segunda-feira, 4 de novembro de 2019

O Banco dos Dias, por José Nobre

Nunca Atirei Pedras Aos Cães.
Moçambique – Agosto de 1967 – Outubro 1969.
Paris – 11 de Março de 1972
O Banco dos Dias.
Tenho dias para a “troca”....trocaria bem o dia 11 de Março de 1968, por um outro qualquer, mesmo que fosse um dia sem sol, chuvoso, triste, como o dia de hoje.
Começou a nevar, o verde da relva do jardim vai desaparecendo aos poucos. 
Os sons que chegam da rua são menos agressivos. 
Sim, faz hoje quatro anos. 
Deveriam existir bancos de dias, onde pudéssemos trocar dias maus por dias bons, mais caros claro, porque isto de trocar um dia mau por um dia bom dá muito trabalho. 
Um calor do caraças, o café do quartel de Palma sempre é melhor do que aquele que bebemos no mato.
A neve acumula-se no parapeito da janela. 
Não vejo os pardais que habitualmente picam a relva durante horas e horas procurando o que comer.
Sim. 
Deveriam existir esses tais bancos para trocar dias – Bom dia, tenho um dia para a “troca,” não, não é um dia é uma manhã, uma manhã quente de Cabo Delgado, uma manhã de tiros de granadas, de gritos, chamem o enfermeiro, precisamos do helicóptero....o Amável está morto. 
A vizinha do primeiro andar atravessou o pátio, com cuidado...pé...ante...pé, tal como nós numa qualquer picada de Cabo Delgado...pé...ante...pé. 
A granada que o alferes Guerra trazia à cintura explodiu, ele e o Bibiu morreram. 
Tenho dias para a “troca.” 
Vamos dar um mergulho à praia, a malta da nossa companhia deve estar quase a chegar, depois do banho vamos comer um peixe assado ou umas lulas fritas, e beber umas “catembes.” 
Por favor, pode ver na tabela dos dias quanto custa trocar o dia 11 de Março de 1968, por um outro dia qualquer? 
Tenho dias para a troca. 
O Camilo Alves, também morreu.....
Se não me trocarem os dias, eu dou os meus, não todos. 
Quero regressar a Palma e falar com o senhor que manda nos dias, o gajo que decide...hoje é um dia de sol e de vida....amanhã não sei. 
O senhor do banco dos dias, diz que vai ser difícil trocar o dia 11 de Março de 1968 por um outro dia qualquer, os dias consumidos são considerados em 2ª mão, e para além do mais ninguém compra dias com mortos. 
Posso falar com o gerente? 
Posso falar com o gajo que decide quem morre, que decide quem vive. 
A água do Indico está quente, eu e o Banó estendidos na areia branca da praia de Palma, ao longe os barcos dos negros continuam a pescar. 
Por favor caro Senhor, troque-me este dia, esta manhã, pela merda de outro dia qualquer. 
Sabe caro senhor, nessa manhã morreram na picada de Pundanhar quatro gajos que eram nossos irmãos. 
Não pode? 
Então diga-me quanto custa um milagre. 
Juro que comprarei velas, juro que rezarei, juro que farei peregrinações. 
Como? 
Não pode ser? 
Já é tarde?
A neve continua a cair, da cozinha chega-me o som do rádio e a voz do Jacques Brel que canta--- Ne Me Quitte Pas.
Faz hoje quatro anos......
Não me esqueci......e continuo a gostar de vocês.....IRMÃOS.
(Rectifiquei algumas “coisas” poucas do escrito original )
Paris – Boulogne-Billancourt. - 11 de Março de 1972

domingo, 13 de outubro de 2019

Ataques à ponte sobre o rio Messalo..., por Livre Pensador

Livre Pensador 




Devido a algumas dúvidas, incertezas e "apagamentos" na minha memória, o Livre Pensador (Ribeiro) esclareceu-me e deixou este depoimento, que vos deixo para recordar, sobre os ataques à ponte sobre o Rio Messalo.

"Pardal, durante os quase 25 meses que estivemos no Chai houve alguns ataques à ponte do Messalo. 




No entanto, aqueles de maior envergadura foram em Maio e Outubro de 1973 em que a Frelimo tentou fazer golpes de mão para conquistar e destruir a ponte, tanto assim que nessas duas tentativas eles iam prevenidos com bombas de avião, que depois abandonaram na fuga e nós tivemos de andar a explodi-las com a colaboração dos camaradas sapadores do batalhão.





Em Maio de 73 foi com a ajuda do furriel António e em Outubro de 73 com a colaboração do furriel Bernardo, já falecido. 

