quarta-feira, 9 de outubro de 2013

O PRIMEIRO DIA NA EPC - SANTARÉM..., por Livre Pensador

Escola Prática de Cavalaria - Santarém

Livre Pensador ... a diferença entre a instrução de Lamego e de Santarém não seria assim muita. A diferença mais notória estaria na forma como se interpretava essa instrução.
 
Mas já que falei de Santarém e uma vez que já alguns camaradas aqui contaram a sua experiência sobre o 1º. dia de tropa, eu aproveito a oportunidade para contar também a minha vivência desse mesmo dia que nos marca a todos.
 
Bem sei que não tenho dotes de escritor, mas é costume dizer-se que "quem dá o que tem a mais não é obrigado".
 
Aqui vai, então a minha aventura do famigerado 1º. dia.
Ele ocorreu a 11 de Janeiro de 1971.
Este mancebo dirigiu-se ao destacamento da Escola Prática de Cavalaria, em Santarém.
 
Após as devidas apresentações fui encaminhado juntamente com outras 29 vítimas para um pequeno recinto retangular, ao ar livre, onde se procedeu à distribuição do respetivo fardamento.
 
Quem por lá passou decerto que se recordará desse pequeno espaço.
Mas dizia eu que fomos levados para esse recinto para que nos fosse atribuída a indumentária que nos iria acompanhar durante os 3 meses de recruta do curso de sargentos milicianos.
 
Dispostos em "U" ao redor desse recinto, fomos sendo presenteados com as várias peças que compunham esse mesmo fardamento.
Para os novos donos do nosso destino próximo, pouco importava se a nossa constituição era maior ou menor.
Todos recebíamos a indumentária que era distribuída aleatoriamente.
Para os novos mancebos ficaria, à posteriori, a tarefa de trocarem entre si as peças do fardamento grandes ou pequenas, de modo a que ficassem o melhor "ataviados" possível.
 
Embora estivéssemos atentos a todo aquele desfile em que as últimas criações da moda inverno 71 eram depositadas aos nossos pés, eis senão quando, surge numa das extremidades do referido recinto, alguém que nos pareceu fardado a rigor, calçando botas altas próprias da cavalaria, blusão de cabedal bem lustroso, e com algumas listas amarelas brilhantes e cintilantes em cima dos ombros.
Creio que cada um dos 30 mancebos (falo pela minha reação) ficou a olhar para o vizinho do lado na tentativa de receber uma ajuda sobre qual a patente daquele cavaleiro.
Porém, rapidamente ficámos concentrados na insólita personagem, pois de imediato se ouviu um berro que dizia : « Óh seu cabrão, desencoste-se daí que me suja a parede»!!!
Tornou-se evidente que algum de nós (pobre mancebo) estaria encostado à parede que seria pertença daquela magna pessoa.
Imediatamente e, sem mexer nem pestanejar, tentei perceber qual das outras 29 vítimas estaria a cometer semelhante "crime".
Concentrado que estava nesta prospeção, chega aos meus ouvidos e dos restantes companheiros de infortúnio, nova frase saída do mesmo bocal: « Não ouviu, seu cabrão ?
Já lhe disse que me suja a parede »!!!
É então que reparo em 58 olhos de mancebos que se encontram focados em mim e, instintivamente, através dum pulo ou dum salto (ainda hoje não sei bem) desencostei-me da referida parede e assim parei de contribuir (segundo a teoria da tal personalidade) para a degradação do património do estado.
 
De imediato concluí que o tal cabrão era apenas e só EU !!!
 
Passado que foi este "agradável" encontro, o nosso anfitrião teve a amabilidade de se apresentar, dizendo bem do alto da sua "superioridade": « sou o tenente Capão e serei o vosso comandante de esquadrão durante o tempo da recruta, tempo esse que será para vós de sangue, suor e lágrimas »!
E mais não disse.
Virando as costas, saiu tão depressa como chegou e deixou em todos nós a convicção de que estaríamos entregues à bicharada durante os tempos mais próximos.
 
Foi assim o meu primeiro dia de tropa.
Sim, digo bem, o dia.
É que a primeira noite foi bem pior para todos nós, mas essa história ficará para outra oportunidade se todos vós tiverem interesse em que eu a descreva aqui na nossa página.
 
Obrigado pelo tempo de antena que me disponibilizaram e um abraço para todos.
 
Ribeiro.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

A EMBOSCADA..., por Paulo Lopes

Hélios a descolar
Os patrulhamentos à volta do nosso estacionamento continuavam como continuava a nossa vegetação no tempo.

