursão”.
Enquanto eles subiam para as caixas das Mercedes, nós saltávamos para o chão porque, a partir dali, íamos entrar na floresta a caminho da Serra do Mapé.
 
A “estrada” não era mais do que trilhos formados pelo passar daquelas já cansadas viaturas que as gastas rodas faziam pelo mato dentro rasgando uma linha que se ia desviando ao sabor das corpulentas árvores tão velhas como a floresta que atravessava.
À frente iam os batedores.
Cerca de dez de cada lado do rodado por onde passariam as rodas das viaturas. A distribuição destes militares era feita intervaladamente e revezando-se: cinco preparados com a sua respectiva arma para o que desse e viesse e os outros cinco iam picando constantemente a terra com uma cana de bambu que tinha um prego enorme na ponta, a que chamavam “detector de minas” que, conforme o nome indica, tinha como intenção o detectar das minas que estivessem colocadas no dito rodado.
 
Eram trinta e tal longos quilómetros que tínhamos de palmilhar até Macomia!...
A vegetação era inconstante: ora espessa e de uma densidade assustadora não permitindo enxergar meio metro para os lados. Ora aberta e de arvoredo espaçado dando-nos uma confortável sensação de segurança quanto a possíveis emboscadas.
 
De minuto em minuto, de passo em passo, umas vezes apressados, outras nem tanto, consoante as exigências do terreno, fomos progredindo atravessando o pé da Serra, subindo-a, “largando”, de quando em quando, granadas de morteiro, como que a “varrer” os locais periféricos da nossa passagem, até atingirmos o cume.
Sem descanso e com todos os sentidos a funcionar em pleno, avistámos as machambas de Macomia, cerca do meio-dia.
Do aquartelamento de Macomia até às machambas onde nos encontrávamos, já um grupo de combate daquele quartel tinha batido a zona e então, com mais segurança, poderíamos montar nas Mercedes e dirigir-mo-nos ao quartel, dando um pouco de descanso as pernas já um pouco desejosas de parar.

Num instante chegámos a Macomia.
Vila onde se situava a sede do Batalhão ao qual a nossa Companhia pertencia.
Para além do quartel (quartel mesmo! com casernas e tudo), Macomia já tinha umas quantas casas de habitação, cujas, poderiam ter mesmo esse nome.
Já havia uma, mas só uma, estrada de alcatrão.
Esta vinha de Porto Amélia, com passagem por Macomia.
Estrada nada amigável para ser utilizada por viaturas civis sem se fazerem acompanhar pelas Panhard do Exército e em coluna não estando, mesmo assim, livres de irem pelos ares arremessadas por minas não detectadas que, mesmo por baixo do alcatrão, eram colocadas pelos guerrilheiros que esburacavam nos laterais do asfalto depositando-as na distância prevista onde passaria o rodado das viaturas.
 
Também existiam duas casas comerciais onde se podia comer um bife com batatas fritas e beber uma bela cerveja fresca, o que, para nós, vindos do fim do mato, atravessando um autentico oceano de arvoredo, era um hotel de cinco estrelas!
Que luxo!!.
Este quartel já tinha traços metropolitanos e de forma idêntica aos diversos quartéis espalhados por Portugal Continental.
Não tinha nada em comum, no aspecto arquitectónico, com aquilo que tínhamos em Mataca. Um quartel murado com muros de tijolo e cimento, chão totalmente alcatroado, não com simples arame farpado como na Mataca e dum chão de terra batida esvoaçando poeira mal havia uma leve brisa de vento.
 
Recheado dumas quantas casernas também feitas de material que consiste numa casa normal, com telhados de telha de barro, janelas para arejar e dar luz solar e chão de mosaico. Não num buraco feito na terra, com folhas de zinco como telhado, sem uma única janela ou quaisquer arejamento para além das portas mal amanhadas que arrastavam e esburacavam o chão feito do mesmo material que o restante estacionamento, como as nossas “casernas” da Mataca.