Foi no ataque de Maio de 1973, altura em que a ponte era defendida apenas pelo pelotão de Bilibiza, que a Frelimo conseguiu conquistar metade da ponte, originando alguns mortos e feridos nesse pelotão e em que um dos mortos e/ou desaparecido levou uma bazookada de RPG7 quando tentava fugir do abrigo a meio da ponte para os abrigos situados na margem sul. 

Desse militar restou apenas um pedaço de camuflado caído no chão em cima da ponte. 

Como o Briote escreveu no texto atrás, foi o pelotão dele que depois andou a percorrer as margens do rio na tentativa de encontrar alguns restos mortais do soldado. 




A partir desse ataque a ponte continuou a ser defendida durante o dia com o pelotão de Bilibiza e à noite era reforçado com uma secção da 3508. 

Foi essa a situação verificada no grande ataque de Outubro de 1973 em que o pelotão de Bilibiza estava reforçado com uma secção do 3º.pelotão da 3508 comandada pelo furriel Vicente. 

Como te disse, ouve outros pequenos ataques ao longo dos 25 meses, mas reportavam-se apenas a umas morteiradas lançadas de longe. 





Na última de todas, ocorrida em meados de Fevereiro de 1974, estava lá eu com a minha secção e a Frelimo resolveu que não nos ia deixar dormir nessa noite. 

De hora a hora, mais ou menos, lançavam uma morteirada que rebentava relativamente afastada da ponte. 

Ás duas ou três primeiras ainda respondemos, mas depois eu decidi que parávamos por ali. 

Eles continuaram a "brincar" até amanhecer. 

Abraço, rapaz".

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Aramistas, por António Encarnação

Sim, poderemos também estar no "canal memória".
Já publiquei este texto umas duas vezes.
Alguns de vós irão lê-lo pela primeira vez.
Um contribuição literária de um chefe "ferrugem-aramista " da 3509.
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Aramistas
Quando aqui se fala em “aramistas”, eu concordo que havia grandes diferenças. 
Havia gente que andava na guerra e outros que iam proporcionando condições para que os operacionais pudessem cumprir a sua missão. 
De defesa da pátria, claro.

Alguns desses operacionais adoravam o papel de “Rambos”. 
Notava-se na forma como actuavam e, até, como falavam com subordinados e colegas. 
Outros, nem por isso.
Eu não conseguia compreender os Rambos, mas não os criticava.

Lamentavelmente, a defesa da pátria não era, por mim, sentida como um desígnio. 
A pátria era o rectângulo e o resto eram como que devaneios de gente que parecia saber mais do que eu.
Também não me comovia com aquele sentimento de posse que dominava a nossa sociedade, tão bem exemplificado na célebre “Angola é nossa”. 
É que muito antes, já alguns colegas estudantes africanos, me tinham explicado, em noitadas na Casa do Império, que era deles, que era a sua terra.

Nem o conceito nacional de terrorista eu aceitei facilmente. 
Quando as “coisas” apertaram em Lisboa, alguns desses amigos africanos piraram-se. 
Saíram do “sistema” que o mesmo é dizer que passaram a ser clandestinos. 
Devem ter regressado à sua terra, Angola, e devem ter ficado do outro lado da barricada, para não serem presos.

Se calhar, passaram a ser terroristas, mas eu sabia que não eram. 
Eram idealistas, bairristas e nacionalistas. 
E, principalmente, eram jovens como nós, mas habituados a uma terra com maiores horizontes e mais liberdade do que a nossa.

Aprendi mais tarde que a guerra deles era feita por outra gente. 
Os que conheci, seriam talvez, dirigentes ou pensadores ou estrategas, mas não eram “carne para canhão” como os jovens portugueses.

Por entre todas estas e muitas outras "variáveis", estive 2 anos em Macomia, na grandiosa Zero Nove.
Obviamente, relacionava-me mais com os aramistas e ia vivendo, à distância, as vidas duras de alguns operacionais.

Ao contrário do Joao Reis, nunca fui um militar e muito menos, um militar aplicado. 
Tinha muitas dúvidas e quanto a certezas, acho que não tinha nenhumas.

No entanto, isto não me fez esquecer a necessidade de cumprir com a minha obrigação e fi-lo. 
Fiz o melhor que sabia e que podia. 
Ainda hoje o afirmo calmamente, sem vergonha, nem desejos de disfarçar.