Com estratégia um pouco diferente mas com intenção exatamente igual: assim que o sol punha em questão a sua continuidade diária dando inicio ao seu desaparecimento por detrás do horizonte, saia um grupo para patrulhar em redor da zona circundante ao estacionamento, acampando e emboscando diversificados pontos da mata, só regressando pela manhã.
 
Quando chegou a vez de o meu grupo sair, em vez de ir patrulhar, calhou-nos em sorte, uma operação com a previsão para cinco dias:
— Encontrar e emboscar trilho muito batido por elementos IN, na direcção dos Montes Metecos.
Era a finalidade desta operação!
A festa continuava.
A luta prosseguia.
As horas seguiam pachorrentas. Pachorrentas em demasia para quem queria ver o tempo correr, pular a cerca do arame farpado, voar por cima da extensa floresta e aterrar num local de paz, se possível bem longe de armas e, principalmente, dos abutres desta incompreensível guerra.
Tudo nos parecia igual ao dia anterior... ou quase tudo: operações, picadas, emboscadas, cansaço, sofrimento, desilusão, esperança e de vez em quando, à mistura, muito disfarçado, aparecia um pouco de falsa contradição à regra para alegrar o ambiente.
Por isso também estas minhas memorias que vou transcrevendo para estas longas paginas são quase sempre iguais.

Procurámos o tal trilho, qual agulha no palheiro, mas a Av. da Liberdade nunca mais dava mostras de si!... No nosso pensamento pairava a incerteza de se estaríamos corretamente orientados.
Se não estaríamos em coordenadas erradas ou que julgaríamos estar ou, mais uma vez, o tal trilho era invenção ou má informação do nosso querido major. Andámos de um lado para o outro.
 
Dirigimo-nos a norte e a sul, percorrendo toda aquela zona indicada pela mensagem e nada, absolutamente nada! Já nos preparávamos para regressar à Mataca quando, ao comunicarmos dando informação das coordenadas onde nos encontrávamos, do insucesso da operação e pedindo autorização para o regresso, fomos informados para abrir uma clareira nas coordenadas “X” a fim de os helicópteros poderem reabastecer-nos para mais três dias.
Noticia muito mal recebida mas a qual não havia espaço nem forma para contestação e tinha de ser cumprida.
Fomos ainda pernoitar nas coordenadas indicadas e na manhã seguinte fizemos a preparação necessária para a aproximação e aterragem dos hélios.

Ao longe, já se ouviam os motores do bombardeiro T6, companhia habitual nestas andanças de reabastecimentos.
Para facilitar a tarefa dos pilotos das aeronaves que vinham ao nosso encontro e para uma mais rápida e eficaz deteção do local, tentámos comunicar com eles através do radio banana mas —espanto dos espantos— não funcionou!!
Entretanto os helicópteros já se avistavam mas um pouco distantes do objetivo e numa direção errada à que se pretendia.
As tentativas de comunicação com o T6 ou com os pilotos dos hélios continuavam a ser frustradas. Não conseguíamos obter qualquer sinal e quanto mais tempo eles andassem a mostrar-se no ar, maior era a hipótese de serem observados pelo IN dando-lhes indicação correta do nosso posicionamento e da nossa presença na zona.
Nada a fazer: radio avariado!
Conclusão brilhantemente encontrada!
Comunicámos com Mataca através do Racal:
— Alo XY9. Alo XY9. Aqui macacos. Informa se me ouves. Escuto.
— Diz lá ó macaco. Respondeu o radiotelegrafista de serviço no posto da Mataca com um certo ar de gozo devido ao cognome que foi dado à formação de combate para esta operação, coisa que se fazia muito nestas comunicações até talvez para nos dar um pouco de animo e aliviar tensões.
— Aqui o macaco está à rasca com os pássaros. Vê se consegues comunicar com eles que eu já estou farto de estar empoleirado nos galhos das árvores.
— OK., vou tentar. Continua atento.

Esperámos um pouco.
Entretanto lançámos duas granadas de fumo.
Quê do fumo? Lançámos mais duas. Uma amostra de fumo, ou tentativa disso, saiu vagarosamente e muito a custo duma delas que mais parecia o apagar de um cigarro que nem aos primeiros ramos das árvores chegaria. Mais uma brilhante conclusão: granadas de fumo deterioradas! Exatamente igual aos nossos altos comandantes: mentes deterioradas!
Voltámos a ligar:
— Alo XY9. Alo XY9. Aqui macaco. Diz se me ouves. Escuto.
— Sim macaco. Estou a ouvir.
— Conseguiste alguma coisa ?
— Já estou em contacto com os pássaros. Vai dizendo a tua posição..
— Eles que voem mais para sul. Estamos numa clareira perto de árvores secas e queimadas.
Apenas mais um pouco de espera e prosseguimos: — Assim esta bem. Venham sempre em frente. Se correto termino. Um Alfa Bravo.

