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quinta-feira, 31 de julho de 2014

Uma pausa na guerra, por Paulo Lopes


Conforme disse em comentário ao ACONTECEU ANGUSTIA EM MACOMIA do nosso amigo Rui Brandão, aqui fica a passagem do meu livro que, não esqueçam, é um livro romance e não, propriamente, um diário apesar de o ser quase!
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Mais um fim de mês estava a chegar e como ainda me encontrava inoperacional para ações de combate, fui incumbido da deslocação a Porto Amélia (atual Pemba) para tratar de assuntos burocráticos inerentes à Companhia e levantar o dinheiro para pagamentos do pré.
 
 
Uma curta pausa na guerra.
 
Um instante de repouso na visualmente pacifica cidade capital de Cabo Delgado.
Mas, e como acabei de dizer, era apenas uma curta.
 
Pausa na guerra, pois depressa me encontrava dentro do táxi aéreo de regresso a Mataca, sem ter tido tempo de apreciar a sensação de não ter granadas agarradas à cintura nem a pesada G3 nas mãos!...
 
 
 
Mais uma vez deu para poisar o meu olhar sobre aquela imensidão de selva cheia de vida e de hipóteses que se teima em destruir com a brutalidade de pensamento, que existe na cabeça dos governantes.
 
Uma força estranha nos é transmitida quando sobrevoamos aquelas serras de terrenos abundantes que demonstram uma facilidade extrema de expansão se o homem assim quisesse.
No entanto, por debaixo daquelas copas das arvores, estão seres humanos que, obedecendo a estupidas mentes ou simplesmente tentando sobreviver, vão executando a guerra que outros fazem, destruindo-se a eles mesmos e tudo o que de belo existe sem saberem ao certo o porquê, deixando sempre impunes os verdadeiros culpados de tanta destruição.
 
 
Durante a semana que permaneci em Porto Amelia, nada de especial tinha acontecido de desagradável, nem mesmo a rapaziada que entretanto se tinha deslocado em mais uma coluna a Macomia para além claro, dos irritantes trinta e tais quilómetros sempre em constante expectativa e tensão.
 
Um dia depois da chegada da coluna, ouviram-se imensos rebentamentos para la da serra de Mapé.
 
Não tardou a sabermos que Macomia estava a ser atacada com morteiros e com canhões sem recuo. Caíram granadas dentro do quartel, mas felizmente, os estragos foram apenas materiais.
Soubemos também que, no dia seguinte, grupos de combate da companhia estacionada em Macomia e depois de uma batida à zona provável do ataque, tinham encontrado seis elementos IN mortos e capturadas quatro armas.
Provavelmente foram atingidos no contra-ataque, também com morteiros, desencadeado por Macomia.
 
 
Os quatrocentos elementos da Frelimo, que segundo informações obtidas, se encontravam na serra de Mapé, começavam a produzir!...
 
À Mataca voltou a tensão que apesar de estar constantemente presente no nosso espirito, por vezes ia sendo enganada por um falso esquecimento abrandando a nossa pressão de alerta a que nos obrigava este dia a dia da persistente e matreira guerra.
Sorriamos otimistas escondendo o nervosismo esperando a nossa vez de entrar em palco e como que a transmitir um certo animo, dizíamos uns para os outros:
Eles que venham que a sopa esta pronta.
 
 
Pronta estava a mensagem que chegou anunciando mais uma operação.
Resumindo a finalidade desta: – Patrulhar zona do rio Mapi, fazendo barreira a uma possível fuga de elementos IN vindos de uma base que um grupo de comandos iria atacar.
Os grupos a participar: segundo e terceiro.
 
