sábado, 8 de dezembro de 2018

O dia 9 de junho é um dia muito difícil para mim..., por Rui Briote

Bom dia Amigos! 
O dia 9 de junho é um dia muito difícil para mim e por motivos óbvios, pois a grande maioria sabe do significado desta data. 
Para me tentar aliviar um pouco que seja, decidi partilhar convosco um relato desse dia fatídico e não só...um forte abraço a todos.



A MINHA " CRUZ DE GUERRA"...
Como esquecer aquele fim de tarde de 9 de junho de 1973. 
Impossível, visto que carrego no corpo e na alma, as consequências nefastas feitas por um pequeno objecto. 
Obrigado meu Deus por me permitires, ainda hoje, poder descrever o que aconteceu. Podia ter ficado naquele local para sempre, ou melhor ter saído de lá num caixote de madeira.

Era ainda um jovem de 23 anos. 
Estava a cumprir o serviço militar obrigatório. 
Encontrava-me no quartel, a tomar a minha bica, depois de ter feito um reconhecimento aos morros circundantes ao mesmo. 
De repente, eis que ouvi um rebentamento e, como impelido por uma mola, dirigi-me a correr para o quarto, se assim se podia chamar. 
Entrei por uma porta, apanhei a minha G3 e saí pela outra. 
À saída, já preparado para dobrar a esquina do mesmo, fui projectado de encontro à parede por um forte rebentamento de uma granada de morteiro. 
Caí, tentei levantar-me, mas o máximo que consegui foi sentar-me. 
Atingido por vários estilhaços em todo o corpo, sendo um dos mais pequenos aquele que me provocou maiores danos, pois foi mesmo directo à medula, queimando-a na extensão de cerca de sete centímetros. 
Tentei levantar-me, mas não consegui. 
Gritei a todos os pulmões "Não sinto as pernas". 
Como resposta ouvi um eco "O Briote está sem pernas". 

Entretanto, o ataque prosseguia e eu a " assistir" impotente. 
Parecia um pesadelo, mas infelizmente era uma realidade e crua. 
Senti-me revoltado e como vi um very light azul lançado do aldeamento, dei uma rajada em direção ao mesmo, tal a minha revolta. 

O meu corpo já não me obedecia e era um ser humano totalmente indefeso. 
Eis, que de súbito, surgiram camaradas, que pegaram em mim, debaixo de fogo, e me conduziram em direcção à "enfermaria". 
Aí, o Gardete, com palavras encorajadoras, procurou animar-me. 

Entretanto as dores começaram a surgir.
Queixei-me da barriga, dum braço e foi a partir daí que a morfina começou a ser injectada. 
Senti-me desfalecer. 
O meu pensamento foi remetido para bem longe, onde os meus entes queridos estavam... a minha namorada e restantes entes queridos. 
Voltaria a vê-los e abraçá-los? 
Seria uma incógnita... Os meus camaradas foram rapidamente picar a pista, colocar luzes ao longo dela a fim de ser evacuado, mas não houve nem um héli ou avioneta que me fosse buscar.

Só no dia seguinte fui evacuado para Mueda,e quando cheguei colocaram-me no chão e lá me deixaram entregue a mim mesmo. 
Pouco tempo lá estive, pois a gravidade do ferimento exigia ida para outro hospital. 
Fui para Nampula onde fui sujeito a não sei quantos RXs. 
O pessoal que me rodeava dizia-me "Voltará a andar, tenha calma e coragem". 
Que mais podiam dizer?

No dia seguinte rumo a Lourenço Marques, pois o único neurocirurgião existente naquelas paragens, encontrava-se lá. 
Aí chegado, fui logo encaminhado para o hospital civil. 
Entretanto já se tinham passado quatro dias. 
Senti-me abandonado, pois sentia falta de apoio em todos os sentidos. 
Com surpresa vejo surgir o primeiro médico que tinha conhecido no Chai, mais propriamente o Sequeira. 
Deu-me um reconfortante abraço e logo reparou que ainda estava coberto de sangue... 
Pegou em mim e juntamente com a anestesista, lavou-me com álcool. 
Sim, não estou enganado ! 
A médica reparou que tinha um grande corte numa perna e então lá me deu uns pontos ...tudo isto passado quatro longos dias.

Permaneci 11 dias no Miguel Bombarda, assim se chamava o hospital, onde todos os dias recebia a visita de manhã do Murinello, médico do Chai que estava de férias, e de tarde do Amigo Sequeira com a sua linda filha ao colo.

Como a operação era constantemente adiada, houve que mexer cordelinhos, pois não poderia estar mais tempo sem a fazer. 
A evacuação para a " Metrópole" aconteceu finalmente. 
No avião vinha o Kaúlza e família e lá no fundo lá vim nas traseiras do avião, que era o local onde vinham as macas. 
O "senhor" levantou-se, o que me foi comunicado pela enfermeira pára-quedista, mas não se dignou vir dar uma palavra de apoio aos feridos. 
Mentalidade tacanha ...
A aterragem foi por volta das 3 das manhã com ida imediata para a cirurgia de oficiais. 
Passei uma noite cheia de febre e quando acordei, deparei com um grande ramo de cravos, deixados pela enfermeira. 
Lindo gesto sem dúvida a quem nunca tive oportunidade de agradecer, tentei, mas em vão.