Finalmente desceram. Um após outro depois do levantamento do anterior. Descarregaram as rações de combate e a água, voltando a afastar-se rapidamente.
Confusa mas ordenadamente fez-se a rápida distribuição dos mantimentos e de água destinados a cada um de nós.

Continuámos em busca do malfadado trilho mas agora possuidores de novas ordens de direção a seguir.
Palmilhámos horas fazendo paragem para almoço numa esplanada com vista para os Montes! Agradável visão mas o “serviço” era péssimo e o menu, lastimável, por isso, sem deixar gorjeta, fizemo-nos à “estrada” porque o tempo escasseava e o trilho não queria aparecer.
Conseguimos encontrá-lo ao fim da tarde!
Afinal existia!
Seguimos por ele durante algum tempo.
De repente surgiu uma sucessão de trilhos que se dividiam em forma de forquilha e avançavam em três frentes.
Escolhemos o mais batido!
Todos nós redobrámos a nossa atenção, convictos de que algo nos esperava no extremo do trilho!
Cautelosos e desconfiados, com uma lentidão de caracol, olhos de Lince e ouvidos afinados, íamos progredindo no trilho.
De repente, num relâmpago e numa sequência vinda da frente, todos nos deitámos no chão: o homem que seguia no ”olho” da formação tinha detetado uma palhota e deu o alerta através dum sinal gestual para o que seguia na sua retaguarda fazendo sucessivamente o elo de ligação aos outros que, como é óbvio, seguíamos em formação de progressão.
Do lado da palhota o silencio predominava!
Tudo levava a crer que não se encontrava la ninguém, mas nada de fiar, nada nos dava a garantia que não estivessem emboscados, prontos para disparar sobre nós.
Por isso todas as cautelas tinham de ser tomadas e qualquer movimento tinha de ser avaliado como suspeito.
Os primeiros homens do grupo que ia na frente adiantaram-se um pouco mais originando a falta de comunicação entre nós, desfazendo a necessária e indispensável ligação.
O meu grupo seguia na retaguarda e no meio do mato, uma a uma, iam surgindo mais palhotas.
De repente, um dos homens do grupo, deu a sinalética para nos baixarmos e deitou-se preparando-se para disparar:
Tinha detetado vultos em movimento no meio das palhotas !
Fazendo uso de toda a força dos pulmões, alguém gritou:
— ALTO. NÃO DISPARES SÃO OS NOSSOS.
Creio que este berro protetor, auditivo a longa distancia, evitou algo de muito mau!
Se aquele homem tem disparado a sua arma, originava um pandemónio geral que, depois, ninguém saberia quem era quem e ficaríamos ali a disparar contra nós mesmos, pois os vultos que vagueavam por entre as palhotas pertenciam ao grupo que seguia na frente e que, com a excitação do achado, se afastara demasiadamente ficando assim a comunicação visual e gestual perdida, esquecendo- se de que, com esta falha, os que seguiam na sua cauda ficavam sem conhecimento do que se estava a passar na frente da coluna desconhecendo a posição deles.
São falhas humanas que só sucedem a quem anda no meio desta guerra e desta mata agressiva de densidade extrema e de perigos constantes.
São também estas falhas que demonstram a nossa fragilidade, a nossa meninice para estas façanhas. Provas evidentes da quão relativa era a nossa experiência e capacidade de guerrilha.
Apesar de estarmos já com muitas e longas horas de “voo” nesta máquina que é a guerrilha de floresta, existem pormenores que nos escapam e são completamente varridos trazendo ao de cima toda a nossa estrutura de amadores da guerra.

Quando parte de um exército, aquela que combate no mato, só está em ação porque a isso é obrigada, sem ter em mente um objetivo comum e enraizado nas suas entranhas que luta por uma causa justa.
 