Esse previsto ataque não seria efetuado porque o grupo de comandos que estava com essa missão foi obrigado a abortar tal intenção sem sequer fazer a aproximação à possível base, pois muito antes do local onde deveriam atuar foram detetados, o que tornou impossível a surpresa do ataque e a eficácia da operação.
Assim, após comunicação superior, os nossos dois grupos deixaram as margens do rio (como sempre, rio só no nome porque a essência, a água, nem vê-la) sem que nada tivessem observado de anormal tendo em conta que nós já considerávamos normal todo o desenrolar de quilómetros e quilómetros palmilhados, alimentados a ração de combate e dormidos num monte de capim!...
 
Há muito que considerávamos normais estas operações quando afinal, o normal seria estarmos junto dos nossos, a estudar ou a trabalhar!...
 
Mas o principal objetivo, pelo menos para nós, que batalhávamos nas matas, que rasgávamos a floresta espiolhando o perigo, atravessando medos, alimentando o futuro com pensamentos positivos, tentando enganar o tempo, ia, com lentidão, mas sendo alcançado: mais cinco dias passados!...
 
E de minuto em minuto, de operação em operação, de susto em susto, o tempo ia correndo e o primeiro ano da minha comissão estava atingido e a dos meus camaradas já tinha passado mais um pouco.
 
 
Faltava outro tanto.
Outra parte igual para não viver.
Mais um ano perdido a ser riscado onde a vida individual era de valor nulo.
Apenas um numero ao serviço das armas e ao dispor da sorte.
Vidas que obtinham uma vaga lembrança, quando, do alto do pedestal, os heróis da nossa pátria, os cérebros, os fazedores de guerras, descem ao povo e colocam medalhas no pescoço das mães de corações despedaçados e moles pela perda dos seus filhos, e tudo, a bem da nação.
 
Troca-se de uma medalha e um falso abraço por uma vida, e tudo fica pago e esquecido!!!...
 
paulo lopes
in "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"

quarta-feira, 9 de julho de 2014

ACONTECEU ANGÚSTIA EM MACOMIA, Capítulo V, por Rui Brandão


ACONTECEU ANGÚSTIA EM MACOMIA
CAPÍTULO V
Até ali a realidade que eu estava a viver era simplesmente lúdica.
Aquele grito (É um ataque!!!) transportou-me como que impulsionado por uma mola, para uma realidade para a qual eu não me sentia preparado.
Poderia ser mais do que um simples ataque à morteirada, por que (propositadamente ainda não o tinha enunciado...) faltava a outra recomendação do Comandante "tenham atenção, quando terminar o bombardeamento o pessoal não pode desmobilizar.
A Frelimo está a por em prática golpes de mão após as morteiradas e já fizeram miséria em duas localidade a norte de Mueda.
Eu estava sozinho com a minha mulher e a minha pequenita.
Porra!!!
Fui de imediato de baixo da cama buscar a G3 e dois carregadores completos. Peguei no resto do pessoal e fui para a casa de banho no exterior da casa (joguei na probabilidade da superfície menor embora o telhado fosse de zinco).
 
 
Os rebentamentos eram uns atrás dos outros.
A minha mulher ficou atrás de mim no chuveiro protegendo a pequenita com os braços e ao mesmo tempo rezava muito alto e dizia que se ia embora para a Metrópole já no dia seguinte.
A Chana... a pobre berrava assustada com aquilo tudo.
Eu estava literalmente de joelhos com os cotovelos apoiados na sanita (situava-se junto à porta) com a G3 virada para a frente e ao mesmo tempo espreitava por cima do pequeno muro (50 a 60cm de altura) que tinha à volta da casa.
Gritei para ela para que se calasse de vez e tentasse acalmar a miúda.
Penso que consegui.
Lá fora era um festival.
Para mim principalmente.
Eu nunca tinha ouvido/assistido a uma saída de um morteiro muito menos a chegada de um com diâmetro 82.
 