Fui operado poucos dias após, permanecendo internado cerca de um mês. 
A primeira semana pós operatória foi muito crítica. 
Tudo o que comia vomitava, inclusive a própria água. Mas lá consegui arribar, começando a comer tudo o que me aparecia pela frente. 
Quando saí, um mês depois, rumo a Alcoitão, as empregadas sussurravam-me - "Nunca esperámos que conseguisse safar-se". 

Felizmente aconteceu e em grande parte o devo à dedicação da minha namorada, que desde que fui internado nunca me deixou....GRANDE MULHER.

Em Alcoitão permaneci cerca de um ano, onde tive uma assistência excepcional da parte médica, de enfermagem, das terapeutas e das (os) auxiliares. 

Saí de lá em julho de 74 numa cadeira de rodas rumo a uma nova vida que não seria nada fácil...


Já lá vão 44 anos.....
Amaro Pereira Sou testemunha pessoal, valente e amigo Rui.
Também recordo bem esse dia.
Forte abraço.
Eliminar
Não consigo conter as lágrimas! 
Sim porque os homens também choram!!! 
Não "vivi" na pele, esse trágico acontecimento, mas acompanhei um idêntico de um "ex-camarada d'armas", ferido, eram passados 21 dias de "guerra"! 
Julgo que foi o vosso Batalhao que nos foi render. 
Também "experimentei" uma cadeiras de rodas, felizmente só por 1 mês e 26 dias! 
No HM125, fomos visitados pelo Kaulza ....que lá do alto dos seus galões, me olhou de "suslaia"....e nem uma palavra!!!? 
Só uma "peruca" do MNF (o penteado oxigenado, assim dava a entender!)...me questionou: - Foi mina? 
Aqui recordo que o lambe-botas do Sarg da Enfermaria, de "Brise" na mão a pulverizar o nosso quarto, pois as senhoras não podiam cheirar o odor a cavalo, do nosso corpo! 
Eu afinal estava enganado, por que nos tempos de hipismo, as namoradas diziam que o que mais as atraía, era o cheiro a cavalo!! 
Bem....como toda a vida escrevi, "sem rede"...perco-me!!? 
Tudo para lhe dizer....que essa força, essa história de vida, causa uma admiração ainda maior....e pasme-se que, sendo vizinhos, ainda não tive o grato prazer de lhe dar um grande e forte abraço. 
Bom fim de semana, caro Amigo.

Eliminar
Manuel Maninha Amigo Rui Briote ao ler  teu testemunho sinto me muito imocionado, recordo esse dia como se fosse hoje,momento muito difícil k todos nós passamos,mas tu em particular foste bafejado pela infelicidade, força meu amigo do fundo do coração te desejo o melhor k à mundo e a todos os k te são queridos,um grande abraço.

Antonio Cunha Amigo Briote

Relatas o dia mais difícil de toda a tua vida em estado de revolta, pois realmente nao e para menos.
Mas todos que conviveram contigo temos sempre presente que foste um amigo muito especial!!
Admiramos a tua coragem depois de tudo o que se passou e tu continuas a ser sempre o mesmo brincalhão .
Uma palavra de carinho a quem sempre esteve contigo e nunca te abandonou, pois isto e uma verdadeira história de amor toda ela verdadeira . e que dificilmente se encontra.
Por ser real , tens que dar muitas graças a Deus , porque tens uma retaguarda muito forte e te da forca para viveres com o carinho que mereces!!
Um abraço




Duarte Pereira Eu, que tenho quase sempre uma resposta ou comentário na ponta da língua, estou entramelado .

Motivo errado o da nossa mobilização. 
O local errado, a hora , o minuto e segundo errados naquele dia errado.
Passaram mais quarenta anos e diariamente ter de recordar aqueles poucos segundos que te acompanharão para sempre.
Graças a Deus, os teus familiares e amigos vão conseguindo minimizar o teu sofrimento exterior e interior. 
Temos de seguir em frente. Abraço



José Guedes Amigo Briote, depois de ler o teu texto e todos os comentários que foram escritos que mais poderei dizer, apenas que fiquei emocionado mesmo sabendo que metidos numa guerra tudo nos podia acontecer, mas mesmo com todo esse sofrimento ainda bem que está cá para nos poderes contar este triste acontecimento e já agora os parabéns para as pessoas que sempre estiveram a teu lado e ajudado a que o teu sofrimento fosse menos doloroso, um grande abraço de amizade que sabes bem que é do coração,...




Jose Capitao Pardal Caro amigo, como sabes nesse fatídico dia não estava no Chai, pois ainda me encontrava internado no Hospital Militar de Nampula.