Que me perdoem, esta minha invejosa definição e comparação, os camaradas que sofreram naquela terra onde a guerra também estava visível a olho nu e que, tal como nós, estavam bem longe dos seus. Felizmente para eles que tinham, pelo menos, o mínimo de condições de sobrevivência e que, não os aliviando da malfadada sorte de terem sido espoliados da sua juventude, os ajudava a desanuviar um pouco mais a dor que nos perseguia constantemente e que instintivamente nos íamos defendendo, cada um à sua maneira e com as armas que individualmente tínhamos no pensamento.

Estivemos dois dias estacionados, onde até deu, pelo menos para mim que não posso ver uma bola aos saltos, seja de que modalidade for, disputar uns quantos jogos de voleibol.
Sim!
Aquele quartel até tinha campo de voleibol alcatroado e delineado!
Claro que nada disto os afastava dos perigos constantes e comuns a todos nós.
Apenas os aliviava um pouco a tensão tal como as nossas “jogatanas” de futebol na Mataca.
 
Mas como o nosso lugar não era aquele, após termos o nosso carregamento prontinho para regressar, fizemos-nos à “estrada!”...
Já tínhamos talvez perto de três horas percorridas e já estava ultrapassada a descida da serra quando, de repente, fomos surpreendidos pelo som estridente dos tiros que vinham da frente da formação. Estávamos no meio de uma emboscada.
Quase de imediato, como se fosse automático, os nossos homens que se encontravam na zona efectiva da emboscada, ripostaram com bastante fogo de rajada. Conheci então, pela primeira vez, a guerra psicológica:
— Comandos a esquerda! G.E. à direita! Gritava o furriel M…… de alto e bom som, fazendo jus a sua boa voz de comando enquanto todo o pessoal já estava, apesar da surpresa inicial, ordeira e estrategicamente deitados no chão da picada com as armas apontadas para os dois lados do denso mato e prontas para a defesa.

Comandos e Grupos Especiais, como o M…… queria que houvesse, isso é que não vi nem poderia ver a não ser em pensamento ou nalguma visão de filme de guerra!...

As únicas forças existentes eram os primeiro e quarto grupo de combate e mais a tal dúzia de nativos que regressavam connosco para Mataca que, não ajudando em nada nestas ocasiões, atrapalhavam ainda mais!
Conforme sorrateira e inesperadamente fazem a emboscada, também e com ainda maior rapidez desaparecem sem deixar rasto da sua presença.
Assim funciona a guerra de guerrilha feita pelos guerrilheiros da Frelimo.
Entre gritos, tiros, explosões de granadas por nós atiradas, e de insultos ao inimigo nada nos aconteceu para além do enorme susto e o acelerar das batidas do coração. Foi muito maior o nosso fogo de resposta à emboscada do que aquele efectivado pelo IN.
Este disparou alguns tiros e fugiu.
Aliás, e felizmente para nós, como era habitual nos guerrilheiros da Frelimo!
Pela forma do ataque, ficámos convictos que não tinha sido uma emboscada premeditada mas sim e apenas um encontro ocasional, uma passagem simultânea no mesmo local e aproveitada pelos guerrilheiros, visto que, a grande distância, já se ouvia o roncar fastidioso e melancólico dos motores das nossas viaturas.
 
O tiroteio também não durou muito tempo, e depois de fazermos uma busca rápida a zona circundante no interior do mato, prosseguimos com a coluna até a Mataca sem que mais problemas tenham surgido.
Nestes momentos, passados os sustos, é que nos vem à memória como eram bons os tempos em que, nas diversas paradas dos quartéis da Metrópole, quando em formatura se ordenava: —quem sabe andar de bicicleta saia da formação.
Estratégia de que todos conheciam a razão, mas que sempre fazia alguns “cair”, espelhando orgulho nos seus rostos como se saber andar de bicicleta fosse uma questão de grande orgulho nacional: —Então apresentem-se na cozinha que há muita batata para descascar”. Surgia de imediato o prémio!
Após este susto, e com surpresa geral, estivemos novamente “parados” no nosso canto, mais de quinze dias.
Foi neste espaço de tempo que saíram duas promoções:
Sem alaridos, sem pompa nem discursos de ocasião e muito menos com paradas militares. Apenas em comunicado oficial e lido, já não sei bem por quem, duma forma simples como quem lê uma noticia no jornal sem quaisquer importância:
— O alferes S…… passa a capitão miliciano e o furriel L…. promovido a alferes miliciano.
A única situação alterada, e apenas para o L…., foi a mudança de “aposentos” instalando-se na messe dos oficiais.
 