 
O ritmo era cadenciado.
Estrondo acompanhado de chão a tremer e clarão cor alaranjado, logo seguida de uma saraivada de estilhaços que se faziam ouvir bem, no telhado de zinco logo seguida de uma pulverização de terra/areia.
Estrondo acompanhado de chão a tremer e clarão cor alaranjado, logo seguida de uma saraivada de estilhaços que se faziam ouvir bem, no telhado de zinco logo seguida de uma pulverização de terra/areia.
 
 
Isto nunca mais acaba?
ESTA MERDA NUNCA MAIS ACABA?
Passei a conhecer-me em situação "de baixo de fogo".
Sereno e muito lúcido.
Nestas horas apertadas ficamos sós connosco próprios...
Sei que há várias versões do tempo em minutos que durou o ataque.
Eu não tenho o tempo cronometrado, mas sei que aquilo começou ainda era de dia com alguma visibilidade e acabou com visibilidade reduzida.
E é aqui que se dá o momento crítico e caricato.
TERMINOU O ATAQUE...
Silêncio, ao qual não consigo juntar-lhe um adjetivo...
Espreitei um pouco mais por cima do muro.
Por trás da minha casa tinha o aldeamento todo.
 
 
As palhotas estavam rigorosamente alinhadas (ainda se lembram?). até parecia que o Marquês de Pombal tinha sido chamado para fazer ali um biscate.
Na minha frente via apenas vultos de pretinhos a correr como loucos de um lado para o outro.
- Queres ver que isto é que é o tal golpe de mão?
(vim a saber mais tarde que eles não vão para abrigos - não os tinham - corriam presumo que a fugir das morteiradas).
De trás de uma palhota sai um vulto em passo lento com um objeto pontiagudo virado para baixo.
Foi um momento terrível para mim.
Aquilo era um gajo com uma Kalash!!!
Baixei-me apontei a arma por cima do muro e organizei ideias - tiro a tiro não me tiras daqui e daqui a bocado vem alguém do quartel buscar-nos.
Os paliativos que nós vamos buscar e acreditamos piamente só porque não queremos morrer.
O homem virou-se mais um pouco e a "Kalash" começou a balançar.
Coitado do homem, trazia consigo talvez o único pertence que tinha, um chapéu de chuva.
Levantei-me e fui ter com o homem; com a boca muito seca e a voz completamente rouca, perguntei-lhe se havia feridos.
Respondeu-me que não sabia: . Então vai ver!!!
Nesse momento começou a dar-me a tremideira.
E se eu tinha estado tão bem até ali...
Passados 15 a 20 minutos chegou o meu amigo e grande companheiro de armas, Júlio Bernardo num Unimog com os seu homens.
 
 
Vinha buscar-nos para nos levar para o Quartel.
Fizemos o caminho a pé mas protegidos pelos homens que iam no Unimog.
Quando entrámos no Quartel pela porta junto à Messe dos Oficiais, deparei com uma quantidade enorme de soldados em linha deitados com as G3 apontadas para o exterior.
Afinal, não era só eu que padecia da paranoia do Golpe de Mão...
***Continua no próximo Capítulo

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Pontão abaixo e a granada abandonada..., por Fernando Bento

Foto do Fernando Bento

22 de Julho de 2013 21:48
Mais um pequeno artigo para a história do nosso Batalhão, acompanhado de duas fotos elucidativas.
No dia 20/11/1972, perto da hora do almoço, ouve-se em Macomia um rebentamento, que logo se deduziu vir das bandas da picada para a Mataca.
De imediato o pelotão de sapadores, foi incumbido pelo major de seguir para o local, no sentido averiguar a origem de tão grande estrondo.
Patrulhamos toda a picada com atenção redobrada até que chegamos à zona em que a picada desce quase a pique culminando num pequeno pontão para depois subir novamente até ao Alto do Delepa (não sei se é assim que se chama).
Quando chegamos ao pontão, (estava ali a origem do rebentamento), deparamos com o mesmo parcialmente destruído, que impossibilitava a passagem e que a partir daquele dia teve de se fazer por um dos lados, o que constituía uma tarefa bastante difícil, pois as margens eram bastante inclinadas.
Estávamos a inspecionar o local no sentido de tentar descobrir se o mesmo não estaria armadilhado (era normal nestas circunstâncias), quando alguém gritou: atenção está ali uma granada.
Deparamos com uma granada desencavilhada colocada atrás de uma pedra, propositadamente abandonada.
Essa granada ainda nos fez recuar como primeira reação.
Certificaáo-nos que não haveria mais alguma armadilha, estava tudo limpo, então o António pegou nela com todo o cuidado, colocou-lhe uma cavilha, das nossas granadas e pendurou-a no cinto.
Tirei umas fotos para o relatório, e algum tempo depois abandonamos o local.