E ainda não tinha conhecimento completo do que se tinha passado nesse dia, mas acredita que as lágrimas me vieram aos olhos... Um grande abraço, Rui Briote. 
Só quem passou por elas sabe dar o valor...
Jose Capitao Pardal
José Lopes Vicente Como podemos esquecer esse fim de dia.
A tristeza que todos sentimos quando terminado o ataque soubemos da tua situação e toda a companhia se uniu em redor de ti para tentar diminuir o teu sofrimento.
Coube ao meu pelotão fazer protecção à pista e rezar para que a evacuação pudesse ser feita.
És um exemplo para todos nós.
Um forte ABRAÇO.



Rui Briote Boa noite a todos! Muito e muito obrigado pelas vossas palavras de apoio. 
A Vida não é nada fácil, mas será melhor vivida com a vossa Amizade sã...um forte abraço de gratidão a todos Vós Amigos



Livre Pensador Amigo Briote, depois de tudo o que foi dito e do tanto que foi dito, apenas te posso desejar que continues a ser o mesmo HERÓI que sempre demonstraste ser. 
Um abração, meu amigo. Ribeiro.



Rui Briote Abração Amigo
Eliminar
Livre Pensador Também jamais me esquecerei desse dia (9/6/73) porque para além do ataque e do teu infortúnio, foi o dia em que cheguei ao Chai, regressado da Metrópole depois de ter casado.
Rui Brandão Quando leio as tuas linhas que acabaste de escrever, a minha revolta é exponenciada. 
Fomos a tal carne para canhão. 
Milhares de jovens como tu ficaram marcados para o resto da vida e outros tantos com a vida marcada para o fim. 
Não tenho palavras para dizer o que sinto meu companheiro, por incrível que te possa parecer, vivemos também um sofrimento esquisito e sem definição. 
Revolta sim, mas ao mesmo tempo um certo complexo de culpa por não termos a mesma mazela do que tu. 
Claro que nunca será justo!!! 
Resta-nos as tais palavras de conforto melhor ou pior conseguidas. 
A impotência toma conta de nós. 
Contamos contigo para ires buscar forças não sei onde (sim, tens que ser tu, por que mais ninguém o consegue fazer...) para continuares firme ao lado da tua mulher/companheira que merece a tua imponência de personalidade forte e encorajadora. 
É verdade, por vezes temos que ser nós que dar força e coragem àqueles que nos "levantam". 
Vai em frente companheiro. 
O futuro está ai. 
Abraço-te meu jovem companheiro.



Fernando Afonso Ao longo de todos estes anos sempre evitei falar (não esquecer) deste período negro da nossa vida, mas quando confrontado com este e outros relatos, os meus sentimentos são de tristeza e revolta. Perdeste muito de ti, mas ganhaste um batalhão de amigos. 
Que Deus te ajude. 
Um abraço.




Francisco Gonçalves Briote, cada um tem a sua cruz. 
Algumas são temporárias, a tua é perene. 
Tu é a tua família têm sabido superar. 
Tendes sido fantásticos na união, na força e na alegria que conseguis transmitir. 
Sóis exemplo. 

Grande abraço

"SOLDADO PARA CANHÃO" !!, por Duarte Pereira


Duarte Pereira‎ para BATALHÃO DE CAVALARIA 3878
2 de Julho de 2014 às 20:49 · 



E FOI ASSIM !!!

SIM!!! 
DURANTE SEIS MESES FUI SOLDADO. ESPEZINHADO, MAL TRATADO E "VIOLENTADO NOS MEUS VALORES MORAIS ". 
ESTÁGIO" PARA UMA ESPECIALIDADE.
"SOLDADO PARA CANHÃO" !!

FUI CABO. 
MAS JÁ TINHA A MINHA "SINA" TRAÇADA. 
FIZ A "VIDA NEGRA" AOS SOLDADOS DO MEU PELOTÃO. 
TENTAVA EXPLICAR QUE NÃO IRIAM PARA UMA GUERRA DE VENCEDORES, MAS SIM DE SOBREVIVENTES. 

Resultado de imagem para Santarém, epc

A MALTA ERA DO NORTE, NENHUM ALENTEJANO. 
TERIAM DE DAR AO "COIRO" COMO EU DEI. 
HAVIA GENTE COM RESISTÊNCIA, MAS TAMBÉM MENINOS DE CIDADE EM QUE ALGUNS NEM TINHAM PRATICADO DESPORTO. 
NÃO SE PODIA DIVIDIR O PELOTÃO AO MEIO. 
OS MAIS RESISTENTES AGUENTAVAM, OS MAIS FRACOS IAM ARRANJANDO MÚSCULO.

FUI UM CABO MUITO "MAU" A TENTAR DAR CABO DA RESISTÊNCIA, FÍSICA E MORAL A MUITOS FUTUROS FURRIEIS MILICIANOS.

ASSIM, CAIU POR TERRA A TEORIA DO DIAS NUNES. 
OS FUTUROS FURRIEIS, TAMBÉM LEVAVAM MUITO NA "CORNETA".

