FOI HÁ 41 ANOS
Os meses de Abril e Maio eram, para os "estrategas militares" da guerra colonial, em Moçambique, os meses para desencadearem, todos os anos, operações que tinham como finalidade a incursão nas zonas populacionais controladas pela Frelimo, procurando destruir as machambas com agriculturas várias (milho, mandioca, amendoim, etc.) que eram produzidas por essas mesmas populações, e se destinavam à sua alimentação e dos guerrilheiros do movimento de libertação.
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Mapa com a Serra Mapé - Cabo Delgado |
Uma dessas operações recebeu o nome de código de "Tosquia" e teve como zona de atuação a famigerada Serra do Mapé, na área circundante à Base Pemba (Sub-provincial de Moçambique).
Foi no dia 17 de Abril de 1973, que três grupos de combate (1º, 3º e 4º) da Companhia de Cavalaria 3508, sediada no Chai, deram inicio às hostilidades rompendo serra adentro, desbravando a sua densa floresta à procura dos objetivos definidos no plano da operação.
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Aquartelamento da CCAV 3508 - Chai |
Aos três grupos de combate juntaram-se também um número considerável, de 30 a 40 elementos da população, "armados" com catanas, que teriam como função a destruição das machambas.
Os militares teriam como missão, dar proteção à destruição das machambas, anular e destruir possíveis bases da Frelimo, bem como neutralizar os seus guerrilheiros.
À medida que os nossos combatentes iam progredindo na mata, era notório que a qualquer momento seria possível surgirem os indesejáveis confrontos.
É debaixo deste clima de tensão e stress, que os dias 17 e 18 de Abril de 1973 decorrem sem incidentes a destacar.
A atividade do dia seguinte (19), dia de Páscoa, começa como, habitualmente, assim que surge o mínimo de claridade, pois as horas de paragem durante a noite poderiam levar os guerrilheiros da Frelimo a detetarem as nossas tropas.
Nessa manhã, após algum tempo de progressão na floresta, eis que surge quase de surpresa uma extensa machamba de mandioca, onde vislumbramos a presença de vários machambeiros/as a trabalhar, devidamente, protegidos por combatentes da Frelimo.
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Machamba de Mandioca |
O confronto é inevitável e, após alguns momentos de tiroteio, o designado inimigo parte em debandada.
Seguiu-se o habitual período de batida e reconhecimento para que se pudesse aquilatar da existência de feridos e/ou mortos.
Depressa chegámos à conclusão de que nesse dia estávamos com a pontaria muito desafinada.
Nem vestígios de sangue havia.
Após a montagem da segurança à volta da machamba, foi dada ordem para que os elementos da população que nos acompanhavam iniciassem o seu trabalho de destruição da mesma.
É nessa altura que eu e mais dois ou três soldados, ouvimos um choro vindo da orla da mata contígua à machamba.
Avançámos com os devidos cuidados, procurando ir ao encontro desse choro.
É assim que chegámos junto duma velha árvore com um tronco, de diâmetro considerável e quase completamente oco no seu interior.
É daí que vem o choro!
Quando um de nós olha para o interior do tronco, dá de caras com uma criança aí escondida.
É ela que chora e, quando a retirámos, ficámos perante um menino que aparenta ter entre 3 a 4 anos e que veste apenas uma camisola interior branca.
Pego nele ao colo, mas o seu choro continua, ao mesmo tempo que me vai dando murros nas costas e gritando "manhoco".
Não sei se é assim que se escreve esta palavra no dialeto Maconde, mas sei que na tradução para Português quer dizer "filho da p..."!
Conseguimos acalmar a criança fazendo-lhe alguns carinhos e, após a destruição da machamba e de algumas palhotas, decidimos trazer o menino connosco, até porque, se ele ficasse abandonado no local, decerto ficaria à mercê de animais selvagens, que naquelas paragens eram muitos e de várias espécies.
Para o bem ou para o mal, sem que eu o previsse, esse dia 19 de Abril de 1973 ficaria para sempre gravado na história da minha vida e na do P...
Abandonámos aquele local que cheirava a destruição e prosseguimos a nossa caminhada para a deteção de novos objetivos.
Nesse dia 19, nada mais houve a salientar.
Para o dia 20 de Abril estava previsto o reabastecimento de rações de combate, por helicópteros, o que não veio a acontecer, ficando previsto para o dia seguinte.
Fui evacuado (porque tinha férias marcadas para a Metrópole) por um desses helicópteros para Macomia e trouxe a referida criança.
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Macomia |
Já no quartel, o comandante do batalhão veio ter comigo, solicitou que lhe descrevesse as circunstâncias em que o garoto tinha sido "apanhado" e perguntou-me qual o nome dele, ao que eu respondi que não sabia. Disse então o comandante que, uma vez que estávamos no período da Páscoa, devíamos chamar-lhe P...
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Tenente Coronel Carvalho Simões |
E foi assim que "nasceu" o P..., o qual passou a partir dessa altura e até 10 de Março de 1974, a ser a mascote da Companhia de Cavalaria 3508.
O P... sempre foi uma criança muito meiga, muito educada e muito inteligente e, por isso, ficou no coração e na recordação de todos os militares da Companhia de Cavalaria 3508, sediada no Chai.
Não foi surpresa quando, no fim da comissão da nossa companhia, surgiram militares (entre os quais eu próprio) dispostos a adotá-lo.
Essa adoção acabou por recair (e bem) na pessoa do Dr. M... (médico do batalhão), até porque o médico residia, na altura, em Lourenço Marques, atual Maputo e, dessa forma, o P... poderia manter-se moçambicano e a viver na sua terra natal, podendo no futuro reencontrar os seus, se ainda fossem vivos.
Na sequência da descolonização, também o Dr. M... se viu obrigado a vir para Portugal, trazendo consigo o seu filho adotivo P..., o qual foi crescendo e hoje é um dos elementos dum importante conjunto musical português.
Portanto, faz 41 anos que a vida do P... sofreu uma mudança radical.
Não é fácil concluir se terá sido para melhor ou para pior.
Uma certeza existe, terá tido muito carinho dos militares da companhia e dos seus pais adotivos.
Mas o que terá sido feito dos seus pais legítimos?... Como teriam ficado ao perderem um filho de tenra idade?...
Os seus pais serão vivos?...
Terão sobrevivido às duas guerras?
Que saibamos, não existem respostas para estas perguntas e nada foi feito para um eventual reencontro.
A guerra semeia a morte e a destruição, destrói a são convivência entre as pessoas e cria o caos na vida das famílias e das sociedades...
Resta-nos a consciência de que todos os militares da 3508 procuraram contribuir para que o P... tivesse uma vida, que não sendo a que lhe estava reservada, fosse a melhor possível.
Fim