sábado, 7 de setembro de 2013

Nesse dia de 12 de Maio de 1972..., por João Novo

Alguns dos participantes na Operação OMO (Maio de 1972) - Serra Mapé
 
Vou hoje dar voz ao João Novo que nos retrata uma situação que eu também vivi e que com frequência me vem à memória, e como também eu estava nesse local, a essa hora e vivi esse momento... não posso ficar indiferente... Quantas vezes (dezenas, centenas, milhares?) na minha já longa vida não terei eu pensado, no que poderia ter sucedido, se algum dos nossos se lembra de reagir?!...

 
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Nesse dia de 12 de Maio de 1972

Hoje vou intervir, porque não consegui resisti a esta data, não por ser de Fátima, pois eu não acredito nessas coisas, mas porque podia ter sido a nossa ultima noite de vida.
 
Estou convencido que a grande maioria dos nossos colegas, não se apercebeu do que ali poderia ter acontecido, nesse dia de 12 de Maio de 1972.
Nesse dia houve um reabastecimento por helicópteros, em que algo correu mal, pois caiu um deles na Serra do Mapé, o que veio atrasar esse reabastecimento, implicando que a pernoita, tivesse que ser efetuada, ainda perto do local, onde baixaram os hélios.

O T. Alves, (mais tarde o machambas) que ia a comandar em terra a operação, deu ordem para pararmos, fazer um circulo com a tropa (300 e muitos homens) e os cerca de 400 civis, que nos acompanhavam com catanas, (que serviriam para destruir as machambas, pois era essa a finalidade da operação) ficariam dentro do circulo.

O comandante escolheu o local, do posto de comando (dizer isto a gaguejar, como o T. Alves dizia, é que era de rir) onde ficou o caldeirão da sopa, junto da nossa cabeceira e dos seus carregadores, não fosse o caldeirão fugir, eu, o Cunha enfermeiro, lembram-se dele?, alguns enfermeiros e as transmissões.
 
Foi o tratar de encher os colchões de ar, um luxo, naquele local, para tratar de fazer a caminha.
Tinha do meu lado direito, o Cunha e do lado esquerdo, o Comandante, isto, deitado de barriga para o ar.
Nunca dormi tão bem acompanhado. O tempo foi passando, já nem me lembro, em que pensava, ou no que sonhava, não se podia falar, nem fumar, nem cagar tão pouco (FELIZMENTE HOJE JÁ NÃO FUMO), se calhar pensava na família, no “Puto”, na namorada, se calhar a sonhar que estava a fazer amor com ela, ou que ela estava com o outro, quem sabe, já não me lembro, quando vim de férias ao “Puto”, acabou o namoro, mas não foi por causa do sonho.