Paulo Lopes (20130822)

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

DE RECRUTA A ESPECIALISTA, por Paulo Lopes





Foto de autor desconhecido (Google)



— Juro...

Ouvia-se em uníssono como um trovão que se espalhava na atmosfera, misturando-se com a multidão, entrando nos corações dos familiares fazendo com que estes sentissem um estremecer nos seus corpos emocionados, não sei, digo eu, porquê!...
 
Um Juramento de Bandeira duma imensidão de mancebos que já estava com o seu tempo de juventude encalhado numa forte incerteza no futuro que os separava dum presente eficazmente escolhido por homens dum passado mantido em segredo, cujo pensamento mesquinho e curto não alcançavam nada para além dos seus interesses pessoais.
 
Um falso juramento de mão no peito e de palavras no pensamento que só estão descritas nos dicionários de obscenidades.
 
Um juramento de vontade apressada porque a família, embasbacada de orgulho nos seus filhos, estavam a espera, desejosos de nos levar até casa, para uns míseros dias de descanso, onde nos esperava uma dose reforçada de carinho e de acepipes que só as mães de cada um sabiam fazer.
E ainda só tinham passado três meses...

— Juro...

Por minha parte não jurei absolutamente nada, apenas terminei o primeiro ciclo de uma vida que não queria mas a que a isso estava obrigado.
Obrigado a cumprir.
Obrigado a obedecer. (Obrigado Srs. generais, Srs. marchais, muito obrigado. Estou imensamente grato a V. Exas.
Curvo-me a vossa sabedoria).
Próximo destino: Tavira.
O tal pensamento ou sonho que me acompanhava e me assolava de vez em quando o espírito, segredando-me que iria passar a minha missão militar numa secretaria, já tinha ficado para trás.
 
O Exército não ia formar sargentos milicianos para ficarem dentro duma repartição... a não ser que surja aquela repentina doença: a cunha!...
 
Se alguma réstia de esperança ainda teimasse em sobreviver no meu intimo, Tavira, dava-lhe o golpe de misericórdia.
Acabava com ela.
 
Já conhecia esta cidade algarvia de outros tempos.
Tempos de praia e lazer.
Tempo de criança onde tive a oportunidade de ir passar algumas férias aproveitando aquele sol algarvio e o refrescar nas águas tépidas da Ilha de Tavira.
 
Só não sabia, que já nesse tempo, existia um quartel dentro da cidade a formar futuros sargentos milicianos atiradores e de outras especialidades todas elas com o cunho bélico.
Significava então, que a esferográfica ou a máquina de escrever que pairavam nas minhas esperanças seriam substituídas, no meu caso, por uma espingarda.

Na chegada a Tavira deparei com um quartel muito inferior ao das Caldas da Rainha: de aspeto velho e a precisar dum urgente restauro.
Uma parada que se ficava por uma milésima parte da parada do RI 5.
Após os já conhecidos requisitos do costume, fiquei a saber que por via da falta de alojamento para tanto instruendo, estava instalada uma pratica comum de, com a apresentação dum qualquer documento médico de pouca convicção, poderia pernoitar fora do quartel.
Aproveitei essa benesse com unhas e dentes e tudo o mais que conseguisse para agarrar essa bendita prática do quartel de Tavira apesar de estar sujeito a ver sugado o meu pecúlio mensal oferecido e cumprido pelo meu ex-patrão e mais o que vinha dos meus familiares.
Quarto para alugar era produto que abundava.
Bastava ir a Porta de Armas que logo alguém apareceria para nos ajudar a tal procura.
Tavira era movimentada por essa industria.
Não havia rua onde não houvesse quartos alugados por militares com pouca vontade de pernoitar no quartel. Esta prática dava-nos também acesso a sermos desarranjados ao jantar: — A não ser que fossemos previamente avisados que não nos poderíamos ausentar do quartel.
 
Alguém logo nos foi alertando com um tom de voz que fazia subentender a prática de um crime militar gravíssimo.
Uma mais-valia para as tascas de Tavira que tinham de alimentar todas aquelas bocas de jovens militares famintos. E não foram poucos os que aproveitavam essa soberba forma de falsa liberdade militar... Para nos era uma golfada de ar fantasiosamente fresco.
 