MAL CONHECI O MEU PELOTÃO EM SANTA MARGARIDA. 
UM MÊS NÃO DEU PARA NADA.

EMBARQUEI AINDA QUASE SEM CONHECER O MEU FUTURO ALFERES E OS FURRIEIS MILICIANOS QUE ME IRIAM FAZER COMPANHIA NAQUELES PRÓXIMOS DOIS ANOS, SE TUDO CORRESSE BEM.

AFINAL QUEM ERAM OS "SRS FURRIEIS"??
TALVEZ AQUELES QUE TIVERAM OPORTUNIDADE DE ESTUDAR E NÃO CHEGARAM AO PATAMAR EXIGIDO PARA IR PARA O CURSO DE OFICIAIS. 

Resultado de imagem para macomia

FOI O MEU CASO. 
QUEM ERAM OS "SRS OFICIAIS"?? 
SERIAM AQUELES QUE LEVARAM A PEITO OS SEUS ESTUDOS E COM OU SEM QUEDA FORAM TIRAR O CURSO.

OFICIAL OU SARGENTO ?
NAQUELE ANO EM SANTARÉM E DEPOIS DE ANALISAR AQUELA "GUERRA DE INTENÇÕES" PARA VENCER E ACABAR COM A "GUERRA", CHEGUEI A UMA CONCLUSÃO. 
PREFERIRIA UM SOLDADO COM EXPERIÊNCIA DE LÁ JÁ TER PASSADO DO QUE UM ALFERES MILICIANO "BÉTINHO".

TIVE UMA BOINA CASTANHA. 
AS VERDES, VERMELHAS E DE OUTRAS CORES, ERAM PARA AQUELES QUE TINHAM AS SUAS CONVICÇÕES.

PESSOALMENTE JÁ TINHA EXPERIÊNCIA DE "GUERRILHA" E JÁ TEREI CONTADO AQUI NA PÁGINA. 
COM AMIGOS ASSALTAVA QUINTAS PARA ROUBAR FRUTA E ÉRAMOS CORRIDOS A TIRO DE CAÇADEIRA. 
NO PARQUE MARECHAL CARMONA EM CASCAIS, EU E OS MEUS AMIGOS FAZÍAMOS CORRIDAS DE GANSOS OU CISNES DE UM LADO PARA O OUTRO DO LAGO. 
CANAS DA ÍNDIA PARA IR À PESCA. 
OS GUARDAS TOCAVAM AS CORNETAS PARA FECHAREM AS PORTAS PARA NOS APANHAREM, MAS TÍNHAMOS UMA SAÍDA DE EMERGÊNCIA PARA A PRAIA DE SANTA MARTA. 
FOMOS PRESOS PELA POLÍCIA POR ANDAR A JOGAR À BOLA NA RUA. ÍAMOS AOS PÁSSAROS COM RATOEIRAS E "FLOBER". 
ASSALTÁVAMOS CASAS SENHORIAIS QUANDO OS DONOS ESTAVAM DE FÉRIAS PARA IR BRINCAR COM AS BICICLETAS E OUTRO BRINQUEDOS DOS MENINOS RICOS.

COMO FURRIEL PROCUREI JOGAR À DEFESA.
O MEU ALFERES ERA CALMO E CONSCIENTE.
O OUTRO FURRIEL, NEM QUERO FALAR DELE

UNS ONZE MESES DEPOIS DERAM-ME UM PELOTÃO. 
JÁ TINHA ALGUMA EXPERIÊNCIA DO TERRENO, DAS PESSOAS E DO RITMO DA GUERRA.
GRAÇAS A DEUS CORREU TUDO BEM. 
O MEU TERCEIRO PELOTÃO DA 3509, QUE EU ME LEMBRE NUNCA TEVE NENHUM INCIDENTE. 
SUSTOS SIM, E ALGUNS POR MINHA CAUSA, POR TER IDO PARA SÍTIOS ERRADOS NA ALTURA CERTA.

O ARTIGO JÁ VAI LONGO, MAS TIVE MUITO PRAZER EM ESCREVÊ-LO.



Sobre um jogo de futebol militar, Macomia - Mataca..., por Paulo Lopes

Paulo Lopes

O dia marcado para a festa de Macomia estava nas vésperas e então, aproveitando também para trazer mais mantimentos, efectuou-se mais uma coluna. 
Tudo decorreu normalmente, sem qualquer problema a estragar o ambiente festivo (provavelmente alguns guerrilheiros da Frelimo estariam também presentes nessa festa) que, quer queiram quer não ia-se apoderando, a uns mais a outros menos, do nosso espírito até porque era uma coisa nova e como tal havia que explorá-la ao máximo como em quaisquer ocasiões que surgissem e que nos dariam a sensação de uma diferença no estado normal do dia-a-dia. 
Fosse festa ou não, pouco importava. 
Apenas tinha de ser, por muito pouco que fosse, diferente! 