Quando apenas a intenção é simplesmente manter-se vivo, sobreviver ao tempo, defender a sua própria pele e a dos seus companheiros e ir-se embora o mais rápido possível, abandonar as vestes de militar, esquecer as armas, ignorar os que nos enviaram para esta vida, descomprimir o nosso espaço, nunca poderá existir uma coesão total de força comum, nunca será uma real fileira de guerra nem de máquinas mortíferas capazes de matar por matar e dar a vida pela tal causa justa que a todos beneficiaria.
Arrisco a dizer que nós, os amadores, os incompetentes, os inadaptados a esta vida, poderíamos não perceber nada do que estávamos involuntariamente a fazer mas tínhamos um conhecimento que nos generalizava a questão: esta guerra nada tinha de justa e muito menos iria beneficiar o povo português.
Beneficiaria sim, os tubarões nacionais e internacionais.
Esta guerra não era nossa, apenas tínhamos de a suportar e obrigatoriamente defender, com a nossa própria vida, os interesses bilaterais instalados no sistema minado de corruptos e corrompidos poderosos, mágicos da mentira, malabaristas das palavras.
Figuras escondidas por de trás de outras caras menos poderosas na politica mas tão ciosas do poder monetário e protagonismo quanto os seus mandantes.
Por isso e por razões de defesa própria, estando no meu pensamento que tal sentimento, não sendo generalizado era, no mínimo, em grande maioria, razão para que, podendo nós dizer não, seguindo os nossos instintos, desprezar por completo as ordens dadas pelos profissionais, o faríamos.
 
Profissionais da guerra que nunca estão presentes nestas nem em nenhumas ocasiões onde a presença do perigo nos aperta o peito e assola a calma.
Nenhuma destas peripécias e de outras tantas de desfecho trágico que acabaram com vidas de jovens inocentes na flor da vida acontecem numa daquelas maquetas feitas em cima de uma mesa, com a operação a ser comandada pelo ponteiro de um qualquer general ou de patente parecida.
Aí, com a destreza, valentia, coragem e amor à Pátria do ar condicionado, tudo é perfeito e não existem falhas, receios ou negações às ordens e até éramos capazes de terminar a guerra em meia-dúzia de dias.
Mas esses heróis dos mapas e ponteiros para alem de pensarem que sabem de táticas e esquemas desta guerrilha mas que não percebem patavina, também não tinham no seu horizonte de vida, terminar com a guerra.
Não era fator que estivesse nos seus reais interesses!.
Porquê terminar com a boa vida cheia de prazeres e tão lucrativa?... Não eram eles que corriam perigo eminente e os seus filhos, naturalmente, estariam no Colégio Militar!
Ou na Suiça!
Digo eu que, apesar das circunstâncias adversas, continuo a gostar de dizer coisas!

Felizmente alguém se apercebeu e teve olhos e frieza suficiente para ver que, quem estava do outro lado das palhotas, eram os nossos próprios companheiros!
Mas o forte grito não perturbou os homens que naquele momento já destruíam todas as palhotas que, sem duvida, era um posto avançado de uma base próxima, dada a forma de construção e de como era a continuação e estilo de trilhos.
Depois de tudo destruído, avançámos paralelamente e bastante cautelosos por um dos trilhos.
Decerto que os habitantes daquele posto avançado já se tinham apercebido há muito que andávamos por ali e, como tal, tudo era de esperar, desde minas colocadas no trilho, emboscadas previa e minuciosamente preparadas, a morteiradas enviadas da base.
Já o sol se começava a esconder no horizonte e a luz do dia ameaçava o colapso quando nos afastámos um pouco do trilho para pernoitar e montar uma emboscada.
Com todas as instruções dadas e tudo já “acomodado” nos seus locais de pernoita e emboscada, ligamos para Mataca:
- Alo XY9. Alo XY9. Aqui macaco. Diz se me ouves. Escuto.
— Diz lá meu macaco!
— Toma nota e chuta para DN6.
Detetadas e destruídas varias gaiolas vazias. Estou quieto. Espero ordens. Diz se correto. Escuto.
— OK. Macaco. Volta daqui a dez que eu vou informar DN6. Escuto.
— Correto XY9. Termino. Um alfa bravo.
Passado o tempo recomendado, voltamos a ligar:
— Alo XY9. Alo XY9. Aqui macaco. Diz se me ouves. Escuto.
— OK. Macaco. Estava a tua espera. Já tenho bananas para ti. Toma nota. Continua quieto e amanhã quando almoçares volta a este. Diz se correto. Escuto.
— Correto. Um alfa bravo. Termino.