Para os comerciantes era um abono de família suplementar.
Para os assalariados do exército que tinham obrigatoriamente de nos alojar e alimentar era, sem dúvida, uma forma rápida de fazer pequena fortuna, à custa do que entrava para o orçamento militar daquele quartel, cujas contas já tinham incluída a nossa alimentação, que depois viria a sair sabe-se lá como e para onde!...

In "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
Paulo Lopes (20130801)

sábado, 17 de agosto de 2013

O PRIOR E O MACACO, por Paulo Lopes

Foto de Luís Leote
Aguardavam-nos redobradas noticias atrasadas, decerto, mas para nós tanto fazia: queríamos noticias.
 
Queríamos carinho.
 
Queríamos o nosso tempo semanal de conforto e amizade que normalmente vinham bem comprimido nos envelopes.
 
Provavelmente algumas mentiras, mas pouco nos importava.
 
Pelo menos estávamos a relembrar-nos das nossas gentes, dos nossos sítios, do que afinal, era do nosso peito.
 
Nesta Quarta-feira, vindo no táxi aéreo, tivemos a visita de um companheiro do Exército, mas julgo eu, fora do contexto de guerra: um Capitão, mas de uma arma totalmente adversa a esta zona e mais propicia a outras paragens: o capelão!...
 
Vinha com uma missão deveras difícil de cumprir:
— Purificar os pecadores.
— Salvar as almas.
— Abençoar as armas (???...).

 Decerto que a ideia deste Capitão capelão, não era de incutir-nos mais eficácia nos combates ou frieza nos corações para matar, mas sim dar-nos algum conforto de espírito, pois, apesar de tudo, ainda havia quem acreditasse nas palavras deles —padres— e talvez, quase todos tivessem fé em qualquer coisa.
 
Só ele sabe qual a razão da sua primeira e única visita a este seu rebanho deixado ao acaso no meio do nada, para lá do fim da linha.
 
Infelizmente, para estas almas penadas, o capelão não trouxe o milagre do fim da guerra.
 
Mal ficámos apresentados ao nosso pastor e já estávamos com outra mensagem em cima da mesa do capitão —este doutra Bíblia— a discutir os inevitáveis preparativos para mais uma operação.
Pela zona demarcada na mensagem, adivinhava-se uma operação de passeio e de piquenique, não fossem as noites ao relento passadas em camas demasiado picantes e claro está, não houvessem situações anormais que afinal, também eram férteis nessas operações consideradas “fáceis”!...

Fácil ou não, lá fomos nós para mais quatro dias ao acaso.
 
A missa tinha de esperar! A purificação dos nossos espíritos ficava para mais tarde!...
As nossas almas seguiriam para outros lados. Outras vozes que mandavam neste rebanho, falavam mais alto que a voz divina e nem tão pouco haveria espaço para, com firme certeza, dizer que ainda viriam assistir a alguma missa!...
 
Que Deus nos proteja! A nós e aos guerrilheiros inimigos que possamos encontrar!...

Como já calculávamos, e calorosamente desejávamos, nada de anormal se passou até porque, para além de já termos “batido” aquela zona por diversas vezes e por isso ser-nos bem conhecida, também era uma área de mato rasteiro, planície quase árida, com pouco arvoredo de grande porte, o que não deixava margem para qualquer base ou posto avançado estacionar por ali, tal a visibilidade existente a longa distância, proporcionando também uma imprevisível emboscada.
 
Talvez por ser tão fácil ou porque já estávamos completamente distantes de nós próprios e esquecidos do nosso mau destino, ainda vínhamos longe da Mataca, mas já em sentido de regresso, já o nosso pensamento se divertia com uma maldade a fazer aos graduados que tinham ficado no estacionamento e, por tabela, ao capelão: a ideia veio do F……., furriel que vinha a comandar o terceiro grupo de combate.

Para passar da ideia à pratica, era necessário ir à “caca”!...

Caçada bem fácil, pois o animal escolhido para o “sacrifício” era abundante naquela zona e quase lhes tocávamos com a mão.
 
A nossa presença não era suficiente para os assustar de forma a que desse origem a sua rápida fuga.
 