Estávamos todos felizes, quando cerca das 22,35H, uma rajada de metralhadora, se ouviu que passou a centímetros do P.C. (Posto de Comando), duas ou três munições acertaram no caldeirão da sopa, fiquei todo "cagadinho".
A reação que tive foi despejar o ar do colchão, para ficar mais baixo, atrás do caldeirão.
Dos cerca de 800 cagarolas, todos "borradinhos", ninguém abriu o bico, não houve reação á rajada, pode ter sido a nossa sorte, passados não sei quantos minutos, ouvimos o “assobio” das granadas de morteiro a sair, que começaram a cair a cerca de 15 a 20 metros do caldeirão da sopa, eu via o clarão dos rebentamentos, estava todo "cagadinho", entretanto, começo a sentir algo a mexer entre mim e o Capitão, pensei ser alguma cobra, eu sei lá o que pensei, era o sacana do Cunha a meter-se entre mim e o T. Alves, deveria querer que eu lhe cobrisse a espinha, não me lembro o que lhe fiz, se fosse hoje metia o gaijo no caldeirão da sopa.
 
Os rebentamentos começaram em frente de onde estava o P.C., depois foi para a direita e depois para a esquerda, e passados não sei quantos minutos, acabou.
Da nossa parte, nada se passou, tudo caladinho e todos "cagadinhos", era um pivete naquele local, que nem calculam.

Vamos morrer e nunca saberemos o que se passou, muitas coisas podem ter sucedido.
Ou não acreditaram que estávamos ali, os morteiros podiam não alcançar mais ou não tinham mais munições ou também teriam um certo receio, pois sabiam a quantidade de tropa que lá estava e era muita.

Tivemos muita sorte, porque se as morteiradas caíssem 30 ou 40 metros mais á frente era a matança de muitos e depois o que se seguiria?...
Seria a desorientação total, felizmente nunca se saberá...

Estamos vivos, por enquanto e o nosso dia chegará, mas que seja o mais tarde possível e com saúde.

Desculpem os erros, mas foi escrito diretamente e como não foi á censura, pode ter alguns erros.

Quem lá esteve, espero que nunca esqueçam este dia ou melhor essa noite...
Podia ter sido a última para muitos...
Mas mesmo muitos.
Esta foi a minha pior noite da guerra e ainda “vista” agora, faz-me pele de galinha...

Um abração para todos
 

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A MINHA PRIMEIRA COLUNA DE REABASTECIMENTO A MACOMIA, por Paulo Lopes



"Picada" Mataca - Macomia (foto Paulo Lopes)
PRIMEIRA “PICADA” ATÉ MACOMIA

Ficámos alguns dias sossegados da azafama constante do vai e vem das operações, o que nos admirou bastante, mas não nos preocupou absolutamente nada.

Podíamos passar os dias a ler, a jogar xadrez, damas ou cartas, consoante os gostos de cada um e, pela tardinha, fazíamos —os mais desportistas— uma peladinha naquele “estádio” fabuloso onde, enquanto uns corriam atrás da bola fugindo ao tédio, outros viam, aplaudiam e apoiavam os do lado de que mais gostassem naquele momento, como se estivessem no estádio do seu clube eleito.

Quanto ao que me tocava, não dispensava esse momento de desporto e lá estava eu, sempre no meu posto de guarda-redes, defendendo o meu emblema que era, sem duvida, o esgotar dos minutos, o passar do tempo numa actividade com acesso à descompressão do pensamento negativo.
 
Enquanto tentava que nenhuma bola passasse para além das canas de bambu, esquecia-me que, para lá do arame farpado, existia outro “jogo”, onde nenhum de nós, jogadores, ganharia.
 
A vitória ia apenas e sempre, para os abutres que dominam o mundo e as pessoas!
Nestes dias tínhamos, portanto, as duas partes que constituem a felicidade de um soldado: bem alimentados (tendo como conceito que a boa alimentação era apenas e tão só o não comer a ração de combate) e repouso absoluto.
Situação invejável, não fosse o local de isolamento onde permanecíamos e a constante tensão que, mesmo neste sossego interior, estava, apesar das aparências, continuamente presente.
A qualquer momento todo o cenário se poderia modificar e o que era descanso passaria a pesadelo muito antes de um esfregar de olhos!...