Tal como o major ordenara, ficámos emboscados até cerca das onze horas da manhã seguinte sem que nada tenha acontecido. Quando ligámos a Mataca para informar que nada tínhamos visto nas horas anteriores, deram-nos ordem de regresso, o que fizemos de bom grado, numa caminhada, o mais direta possível e com a rapidez que as nossas pernas cansadas permitissem.

in "Memórias dos Tempos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
 Paulo Lopes

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

AÍ VAI UM RELATO SOB A MINHA ESTADIA EM BEJA - 1971, por Rui Briote

 
Rui Briote
 
Mafra ficou para trás e de troca recebi o diploma honoris, causa de amanuense de G3...
 
Deram-me um papel para as mãos afim de escolher o quartel para onde queria ir e eu feito esperto pus logo Braga..
Como resposta enfiaram-me em Beja...seria por começar por B? Não sei, nem nunca saberei...

Em meados de Julho saí de comboio, já não me recordo do dia, à meia noite de Coimbra e cheguei a Beja ao meio dia.
Foi uma curta e pouca demorada viagem como se vê!...
Atravessar o Alentejo em pleno verão e à hora do calor num comboio "pára aqui, pára acolá" ...foi uma rica sauna...
 
Chegado à minha nova morada, tive que me ir apresentar a um militar com muitos amarelos nos ombros. Fiz a continência da praxe, apresentei-me e mandou-me " visitar" os meus novos aposentos.
 
Ótimos, pois o tempo da caserna foi-se.
No dia seguinte deram-me de mão beijada 10 cabo-verdianos para lhes ensinar os primeiros passos de dança .
O trabalho que me deram!
 
Uns dias depois, caíram, vindos de todos os lados, uma " fornada" de novos candidatos para brincar às guerras...provenientes de todo o país, mas principalmente do Alentejo.
Eram distribuídos por diferentes salas, despiam-se, víamos o peso, a altura e por aí adiante.
Foi uma tarefa cansativa e morosa, mas fez-se.
 
Fiquei com um pelotão com quase 80 homens.
Comecei logo a matutar como ia descalçar aquela bota, pois eram mais que muitos.. Juntamente com dois cabos milicianos lá procurei levar a água ao moinho.
Todos os dias de manhã fazíamos um cross ligeiro na estrada em direção a Mértola, uma fila do lado esquerdo, outra do lado contrário.
 
Ao fim de alguns dias começamos a ter a feliz ideia de no regresso ao quartel trazermos uns melões escondidos na camisa...sabiam tão bem!...
 
Já no quartel passávamos à instrução debaixo da torreira alentejana...o pior era no intervalo, pois como havia falta de água e como só havia um repuxo tinha que pôr a malta em " pirilau" e de vez em quando era obrigado a dizer ..." Despacha-te, porque todos têm direito ...
"Muitas vezes acontecia que, chegado a meio da fila já não havia nem gota...
Os dias passaram e o pessoal começou a dar cartas, tanto a marchar como no manuseamento da menina G3.
 
Até que chegou o dia de ir à carreira de tiro que ficava a uma distância razoável.
A sessão decorreu normalmente e por fim regressámos à casa materna.
Aí chegados fui chamado ao major Ferro que me comunicou que tinha falecido a minha avó paterna. Isto numa terça feira. Fui à secretaria buscar o impresso para preencher o passaporte, aproveitei e perguntei se estava de serviço no fim de semana a que me responderam " não".
Preenchi logo dois.
Fui a esse major pedir para mos assinar e o fulano quando se deparou com o impresso para o fim de semana ficou histérico e pura e simplesmente negou-mo.
Apeteceu-me apertar-lhe os colarinhos, mas travei os meus ímpetos.
Fiz uma longa viagem até ao Minho e regressei a Beja na sexta, onde me apresentei.
 
O tal major estava a falar com um amigo meu e, segundo ele, depois de eu sair questionou-o se eu era o Briote...mais palavras para quê...era um " chicalhão"...
    
Vou passar agora relatar-vos um episódio que meteu cabeça de borrego regado com tinto alentejano e guarda republicana...
Certo dia, dirigimo-nos em alguns carros até Moura para comer cabeça de borrego regado com boa pinga.
No regresso passámos por Serpa onde havia uma festa que metia bailarico.
Aí houve um sarilho que envolveu saias, pois um colega estava a dançar com uma garota e eis senão quando aparece o namorado, o que provocou troca de mimos que culminaram numa " visita" ao posto da GNR.
Felizmente o problema foi sanado, mas para susto bastou.
   
Já com os diplomas de bom aproveitamento, estavam prontos a seguir para outras paragens os recrutas passados a " prontos".
 