Chegámos a Macomia três dias antes da data marcada para o Dia de Macomia, (assim se chamava tal comemoração) mas nós, como quem quereria demonstrar uma certa liberdade de movimentos, por nossa conta e risco, iniciámos a festa mais cedo, tanto assim que, no primeiro treino (???) efectuado ninguém, ou quase ninguém, via apenas uma bola e correr era assunto para depois...

Em Macomia, tal atitude, era um risco. 
Mas, pensando bem: o que nos fariam? 
Castigavam-nos e mandavam-nos para a Metrópole?... 
Eu não treinei nem participei nessa antecipação festiva, (tinha passado a noite com febre e estava ainda um pouco combalido) limitando-me a assistir a todas as peripécias que iam espontaneamente surgindo. 

Apesar de em Macomia, perto dum sistema militar já bastante acentuado, tentássemos manter uma falsa aparência de militares a sério, principalmente de nossa parte, graduados, deixávamos sempre escapar algo e aos olhos das altas esferas, essa liberdade de hierarquia que todos nós, na Mataca, utilizávamos, sempre nos valeu uma severa repreensão lançada lá do alto do poleiro.

Felizmente que depressa voltaríamos a Mataca e aí, não havia coronel que nos fosse fazer ver o quanto é necessária uma forte e severa disciplina.


O dia chegou e todas as altas individualidades civis e militares de Macomia estavam presentes. 
Como não poderia deixar de ser, a abertura da festa começou com discursos sendo o primeiro orador o major médico do batalhão. 

Este major até era um homem fora do contexto habitual de militar bem posicionado. 
De ideias positivas e de uma forma pouco comum de tratamento com os militares de todas as patentes, deixando sempre de parte e em qualquer circunstância as suas divisas, colocando-se no mesmo degrau de um soldado ou de um tenente-coronel, sabendo dar continuidade a toda e qualquer conversação seja ela de um grau de baixo nível ou de uma forma mais extensa e filosófica discussão. 
Mas neste discurso, como tinha de agradar às individualidades, tornou-se falso enganando-se a si próprio fugindo às realidades e entrando também no campo da guerra psicológica. 

Apoiou a guerra. 
Tirou o nome de ladrões aos comerciantes que há custa de altas aldrabices (bem apoiados pelas altas patentes militares) prosperavam em Macomia. 
Falou da coragem e valentia do exército. 
Deu bravas à persistência e querer dos civis. 
Enfim, um discurso completo de mentiras, recheado de tretas com a única objectividade de agradar à ocasião. 
Aproveitou-se a lição que, pelo meio, nos deu de História Universal. 

Depois discursou o governador do distrito de Cabo Delgado. 
Mais um abutre entre tantos outros que subiu a Macomia, decerto com uma enorme pouca vontade de o fazer mas que a sua folgada posição o teria obrigado a isso. 
Este desfez-se em agradecimentos e elogios aos militares. 
E toda a burrice ficou satisfeita e convencida que todas aquelas palavras de machucar corações eram verdadeiras e sentidas! 

Continuaram os discursos de muita gente, mas não houve surpresas: tudo bem. Tudo certinho no seu papel. 
Também não seria um discurso de um qualquer maluco que violasse a regra e vomitasse umas realidades sem medo, que acabaria com a guerra e com exploração monetária e mental. 
Continuariam alguns (poucos) a encher a pança e outros (muitos) a esticarem o cordel das calças porque já nem cinto existia. 

Veio o almoço onde se comeu e bebeu do bom e do melhor que se podia encontrar por aquelas bandas enquanto os que nem sempre comiam para além do trivial, assistiam do lado de fora. 

Mas era uma festa e finalmente veio o jogo. 
Acto onde Mataca entrava na peça deste festim! 
Todos desceram ao campo pois ninguém estava pelos ajustes de deixar a festa a meio. 

O campo estava repleto onde se misturava o exército com os civis. 
Misturados mas não tanto: Os abutres estavam no poleiro/ As equipas foram anunciadas pelos altifalantes e como seria de esperar, tinham de vir as patentes antes do nome: «– Nº. 1. furriel miliciano Lopes. Nº. 2. soldado Caldeira. Nº. 3. 1º cabo Rodrigues Nº. 4. alferes miliciano Lameira Etc...Etc...Etc..». 

O jogo começou e entre pontapés na bola e na atmosfera, falhanços de toda a espécie, correrias sem nexo e até desculpe meu capitão se o aleijei, lá se ia distraindo a populaça. 
Gargalhadas, palmas e até hooooos! dos espectadores, chegámos ao fim da contenda com a nossa vitória por 2-1. 

A entrega da taça foi efectuada quando já não existia luz do sol (e da outra mal se via!). 
O capitão da nossa equipa, que também era o capitão da nossa companhia, ergueu a dita, recebendo uma salva de palmas de todos os presentes e a festa, oficialmente, acabou! 
Amanhã começava a realidade! 