Apenas o faziam quando estávamos bem perto deles e era preciso que estivessem no solo porque, quando estavam nas árvores, mal nos ligavam.
 
E por todas estas razoes era fácil um tiro certeiro, mas diga-se, ninguém os caçava a não ser alguns animais ferozes e porque tinham fome ou então nós, porque não estávamos, decerto, com todas as nossas capacidades de ser humanos e o nosso vegetar por aquela vida obrigava-nos a colocar as situações mais graves e desumanas, no mesmo patamar de qualquer faceta mais inocente.
 
Quando nos esquecíamos de nós próprios e o pensamento não existia antes da ação, tanto nos fazia beber uma cerveja, como matar qualquer animal apenas para ver se a arma estava certeira ou se estávamos com pontaria!...
 
Desta vez não pensámos como seres que julgamos ser, mas apenas no prazer de pregar uma partida. E então, quase em uníssono, o F……. e outro soldado do seu grupo, mataram dois desses animais: Macacos!...

Dois tiros certeiros e já esta: dois macacos inertes no chão!
Naqueles anos perdidos da minha vida, conforme mais o tempo avançava, consoante os acontecimentos entupiam o sentimento e o espaço no coração, tudo se tornava fácil e o surgimento de situações que realmente me comovessem, tornavam-se nulos, mas o episódio que presenciei após a queda dos animais, fez com que parasse no tempo e pensasse em nós, os homens, os ditos animais racionais: era natural que os outros macacos do bando, ao ouvirem os tiros, fugissem para qualquer lado, mas não!...
 
Além de não fugirem, dois ou três deles, correram para junto dos seus semelhantes abatidos e como qualquer pessoa, debruçaram-se sobre os corpos inertes. Pegaram nos braços deles e iam arrastá-los, e se não fosse outro tiro para o local e a correria do F……., com gestos e gritos para os afugentar, decerto os levariam.
 
Mesmo assim, não arredaram pé, mantendo-se bem perto do F……. quando este apanhava do chão os infelizes animais.
Enquanto nos afastávamos, o bando emitia gritos e gemidos como se fossem pessoas lamentando a morte dos seus. Não sei qual a intenção do bando de macacos querer levar os que estavam mortos.
 
Não tenho qualquer conhecimento do seu modo de vida. Mas os gemidos por eles emitidos, arrancaram lágrimas que humedeceram os meus olhos e penso mesmo que não só os meus!
 
Estranhamente, torna-se mais difícil descrever este episódio do que quaisquer outro que tivesse acontecido durante um ataque. Talvez pela indefesa total do animal ou talvez pela forma como presenciei aquela unidade de grupo.
 
São daquelas passagens da nossa vida que não mais vamos esquecer. Pelo que ela contem, pelo sentido diferente das palavras e como elas se unem: o triste e ao mesmo tempo belo da natureza animal.
 
Imperdoável a nossa atitude. Lamentável a nossa ação. Estou em crer que nem o F……. nem nenhum de nós previa a importância do ato.
Infelizmente, esta passagem teve um impacto pouco duradouro porque a terra continuava a girar, o sol continuava a brilhar e o nosso dedo indicador continuava nervoso e constantemente preso ao gatilho da G3 que, sempre em posição de rajada, esperava apenas uma simples pressão para vomitar todo o seu conteúdo recheado de morte.
 
Tal como a terra, também a guerra continuava a girar.
Na verdade, para nós, naquele mundo em que vegetávamos, fora do tempo, da vida, da origem das coisas e da força do ser, esquecendo até que havia o amanhã, pouco nos importava os pobres animais.
Se é que alguma coisa ou facto ainda tinha alguma importância para nós!
O presente e o minuto vivido e o futuro era o quase imediato.
No nosso pensamento, estava agora e em causa, a “partida” que íamos pregar na malta: uma bela patuscada!
Chegados ao aquartelamento, o F……., com a nossa participação e conivência, continuou com o seu projeto, dando a conhecer a todos os graduados que se tinha apanhado dois coelhos para se fazer um petisco. Os bichos foram entregues ao primeiro-sargento que de imediato entrou na paródia, para que este, exímio cozinheiro de patuscadas —notava-se que gostava de comer a avaliar pela sua formosa barriga, tendo em conta que gordura e formosura— fizesse um belo “coelho à caçadora”.
 