Nos primeiros tempos da campanha, mesmo com estas situações pontuais, sentia-me completamente destroçado e incapaz de reagir.
Agora, ventos e tempestades passadas, tormentas e ansiedades desmanteladas, horas consecutivamente contadas minuto a minuto, estes poucos dias de “nada fazer”, faziam-me sentir quase contente e feliz.
É tudo uma questão de hábito.
Assim se comprova, na realidade, que somos um animal de hábitos.
Mas a “boa fruta” chegou ao fim quando uma ordem para nos irmos reabastecer a Macomia entrou pelas antenas do aparelho do nosso criptógrafo.
Era a primeira vez que saía da Mataca para ir a outro aquartelamento atravessando a serra através da picada que nos levava até lá.
Ia “estreá-la” e conhecer todos os seus riscos que espreitavam atrás de cada árvore, à frente do próximo passo.
Mais uma nova experiência não desejada para adicionar a umas já conhecidas, à espera de outras que o futuro espreita.
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— Amanhã vamos a Macomia e como já não é novidade, os perigos são vários, tanto no caminho para lá, como no regresso e principalmente neste, visto que vimos carregadinhos de mantimentos, portanto, há que abrir bem os olhos e arrebitar as orelhas.
Dizia o alferes S……, continuando: — Daqui a pouco, mais para a noite, como costumamos fazer nestas ocasiões, vão informar a vossa “malta” que por volta das quatro e meia, cinco horas, arrancamos! Creio que não são necessárias mais conversas porque, como sabem, para estas picadas, quanto menos se falar melhor.

E com estas palavras, poucas e simples, saímos! Ainda vinha a sair da reunião e já estava a perguntar, porque me fez uma certa curiosidade, o porque do “quanto menos se falar melhor” e qual a razão de apenas à noite se ir dizer ao grupo que cada um de nós comandava, que iríamos a Macomia no dia seguinte.
As respostas às minhas questões foram tão rápidas e simples, quanto a reunião que acabávamos de ter: — Porque, não sabendo como, mesmo aquela hora da manhã, quando se passa pela aldeola, já lá estão nativos para aproveitarem a nossa deslocação a Macomia, apanhando boleia até lá, correndo assim menos riscos de serem apanhados por elementos da Frelimo e também para pouparem uns largos quilómetros nas pernas.
Ora, se eles sabem, mesmo quando essa viagem só é dada a conhecer já à noitinha, também os “turras” tinham esse conhecimento e tempo para preparar uma emboscada ou colocar minas. Portanto, quanto mais tarde se desse a informação, menor era a possibilidade de ser passada para o exterior.
Dizia-me um camarada.
Simples e agradável de saber!...
Ainda não eram cinco da manhã e mal a aurora tinha chegado, já todos estávamos preparados para a partida.
O roncar dos motores deu o sinal e, ainda em cima das Mercedes 404, quatro ao todo, iniciámos o percurso que tinha passagem inevitável pela aldeola.
Lá estavam eles!!! Tal como me tinham dito, uma dúzia bem medida de nativos já estavam prontos, de malas aviadas e “arranjadinhos” para a “excursão”.
Enquanto eles subiam para as caixas das Mercedes, nós saltávamos para o chão porque, a partir dali, íamos entrar na floresta a caminho da Serra do Mapé.
 
A “estrada” não era mais do que trilhos formados pelo passar daquelas já cansadas viaturas que as gastas rodas faziam pelo mato dentro rasgando uma linha que se ia desviando ao sabor das corpulentas árvores tão velhas como a floresta que atravessava.
À frente iam os batedores.
Cerca de dez de cada lado do rodado por onde passariam as rodas das viaturas. A distribuição destes militares era feita intervaladamente e revezando-se: cinco preparados com a sua respectiva arma para o que desse e viesse e os outros cinco iam picando constantemente a terra com uma cana de bambu que tinha um prego enorme na ponta, a que chamavam “detector de minas” que, conforme o nome indica, tinha como intenção o detectar das minas que estivessem colocadas no dito rodado.
 