Mas à noite, ainda antes do amanhã, já sem os olhares dos galões de brilho dourado e peitos medalhados, apenas com a presença estranha, mas não indesejável, do major médico, juntámos-nos (os jogadores) e a festa continuou. Então foi comer e beber sem qualquer discurso falso. 
Confraternizámos: os soldados, o major médico, o capitão, os alferes, os furriéis e cabos, tudo brincou e conversou sem a diferença de galões a incomodar os mais e os menos.





in "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"

LER FAZ BEM... O PORTO EM 1883, Excerto de As Farpas de Ramalho Ortigão, reescrito por Duarte Pereira

LER FAZ BEM.
Uma oferta do nosso compadre Rui Briote, que será passado para aqui, às "mijinhas".
Malta do "Puerto" , recuem um pouco.
============================

O PORTO EM 1883

Excerto de "As Farpas" de Ramalho Ortigão

Resultado de imagem para cidade do porto em portugal

1ª PARTE

«O panorama, extraordinariamente belo, que se descobre da grande ponte sobre o Douro começa a desenrolar aos nossos olhos os seus diferentes aspectos tão variados, tão imprevistos. 
O rio, liso, e espelhado como uma chapa de vidro azul e verde. 
Uma extensa cordilheira de colinas, cobertas de pinheirais e desenhando no espaço vaporoso e húmido as curvas mais suaves e as perspectivas mais graciosas e mais risonhas.
À beira da água, sulcada de barcos, de cor escura, esguios, da forma de gôndolas venezianas, remados de pé com largas pás que bracejam silenciosas e lentas, arredondam-se em grandes massas de um verde-escuro e espesso os velhos arvoredos das quintas do Freixo, da Oliveira, de Quebrantões e de Avintes.

Resultado de imagem para cidade do porto em portugal

Apeamo-nos finalmente na estação de Campanhã. 
Uma fila de carruagens sobre a linha dos eléctricos. 
Um rumor diligente e alegre de tamancos novos sobre os largos passeios lajeados. 
Mulheres bem feitas, caminhando direitas, de cabeça alta, cintura fina solidamente torneada sobre os rins, e alegres lenços amarelos, de ramagens vermelhas, encruzados sobre a curva robusta do peito. 
Canastras bem tecidas, grandes como berços, cobertas de pano de algodão em listras azuis e encarnadas. 
As carruagens americanas recebem tudo, gente, cestos de fruta, canastras, trouxas de roupa branca, caixotes, seirões com ferramentas. 
Dos vinte passageiros de Campanhã que tomam lugar connosco no carro americano dois têm escrófulas, e um tem uma grossa corrente de ouro no relógio e um grande brilhante pregado no peito da camisa.

Resultado de imagem para campanhã cidade do porto em portugal


2ª PARTE.
Os melhoramentos materiais na cidade que acabo de entrever são na verdade, consideráveis. 
As novas ruas, a prolongação da Boavista, a de Mouzinho da Silveira, paralela à rua das Flores, a de Passos Manuel, desde Santa Catarina à Rua de Sá da Bandeira, a rua que liga a estação do Pinheiro com a cidade, e outras, acham-se quase inteiramente guarnecidas de prédios e todos os prédios habitados. 
Outro tanto sucede nos bairros novos do Palácio de Cristal e da Duquesa de Bragança. 
O Bairro Herculano, entre o Jardim de S. Lázaro e as Fontainhas, é um recinto murado, fechado por uma grade de ferro, compreendendo duzentas ou trezentas casas, de rés-do-chão, ou de um andar, comodamente alinhadas, com um pequeno jardim comum, um mercado, lavadouros, enxugadoras, etc. 
Está já delineado, com as ruas em esboço, o projetado bairro do Campo do Cirne, em frente do Cemitério do Repouso, ao lado da Rua do Heroísmo. 
E a nova ponte, que vem da serra do Pilar às proximidades do Paço do Bispo, demolirá e transformará em novas avenidas os bairros antigos do Barredo e da Sé.

Resultado de imagem para aliados cidade do porto em portugal


Aqueles que há vinte anos partiram daqui, como eu, arriscam-se, regressando depois de mim, a não atinar com o seu caminho, a não encontrar a sua casa, nem a sua rua, nem os seus sítios. 
Deixou de existir a antiga Rua do Souto, a das Congostas, a dos Mercadores, a da Bainharia e a tão pitoresca e tortuosa Rua da Reboleira, com o seu arco da Porta Nobre, as suas janelas em ressalto como as das velhas casas flamengas, e as suas tanoarias, por entre cuja frescura era tão bom no Verão passar à sombra, no picante cheiro da aduela e dos vimes do vasilhame, ao vir da Foz em char-à-bancs sob o sol a pino!
Dir-se-ia que os nossos pais morreram para nós muito mais completamente do que morreram para eles os seus avós e os seus bisavós, levando consigo, ao desaparecerem, quase tudo quanto os rodeava na vida: a casa, o jardim, a rua que habitavam".