Entretanto surge a " boa nova"...mobilizado para Moçambique.
Fico de rastos, pois nunca esperava que isso acontecesse, pois tinha ficado bem classificado.
Reagi o melhor que pude e procurei preparar-me psicologicamente para a nova tribulação.
 
Conjuntamente comigo iriam uns "malandros" a quem dei instrução. Fui incumbido de levar 60 a Santa Margarida. Não imaginam a dor de cabeça que tive a fazer essa " viagem". Com muito custo e dor de cabeça lá os entreguei ao Teixeira Lopes.
 
Depois de um ligeiro descanso, regresso de novo a Beja para " dar conta do recado" o mesmo será dizer " missão cumprida".
 
Esta tropa tinha cada uma, pois no mesmo dia obrigaram-me a andar de Aná para Caifás...Fiquei com os bofes de fora!!!
     
Aos fins de semana ia de vez em quando passá-lo ao Algarve molhar os pés...
Armadilhados com uma tenda cinco estrelas lá íamos saborear um pouco as águas tépidas e as estrangeiras que por lá nos esperavam.
 
Foram os melhores dias dessa recruta dada na muito sossegada cidade de Beja...
 
Rui Briote (2013-10-01)

 

terça-feira, 10 de setembro de 2013

FUI INSPECCIONADO, por Paulo Lopes


Paulo Lopes
 
 
Conforme prometi aqui vai mais um "chateanço" de cabeça à rapaziada e, mais uma vez, creio que vou estar em sintonia com muita malta desta página (uns nem tanto, mas...)

De disciplina em disciplina; de filme em filme; de tacada em tacada; mais conversa menos musica; mais musica menos conversa; mais rua menos avenida caminhada; mais pontapé na vida e menos na bola, lá ia cultivando um futuro que, afinal, estava logo a seguir, ao virar da esquina.

A proximidade do futuro que se adivinhava para jovens como eu, estava nas mãos dos governantes e eles precisavam dos meus préstimos para outros empreendimentos os quais não estavam nos meus planos nem sonhos.
 
Como prova desta minha teoria, existia o meu completo esquecimento de que para alguma coisa tinha ido, uns meses atrás dar o nome a um obrigatório recenseamento militar.

Fiquei conhecedor de que não estávamos só nas mãos de Deus, como sempre nos quiseram fazer acreditar, mas também nas dos diabos e seus apóstolos que proliferavam lá para as bandas de São Bento, acompanhando os nossos passos, controlando as nossas ideias, não nos deixando cair na tentação de devaneios que nos levassem a criar obstáculos e por em causa as suas indiscutíveis razões do bem-fazer aos seus semelhantes.
 
Isto com a ajuda imprescindível de quem nos queria fazer crer que só Deus nos guiava.
 
Ouvíamos, mas pouco comentávamos (talvez receio, talvez ignorância imposta ou simplesmente por não querermos falar) o tema tabu da guerra colonial.
Íamos sabendo que fulano tal e sicrano, que estavam a cumprir o serviço militar, tinham partido para terras de África, mas não nos era facultado qualquer pormenor ou conhecimento do que se passava para lá do Cais da Rocha de Conde Óbidos, para além das águas que banhavam os muros onde os barcos atracavam e se enchiam de jovens duma nação comandada pela ganância, embarcando ao som de choros e gritos de lamentações, lenços brancos a abanar, já encharcados de saudades.
 
Martelavam-nos a cabeça com outros assuntos bem mais fáceis de digerir e cheios de fé.
 
Incutiam-nos a ideia, esta reforçada pelos nossos pais, talvez querendo enganarem-se a eles próprios ou com o pensamento de que nos estavam a proteger de assuntos que nos fizessem alertar para a realidade completamente desconhecida, que quando chegasse a nossa hora de ir para a tropa já a guerra estava terminada e Angola, Moçambique, Guiné ou os outros diversos territórios espalhados pelo mundo, eram e continuariam a ser nossos.
 
(Angola é nossa...Angola é nossa...Angola é nossa).
 
Ouvíamos isto numa música passada constantemente na rádio, na televisão e nas ruas.
 
Inconscientemente íamos alimentando o nosso espírito de que era verdade e que não nos deveríamos preocupar muito com essa coisa da guerra do Ultramar, além de que, na tropa, é que "aprendíamos a ser homens"!...

Sempre nos foram vedadas a sete chaves pelo regime de então toda e qualquer verdade da questão.
 