Eram trinta e tal longos quilómetros que tínhamos de palmilhar até Macomia!...
A vegetação era inconstante: ora espessa e de uma densidade assustadora não permitindo enxergar meio metro para os lados. Ora aberta e de arvoredo espaçado dando-nos uma confortável sensação de segurança quanto a possíveis emboscadas.
 
De minuto em minuto, de passo em passo, umas vezes apressados, outras nem tanto, consoante as exigências do terreno, fomos progredindo atravessando o pé da Serra, subindo-a, “largando”, de quando em quando, granadas de morteiro, como que a “varrer” os locais periféricos da nossa passagem, até atingirmos o cume.
Sem descanso e com todos os sentidos a funcionar em pleno, avistámos as machambas de Macomia, cerca do meio-dia.
Do aquartelamento de Macomia até às machambas onde nos encontrávamos, já um grupo de combate daquele quartel tinha batido a zona e então, com mais segurança, poderíamos montar nas Mercedes e dirigir-mo-nos ao quartel, dando um pouco de descanso as pernas já um pouco desejosas de parar.

Num instante chegámos a Macomia.
Vila onde se situava a sede do Batalhão ao qual a nossa Companhia pertencia.
Para além do quartel (quartel mesmo! com casernas e tudo), Macomia já tinha umas quantas casas de habitação, cujas, poderiam ter mesmo esse nome.
Já havia uma, mas só uma, estrada de alcatrão.
Esta vinha de Porto Amélia, com passagem por Macomia.
Estrada nada amigável para ser utilizada por viaturas civis sem se fazerem acompanhar pelas Panhard do Exército e em coluna não estando, mesmo assim, livres de irem pelos ares arremessadas por minas não detectadas que, mesmo por baixo do alcatrão, eram colocadas pelos guerrilheiros que esburacavam nos laterais do asfalto depositando-as na distância prevista onde passaria o rodado das viaturas.
 
Também existiam duas casas comerciais onde se podia comer um bife com batatas fritas e beber uma bela cerveja fresca, o que, para nós, vindos do fim do mato, atravessando um autentico oceano de arvoredo, era um hotel de cinco estrelas!
Que luxo!!.
Este quartel já tinha traços metropolitanos e de forma idêntica aos diversos quartéis espalhados por Portugal Continental.
Não tinha nada em comum, no aspecto arquitectónico, com aquilo que tínhamos em Mataca. Um quartel murado com muros de tijolo e cimento, chão totalmente alcatroado, não com simples arame farpado como na Mataca e dum chão de terra batida esvoaçando poeira mal havia uma leve brisa de vento.
 
Recheado dumas quantas casernas também feitas de material que consiste numa casa normal, com telhados de telha de barro, janelas para arejar e dar luz solar e chão de mosaico. Não num buraco feito na terra, com folhas de zinco como telhado, sem uma única janela ou quaisquer arejamento para além das portas mal amanhadas que arrastavam e esburacavam o chão feito do mesmo material que o restante estacionamento, como as nossas “casernas” da Mataca.

Que me perdoem, esta minha invejosa definição e comparação, os camaradas que sofreram naquela terra onde a guerra também estava visível a olho nu e que, tal como nós, estavam bem longe dos seus. Felizmente para eles que tinham, pelo menos, o mínimo de condições de sobrevivência e que, não os aliviando da malfadada sorte de terem sido espoliados da sua juventude, os ajudava a desanuviar um pouco mais a dor que nos perseguia constantemente e que instintivamente nos íamos defendendo, cada um à sua maneira e com as armas que individualmente tínhamos no pensamento.