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

IDA PARA O DESCONHECIDO..., por Rui Briote


Ruipara 
Comentários
Rui Briote IDA PARA O DESCONHECIDO...
Quarta feira de cinzas, 17 de fevereiro de 1972, ao fim de uma tarde cinzenta, saímos de Santa Margarida, postos em autocarros rumo ao aeroporto de Figo Maduro, afim de partir para a nossa colónia de férias " resort Moçambique"...
Um pássaro gigante, mais conhecido por avião, tripulado por pilotos da FA. ganha balanço e lá vamos nós a subir aos céus e ver Lisboa a fugir-nos rapidamente da vista...lágrimas afloram e correm de mansinho pela face...
As hospedeiras, aliás hospedeiros, também não ajudavam muito.Já no ar, deixámos o nosso querido Portugal para trás, na altura conhecido por Metrópole. As nuvens que sobrevoámos pareciam algodão ... 

Que delícia para os nossos olhos! 

Seis horas depois, passámos o Equador e entramos no hemisfério sul em direção a Luanda, onde iríamos aterrar para relaxar. 
Uma centena e meia de homens foi colocada num espaço exíguo e, com o calor que fazia, começamos a destilar e aí permanecemos uma hora mais minuto menos minuto.

Embarcámos de novo, rumo à cidade da Beira. 
A aproximação à pista foi um tremendo susto, pois o avião começou a dançar, ora para a esquerda ou para a direita, e ao vermos o rio Zambeze, serpenteando com um caudal enorme, mesmo debaixo do nosso nariz ... os nossos corações começaram a bater forte, fortemente. 

Será que iremos tomar um banho forçado? 
Agarrados aos bancos estávamos a preparar-nos para tudo...
Finalmente, os pilotos lá endireitaram o avião, e fizemos uma aterragem nada suave, mas chegamos inteiros...UFA que alívio!!!

Já em terras africanas debaixo dum calor abrasador, entreolhávamo-nos com ar inquisidor, pois os olhares recaiam sobre nós e, de vez em quando lá se ouvia ..."aqui estão mais checas...". 

Só esta recepção já nos atemorizava, mas lá caminhámos para o quartel para tratar de receber a fiel companheira G3 e novas ordens. 

Já ao fim da tarde dirigimo-nos para os nossos "aposentos" para descansarmos.
Aproveitei essa folga, para juntamente com o ex-alferes Ribeiro, ir jantar a casa da prima da minha então namorada, hoje minha mulher, que morava junto à igreja de Nossa Senhora de Fátima. 

Após o mesmo, quando regressávamos para os quartos, mais ou menos a meio caminho, virei-me para o Ribeiro e propus-lhe uma volta pela cidade. 

Interrogámo-nos..." Para onde ?"
...Fizemos marcha atrás e, eis que deparámos com a Boite Diana, que ficava junto ao Moulin Rouge. 

Decidimo-nos pela primeira, para ver uma sessão de striptease ...
Entrámos lentamente com uma curiosidade latente nos nossos olhos bem abertos.

A sala iluminada por luzes psicadélicas anteviam um bom espetáculo para os checas. 

Sentámo-nos logo nas mesas junto ao palco, pois queríamos estar em cima do acontecimento... 
De súbito, ao som duma música quente, surge uma beldade toda ondulante e provocante. 

Ao mesmo tempo que nos recostávamos nas cadeiras, os nossos olhos escancaram-se para não perder pitada do espetáculo. 
A bailarina loira ou morena para aqui não interessa, num mexe, remexe com movimentos lentos e doces, lá se vai " descascando.

"...Eis senão quando, entra em cena uma cobra. 
A beleza, pega nela sem receio e coloca-a ao pescoço, qual cachecol.
Ai que arrepio!!!...
A cobra, lânguidamente percorre o corpo desnudo, passando por áreas proibitivas, apertando a "nossa amiga" cada vez mais...

Só se ouvia a música suave que acompanhava o bailado, pois os espectadores estavam embevecidos com tanto bamboleio...
Infelizmente o fim do show chegou, mas iríamos ser surpreendidos. 
Estávamos na "sobremesa" do espetáculo e, eis que a bailarina se aproxima de nós. 

Gentilmente levantámo-nos, sim os dois ao mesmo tempo e puxámos por uma cadeira. Ela com um sorriso rasgado sentou-se na nossa companhia. 
Lá tivemos que pedir um "chá" para a menina e encetámos uma conversa, não muito longa, mas com boas perspetivas... 
Num bate papo curto, mas " incisivo" convidámo-la a fazer-nos uma visita lá em cima, mais propriamente no Chai e a malandra com sorriso cativante prometeu-nos tal desígnio... 

Chegada a hora da despedida ela foi feita com um beijinho. 
Soube a pouco, claro, mas ficou a promessa...até hoje!!!

Já a madrugada ia avançada, regressámos ao quartel e só uma forte chuvada nos acalmou após tão excitante noite em vésperas duma nova viagem, desta vez rumo a Porto Amélia...