A guerra colonial tinha de ser vista e sentida pelo povo como um estandarte do nosso país, pelo qual tínhamos de dar tudo por tudo para que esses nossos territórios não caíssem por terra, para que não caíssem nas mãos dos “terroristas”.
 
E no “tudo por tudo” estavam incluídas vidas e esperanças de uma juventude que, apesar de tudo, ainda mantinham sonhos e horizontes por descobrir.
 
Claro que a juventude filha dos poderosos do nosso país estava bem resguardada e alheada desse estandarte pelo qual o povo, sempre o povo, tinha de defender a bem da nação (e dos poderosos dela).
 
Mesmo que nos esforçássemos para conseguir ir um pouco para além do que nos era permitido (o que, contra mim falando, não era o caso porque deixava correr o tempo e esperava que as coisas se resolvessem por si próprias), logo se deparavam obstáculos complicados de transpor que nos colocava de imediato em maus lençóis.
 
A forma mais premente que surgia nos jovens que não queriam participar nos ideais dos poderosos do nosso estado e do nosso país, estavam presentes na fuga imediata.
 
Na subversiva passagem para o outro lado da fronteira.
Numa vida de fugitivos da própria sombra.
Numa incerteza do futuro, mas com a firme certeza que não iriam morrer ao serviço de beneficiados ocultos na capa de benfeitores e no escudo de "a bem da nação".

Na minha mente nunca esteve essa hipótese, para mim absurda, porque, ou teria a sorte do meu lado e venceria essa batalha ou ela não me acompanharia e decerto, para sobre viver noutro lugar, em outro pais, iria dar o meu esforço, não sabia a quem, ser escravo dos meus próprios minutos.
 
Vender a minha alma em troca de quase nada a incessantes ávidos de sangue e do suor alheio.
Na imensurável questão do vai ou fica, do ter ou não ter sorte, do questionável ou não, optei por jogar "no que for soará", mas junto dos meus familiares e amigos.
Não desdenho dos que pensaram o contrário, nem faço elogios a quem por essa prática enveredou.
Cada qual deve pensar pela sua cabeça e seguir o caminho traçado por si mesmo.

O povo tem razão (nem sempre. Quase sempre, quanto muito!) quando diz que o tempo voa.
Num instante se tinha passado mais um par de tempo e sem dar por ela estava no edifício da Junta da Freguesia da Penha de França a conferir os editais, procurando avidamente o meu nome agregado a uma data para me apresentar na inspeção militar, sempre com esperança de não enxergar a minha graça.

Mas não! Nestas ocasiões eles, os nossos amigos, os governantes, nunca se esquecem de nós e lá estava o meu nome numa extensa lista de futuros magalas.
O esquecimento ficaria para contas de outro rosário.
Quem não podia esquecer essa data era eu, se queria não arriscar passar instantaneamente de um pacato rapaz bem comportado a um refratário.
Palavrão que, nesses tempos, era sinónimo de grande malfeitor, assassino ou coisa pior ficando, inclusive, marcado para a sociedade.

O tempo que separou o dia da minha minuciosa leitura do edital até a data nele marcada (a memória atraiçoa-me e a exatidão dessa data deixa-me na incerteza) foi passado nervosamente veloz.
Tão veloz que num ápice estava a dizer (dizer, é uma forma de expressão!... Pedir, será o mais correto) ao meu chefe que tinha de faltar para me apresentar num edifício, se não me falha a memória, ficava perto da Praça de Espanha onde, na altura, funcionava o Hospital Militar, a fim de ser inspecionado para o serviço militar.
 
Pedido que, alastrado, fez soltar um exclamado “jáááá!!!” e umas quantas palmadinhas nas costas, amigavelmente, dadas por todos os meus colegas, todos mais velhos que eu e livres destas andanças, como que, antecipadamente, despedirem-se de mim e desejarem-me sorte para uma nova vida.

In "Memórias dos Tempos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
Paulo Lopes  1 de Agosto de 2013

sábado, 7 de setembro de 2013

Nesse dia de 12 de Maio de 1972..., por João Novo

Alguns dos participantes na Operação OMO (Maio de 1972) - Serra Mapé
 
Vou hoje dar voz ao João Novo que nos retrata uma situação que eu também vivi e que com frequência me vem à memória, e como também eu estava nesse local, a essa hora e vivi esse momento... não posso ficar indiferente... Quantas vezes (dezenas, centenas, milhares?) na minha já longa vida não terei eu pensado, no que poderia ter sucedido, se algum dos nossos se lembra de reagir?!...