Estivemos dois dias estacionados, onde até deu, pelo menos para mim que não posso ver uma bola aos saltos, seja de que modalidade for, disputar uns quantos jogos de voleibol.
Sim!
Aquele quartel até tinha campo de voleibol alcatroado e delineado!
Claro que nada disto os afastava dos perigos constantes e comuns a todos nós.
Apenas os aliviava um pouco a tensão tal como as nossas “jogatanas” de futebol na Mataca.
 
Mas como o nosso lugar não era aquele, após termos o nosso carregamento prontinho para regressar, fizemos-nos à “estrada!”...
Já tínhamos talvez perto de três horas percorridas e já estava ultrapassada a descida da serra quando, de repente, fomos surpreendidos pelo som estridente dos tiros que vinham da frente da formação. Estávamos no meio de uma emboscada.
Quase de imediato, como se fosse automático, os nossos homens que se encontravam na zona efectiva da emboscada, ripostaram com bastante fogo de rajada. Conheci então, pela primeira vez, a guerra psicológica:
— Comandos a esquerda! G.E. à direita! Gritava o furriel M…… de alto e bom som, fazendo jus a sua boa voz de comando enquanto todo o pessoal já estava, apesar da surpresa inicial, ordeira e estrategicamente deitados no chão da picada com as armas apontadas para os dois lados do denso mato e prontas para a defesa.

Comandos e Grupos Especiais, como o M…… queria que houvesse, isso é que não vi nem poderia ver a não ser em pensamento ou nalguma visão de filme de guerra!...

As únicas forças existentes eram os primeiro e quarto grupo de combate e mais a tal dúzia de nativos que regressavam connosco para Mataca que, não ajudando em nada nestas ocasiões, atrapalhavam ainda mais!
Conforme sorrateira e inesperadamente fazem a emboscada, também e com ainda maior rapidez desaparecem sem deixar rasto da sua presença.
Assim funciona a guerra de guerrilha feita pelos guerrilheiros da Frelimo.
Entre gritos, tiros, explosões de granadas por nós atiradas, e de insultos ao inimigo nada nos aconteceu para além do enorme susto e o acelerar das batidas do coração. Foi muito maior o nosso fogo de resposta à emboscada do que aquele efectivado pelo IN.
Este disparou alguns tiros e fugiu.
Aliás, e felizmente para nós, como era habitual nos guerrilheiros da Frelimo!
Pela forma do ataque, ficámos convictos que não tinha sido uma emboscada premeditada mas sim e apenas um encontro ocasional, uma passagem simultânea no mesmo local e aproveitada pelos guerrilheiros, visto que, a grande distância, já se ouvia o roncar fastidioso e melancólico dos motores das nossas viaturas.
 
O tiroteio também não durou muito tempo, e depois de fazermos uma busca rápida a zona circundante no interior do mato, prosseguimos com a coluna até a Mataca sem que mais problemas tenham surgido.
Nestes momentos, passados os sustos, é que nos vem à memória como eram bons os tempos em que, nas diversas paradas dos quartéis da Metrópole, quando em formatura se ordenava: —quem sabe andar de bicicleta saia da formação.
Estratégia de que todos conheciam a razão, mas que sempre fazia alguns “cair”, espelhando orgulho nos seus rostos como se saber andar de bicicleta fosse uma questão de grande orgulho nacional: —Então apresentem-se na cozinha que há muita batata para descascar”. Surgia de imediato o prémio!
Após este susto, e com surpresa geral, estivemos novamente “parados” no nosso canto, mais de quinze dias.
Foi neste espaço de tempo que saíram duas promoções:
Sem alaridos, sem pompa nem discursos de ocasião e muito menos com paradas militares. Apenas em comunicado oficial e lido, já não sei bem por quem, duma forma simples como quem lê uma noticia no jornal sem quaisquer importância:
— O alferes S…… passa a capitão miliciano e o furriel L…. promovido a alferes miliciano.
A única situação alterada, e apenas para o L…., foi a mudança de “aposentos” instalando-se na messe dos oficiais.
 
Paulo Lopes (20130822)