António Enc
14/11 

sexta-feira, 31 de maio de 2019

HISTÓRIAS DO CHAI XIV..., por Livre Pensador

HISTÓRIAS DO CHAI XIV
Numa guerra de guerrilha como aquela que Portugal enfrentou em terras moçambicanas, qualquer força de intervenção se torna extremamente vulnerável sempre que tem de executar acções rotineiras, pois nesse caso, permite que o inimigo estude metodicamente os seus movimentos, hábitos e procedimentos, aproveitando assim os melhores momentos para desferir os seus ataques.

Era nesta situação e perante este perigo que se encontrava a Ccav. 3508 estacionada no Chai. 

Ao ter de realizar diariamente, ao início da manhã e ao fim da tarde, o percurso de cerca de 10 km entre o Chai e a ponte do rio Messalo, para reabastecimento de água ao quartel, a coluna militar ficava perigosamente exposta ás investidas dos guerrilheiros da Frelimo, tanto pela forma de emboscadas como de possíveis minas colocadas nesse percurso. 



Não foi de estranhar, portanto, que o comando do Batalhão de Cavalaria 3878 lhe atribuísse o código de "Operação Tartaruga".

No dia 24 de Agosto de 1973, como sempre acontecia, um grupo de combate da Ccav. 3508, neste caso o 3º. pelotão, partiu cerca das 6 horas da manhã com destino à ponte do Messalo. 
Como nesse dia o meu grupo de combate (1º. pelotão) se encontrava de piquete e, uma das suas funções era a apanha de lenha para a cozinha, resolvi com os militares da minha secção e a viatura que nos estava destinada, acompanhar os camaradas do 3º. pelotão em parte do seu percurso até ao Messalo.

Estrategicamente falando, sempre eram duas forças que se podiam apoiar mutuamente no caso de alguma acção atacante por parte da Frelimo. 
Na prática, para o trabalho a desempenhar pelo piquete (apanha de lenha) também era melhor optar por esse percurso, dado que tinha sofrido recentemente uma operação de desbaste de árvores ao longo da picada, efectuado pela população do aldeamento. 
Esta limpeza teve como principal objectivo diminuir o perigo de emboscadas e permitir a tal recolha de lenha.



Percorridos que estavam alguns quilómetros após a saída do Chai, solicitei ao condutor da viatura que encostasse na berma da picada dado que tínhamos atingido um local onde havia bastante lenha para recolher. 
Os camaradas do 3º. grupo de combate continuaram a sua viagem a caminho do rio Messalo e nós começámos os preparativos para a recolha.

Poucos minutos passaram, talvez 3 ou 4 no máximo, até ouvirmos um enorme tiroteio. 
Não havia dúvidas! 
A coluna para a água estava a sofrer uma emboscada. 
De imediato solicitei aos militares que me acompanhavam que subissem para a nossa viatura e fomos em socorro dos nossos camaradas. 
Quando chegámos ao local havia ainda bastante tiroteio. 

Encobertos por alguns pequenos arbustos ou abrigados debaixo das viaturas, assim ripostámos ao fogo inimigo. 
Ao mesmo tempo, os nossos camaradas estacionados na ponte começaram a lançar granadas de morteiro 60 e 81 para as posições em que se encontravam os guerrilheiros, pois que conseguiram descortinar a sua localização aproximada com o auxílio das comunicações estabelecidas entre o nosso soldado de transmissões e aquele que se encontrava na ponte.

Findo o combate foi possível verificar e concluir que felizmente não havia danos pessoais entre os nossos militares, o que era sempre motivo de enorme satisfação. 

Entretanto, junta-se a nós o 2º. grupo de combate comandado pelo alferes Ribeiro, que havia saído do Chai logo que ouviram os tiros da emboscada. 

Foi assim possível que o 3º. pelotão continuasse a coluna em direcção ao rio Messalo e o 2º. pelotão faria a batida e reconhecimento à zona de emboscada, enquanto eu com a minha secção ficámos a montar segurança às viaturas. 
Nessa diligência foi encontrado um guerrilheiro morto e detectados vários rastos de sangue pelo mato fora, provenientes de combatentes feridos. 
Quanto a material capturámos 1 metralhadora Degtyarev, 1 espingarda automática Kalashnikov e 4 granadas de mão.



Por fim, cada um de nós ficou a agradecer ao seu Deus pela protecção recebida neste combate, ao mesmo tempo que ficou a desejar não ter mais nenhum, pois nessa altura, que já tínhamos atingido os 18 meses de comissão em zona de guerra a 100%, alimentávamos o sonho de ser rendidos em breve, como aliás era habitual na época. 

Infelizmente isso não passou dum sonho, como veio a verificar-se!