Entretanto fomos dando dois dedos de conversa com o Capitão capelão.
Dava perfeitamente para entender que era um homem de não tiranizar ninguém nem tão pouco apresentar a força divina com a sua força de galões de capitão.
 
Tinha uma candura ingénua de jovem eclesiástico não tendo, no entanto, a boca constantemente cheia de milagres.
Sabia bem o que estava a fazer e qual a sua missão: era apenas um “pastor” de ovelhas fardadas e sabia que, naquele local de cheiro a guerra, nem todos acreditavam nas suas palavras.
 
Eu, pelo que me diz respeito, apenas ponho em causa o seguinte e que não consigo compreender muito bem: se do outro lado da guerra, dos que teimosamente tinham o cognome de "turras", existe outro qualquer padre, pedindo ao mesmo Deus exatamente a mesma proteção para os seus homens, como é que o bom Deus iria resolver esta questão?...
Que lado ele defenderia?...
Que homens mereciam a sua salvação?...
Será que conseguira terminar o conflito entre as partes terrestres?...
 
Pelo menos, até agora, não conseguiu por termo à ganância dos poderosos que, aliás, a grande maioria deles, se não todos, são muito dados a essas bênçãos do Céu, quando mostram o lado falso da sua face oferecendo este mundo e o outro aos altos eclesiásticos!...
Será que até ao bom Deus eles conseguem enganar?...

E lá fomos conversando.
Laracha daqui, laracha dali, até que veio a “ordem” para inicio da festa: —O petisco esta pronto!...

Todos os graduados, sem exceção, nem mesmo os sabedores do que estava dentro das travessas pronto a ser servido, se fizeram rogados aos pretensos coelhos!...
 
Estranhamente ninguém se lembrou que, coelhos, e desconheço a razão, foi animal que nunca foi visto em todo o enorme palmilhar que fizemos ao longo de toda aquela selva, provavelmente porque, se alguma vez existiram, pela sua fraqueza defensiva, depressa foram dizimados e extintos pela enorme quantidade de animais esfomeados, de tais apetitosas presas, que abundavam naquelas matas!!!...
O certo e que todos comeram alegremente e os comentários fugiam sempre para os mesmos adjetivos:
— Maravilhoso.
— Delicioso manjar.
— Ricos coelhos.
— Divinal.
— Porra que esta merda está boa!
O F……., como era habito nas chegadas das operações, já não estava com todos os seus sentidos a trabalhar em pleno.
 
Ria a bom rir, gozando deliciosamente a sua “partida” mas, tal como todos os outros, encharcava o pão no delicioso molho de “macaco a caçadora”!...
Não sobrou nada! Se mais houvesse, mais iria!...
O pior veio a seguir: na continuação da sua maquiavélica “construção”, o F….. saiu da mesa e apareceu um pouco depois com uma bandeja onde trazia, não uma quaisquer sobremesa para terminar a patuscada, mas sim, as cabeças dos desgraçados macacos!...
 
E para colocar um pouco mais de “pimenta” no seu cenário, só por si, bastante elucidativo, uma das cabeças vinha com um cigarro aceso na boca como que a gozar o espetáculo que se seguiria: os sabedores do que tinham estado a comer, riam-se ás gargalhadas.
 
Os outros, que pensavam ter acabado de se deliciarem com coelho, depressa transformaram essa guloseima em mau estar.
Sofreram um impacto digestivo que, não fosse o “restaurante” ter um “parque de estacionamento” do tamanho do mundo e não haveria lavabos que chegassem para tanto vomitar!...
 
A maior vitima foi o capelão que, coitado, enquanto ficou na Mataca, o que durou ate à chegada do táxi aéreo das quartas-feiras, não conseguiu comer nada que se pudesse chamar realmente de comer!...
 
Tudo vomitava!
 
Espero que nos tenha perdoado e nos mantenha nas suas orações diárias que, presumo, as tenha, e esqueça esta pequena maldade praticada por este seu rebanho de lobos com pele de cordeiros...

(ou será que é ao contrario?!!!).

 
Paulo Lopes (20130817)