 
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Nesse dia de 12 de Maio de 1972

Hoje vou intervir, porque não consegui resisti a esta data, não por ser de Fátima, pois eu não acredito nessas coisas, mas porque podia ter sido a nossa ultima noite de vida.
 
Estou convencido que a grande maioria dos nossos colegas, não se apercebeu do que ali poderia ter acontecido, nesse dia de 12 de Maio de 1972.
Nesse dia houve um reabastecimento por helicópteros, em que algo correu mal, pois caiu um deles na Serra do Mapé, o que veio atrasar esse reabastecimento, implicando que a pernoita, tivesse que ser efetuada, ainda perto do local, onde baixaram os hélios.

O T. Alves, (mais tarde o machambas) que ia a comandar em terra a operação, deu ordem para pararmos, fazer um circulo com a tropa (300 e muitos homens) e os cerca de 400 civis, que nos acompanhavam com catanas, (que serviriam para destruir as machambas, pois era essa a finalidade da operação) ficariam dentro do circulo.

O comandante escolheu o local, do posto de comando (dizer isto a gaguejar, como o T. Alves dizia, é que era de rir) onde ficou o caldeirão da sopa, junto da nossa cabeceira e dos seus carregadores, não fosse o caldeirão fugir, eu, o Cunha enfermeiro, lembram-se dele?, alguns enfermeiros e as transmissões.
 
Foi o tratar de encher os colchões de ar, um luxo, naquele local, para tratar de fazer a caminha.
Tinha do meu lado direito, o Cunha e do lado esquerdo, o Comandante, isto, deitado de barriga para o ar.
Nunca dormi tão bem acompanhado. O tempo foi passando, já nem me lembro, em que pensava, ou no que sonhava, não se podia falar, nem fumar, nem cagar tão pouco (FELIZMENTE HOJE JÁ NÃO FUMO), se calhar pensava na família, no “Puto”, na namorada, se calhar a sonhar que estava a fazer amor com ela, ou que ela estava com o outro, quem sabe, já não me lembro, quando vim de férias ao “Puto”, acabou o namoro, mas não foi por causa do sonho.

Estávamos todos felizes, quando cerca das 22,35H, uma rajada de metralhadora, se ouviu que passou a centímetros do P.C. (Posto de Comando), duas ou três munições acertaram no caldeirão da sopa, fiquei todo "cagadinho".
A reação que tive foi despejar o ar do colchão, para ficar mais baixo, atrás do caldeirão.
Dos cerca de 800 cagarolas, todos "borradinhos", ninguém abriu o bico, não houve reação á rajada, pode ter sido a nossa sorte, passados não sei quantos minutos, ouvimos o “assobio” das granadas de morteiro a sair, que começaram a cair a cerca de 15 a 20 metros do caldeirão da sopa, eu via o clarão dos rebentamentos, estava todo "cagadinho", entretanto, começo a sentir algo a mexer entre mim e o Capitão, pensei ser alguma cobra, eu sei lá o que pensei, era o sacana do Cunha a meter-se entre mim e o T. Alves, deveria querer que eu lhe cobrisse a espinha, não me lembro o que lhe fiz, se fosse hoje metia o gaijo no caldeirão da sopa.
 
Os rebentamentos começaram em frente de onde estava o P.C., depois foi para a direita e depois para a esquerda, e passados não sei quantos minutos, acabou.
Da nossa parte, nada se passou, tudo caladinho e todos "cagadinhos", era um pivete naquele local, que nem calculam.

Vamos morrer e nunca saberemos o que se passou, muitas coisas podem ter sucedido.
Ou não acreditaram que estávamos ali, os morteiros podiam não alcançar mais ou não tinham mais munições ou também teriam um certo receio, pois sabiam a quantidade de tropa que lá estava e era muita.

Tivemos muita sorte, porque se as morteiradas caíssem 30 ou 40 metros mais á frente era a matança de muitos e depois o que se seguiria?...
Seria a desorientação total, felizmente nunca se saberá...

Estamos vivos, por enquanto e o nosso dia chegará, mas que seja o mais tarde possível e com saúde.

Desculpem os erros, mas foi escrito diretamente e como não foi á censura, pode ter alguns erros.

Quem lá esteve, espero que nunca esqueçam este dia ou melhor essa noite...
Podia ter sido a última para muitos...
Mas mesmo muitos.
Esta foi a minha pior noite da guerra e ainda “vista” agora, faz-me pele de galinha...

Um abração para todos