Comentários
  • Rui Briote Muito obrigado Livre Pensador por mais um episódio passado com o meu pelotão, do qual ainda não tinha conhecimento. Sou levado a uma conclusão...o meu pelotão foi o mais sacrificado, pois esteve sempre presente na maioria dos casos mais nefastos. Muito obrigado de novo Amigo. um forte abraço

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  • Duarte Pereira Ribeiro- Livre Pensador - É gratificante ir lendo e parecendo estar incluído naquele cenário. Realmente as rotinas davam vantagem ao adversário .
    Talvez tenha sido um dia de sorte porque havia também a malta da lenha a meio do caminho. Dessa vez tudo correu bem.

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  • Rui Briote Neste percurso feito diariamente, a primeira emboscada foi o terceiro pelotão que a sofreu e tivemos um morto e um ferido, fora as " escoriações", sofridas por alguns no salto dos unimogs e também pessoal civil...

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  • Manuel Fernandes Livre Pensador (52) a lenha chegou ao Quartel nesse dia asiático ou não?Gostava de ter a tua cabeça.Tudo bem descrito.Abraço amigo

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    • Rui Briote Manuel Fernandes se tivesses a cabeça do Ribeiro eras bicéfalo 😀

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    • Manuel Fernandes Briote o Livre Pensador não frisou que tivemos um morto.Felizmente isso não aconteceu.Abraço amigo

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      • Livre Pensador Fernandes, se a lenha não tivesse chegado ao quartel decerto que te lembravas porque não tinhas almoçado se isso tivesse acontecido!!! Abraço.

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      • Manuel Fernandes Livre Pensador eu comia algumas vezes frango assado feito pelo MEIGUICES quem arranja no aldeamento era o Eusébio meu tratador de roupa,logo se não havia para os Amarelos os outros estavam fu?????.Mais nunca acabou a lenha no CHAI .ABRAÇO

    • Livre Pensador Manuel Fernandes também comi algumas vezes frango (mais pinto do que frango) assado, cozinhado pelo mesmo "criminoso". Nalguns casos até ao pequeno almoço acompanhado da respectiva bazuka. O Eusébio também era o meu mainato.

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    • Manuel Fernandes Livre Pensador até há Manhã se tudo correr bem

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    • Jose Capitao Pardal Nesse dia ainda não estava no Chai penso eu de que....

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  • Livre Pensador Briote, por brincadeira poderei dizer que o teu pelotão era o que estava mais capacitado para enfrentar situações de combate. Repara que tinha um oficial de infantaria, um furriel de cavalaria, um furriel de armas pesadas e um furriel de operações especiais. Portanto, não tinhas razão para te queixar!!!!!????? Abraço.

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  • Joaquim Afonso posso contar parte dessa emboscada da qual eu ia incluído havia um colega nosso o seu nome ja não sei mas o Briote deve saber o banharia que ia comigo ele dizia a boca cheia ainda ia no ar e ja ia a disparar foi num local do nosso lado direito

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    • Livre Pensador Amigo Afonso, peço desculpa por te contrariar, mas posso garantir que o primeiro sargento Raminhas nunca saiu do arame farpado do quartel, com excepção duma ida ou outra à pista de aterragem. Muito menos iria na primeira coluna para o Messalo, porque essa era, como se costuma dizer "para quem os tinha no sitio"!!!! Abraço.

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    • José Lopes Vicente Por essa altura estava em Macomia a fazer mais um estágio para os furrieis e respectiva secção na praia da ponte Macamula onde me interrogava quando lá estava quando poderíamos ser dizimados. Era um alívio quando amanheçia.

      iminar ou ocultar isto
    Manuel Fernandes Joaquim Pires Afonso o Dito amigo banharia era o Teixeira do 3º Pel

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  • Rui Briote Joaquim Afonso nessa altura eu já estava em Alcoitão...Abraço

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    • José Guedes Afinal ainda vai havendo histórias para contar que para muitos de nós embora tenha-mos conhecimento delas mas não como aconteceram, ainda bem que neste caso tudo correu bem,... força Livre Pensador, aproveita a embalagem e vai escrevendo outros acontecimentos que tenham acontecido,. abraço,...
  • Livre Pensador Amigo Guedes, "aventuras" destas felizmente que não foram muitas, embora tenham sido mais do que aquelas que queríamos. Há poucos dias andei a "vaguear" pelas minhas memórias e cheguei à conclusão que ainda faltava descrever esta. Abraço.

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  • Armando Guterres Também passei pelo Casal do Pote, Tancos - três semanas a aprender dos Buracos e Alçapões - diria que esses instrutores foram os únicos que me ensinaram do que sabiam (teoria e prática).

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    • Livre Pensador É verdade Guterres. Fizemos o curso de minas e armadilhas juntos.