Rui Briote Eis um relato meu feito já há uns anos Rui Fernandes
Gerir
Leonel Pereira Silva Boa noite amigo Briote, mas que relato...tinhas isso apontado ou foi de memória? Abraço
Gerir




Jose Capitao Pardal Rui Briote só uma pequena imprecisão nós saímos de Figo

Maduro ainda no dia 16/2/72 e chegámos à Beira a 17/02/1972...

Roubaram-me Deus, outros o Diabo, por Manuel Bastos, apresentado por José Leitão

Terapia?
Talvez...



Boa leitura!
Roubam-me Deus, outros o diabo
A minha cabeça é uma casa assombrada.
Dentro de mim, um tumulto de almas penadas espiando culpas de que estão inocentes.
Caminho por entre pessoas que não entendo, como se o riso fosse uma alucinação e a alegria uma obscenidade.

As minhas memórias são fantasmas que me acompanham para onde for. 
Amigos que tombaram pelo caminho, que me recuso a esquecer. 
Juntos, rimos e lutámos, e agora falamos em segredo, para não acordar a indiferença do mundo.

Querem que a gente volte da guerra como se nada tivesse acontecido, porque não querem ser assombrados com os pormenores. 
Nós falamos dos tiros e dos furos das balas na pele. 
Das minas e do interior dos corpos que fica à vista. 
Dos sons da guerra próximos do limite da frequência sonora audível, e que às vezes ultrapassam esse limite e deixam de se ouvir, como se estivéssemos num filme mudo. 
Falamos do cheiro do sangue fresco e da carne ainda pulsante. 
O osso limpo, os tendões cortados e as fibras dos músculos rasgadas. 
Durante meses não se pode ver uma coxa de frango; depois acabamos por falar disso como se fala de um ofício a que nos dedicámos.

O Manel até tirava fotografias. 
Eu: Ó furriel, essas fotos são pra não se esquecer disto? 
E ele para mim: Ó Zé, nós nunca nos vamos esquecer disto até morrer.

Acho que ele, com o tempo, foi criando uma raiva contra aquilo tudo, enquanto eu ia aceitando as coisas para poder aguentar, para poder sobreviver. 
Andámos ao contrário para obter a mesma coisa. 

Depois, de repente, disseram-nos que tudo o que dantes era inevitável, tinha de acabar, e deixámos de ser precisos. 
Só servíamos para alimentar a guerra, como lenha para a fogueira, e decidiram apagar a fogueira e deitar a lenha fora. 

Regressámos a um país diferente daquele que nos enviou para lá, e tudo o que fizemos passou a estar errado, do dia para a noite. 
Num país em que a ignorância é obrigatória por lei, podemos ser apanhados com uma arma na mão como um bombeiro de mangueira em punho para apagar um fogo onde há uma inundação.

O Manel a tirar fotografias, como se quisesse reunir provas para demonstrar que a estupidez humana realmente existe. 
E eu via-o como um turista que não levava aquilo a sério para não ficar louco. 
Se não tivesse lerpado com uma mina, estava agora pior do que eu, tenho a certeza.

Mas eu não estou traumatizado, não, eu tenho é saudades da guerra. 

Deram-nos uma missão importante para cumprir e nós demos a nossa vida por essa missão. 
Ensinaram-nos desde sempre que isso era o nosso dever e ensinaram-nos também a sentir orgulho por ele nos ter sido confiado. 

Há alguma coisa pior do que descobrir que nos enganaram? 
Que a nossa missão era um crime e que o nosso dever era uma maldição?

Que fazer agora com os mortos? 
Como resgatar os inocentes sacrificados? 
Como reverter a dor depois de sentida?

Tenho saudades de me sentir do lado certo da História, de me sentir um soldado a servir uma causa justa.
Anseio por uma causa justa por que lutar.

Só que me roubaram a fé. 
Roubaram-me Deus. 
Fiquei de mãos vazias e sujas de guerra. 
Não se pode rezar com as mãos sujas de guerra e não se pode ser herói numa ato criminoso.
Roubaram-me Deus e roubaram-me o Diabo, por quem lutarei?

Esfrego a pele para limpar a tatuagem do meu patriotismo e a tatuagem não sai. 
Amei o meu país com um amor impúbere e fui abandonado por ele, prenhe de pesadelos. 
A tatuagem das minhas memórias é um ferro em brasa que me não saí do pensamento. 
Ninguém regressa do inferno inocente, ninguém regressa vivo do calvário.

O que vês, Zulmira, quando fechas os olhos? 
Será que vês o que eu vejo?
Sou uma homem-bomba pronto a explodir de memórias.
Sou um comboio em chamas rasgando a noite escura, exorcizando os fantasmas no meio das trevas da indiferença dos que nunca fazendo perguntas estão sempre de bem com Deus e com o Diabo.

Se ao menos ainda te amasse, Zulmira, deitava-me ao teu lado e adormecia ignorante, que o conhecimento incomoda, mas alguém me roubou também o meu amor por ti.
Deixa, ainda assim, meu amor passado, que me deite ao teu lado, deixa que arrefeça esta acha ainda em chamas, tirada da fogueira em que arderam os meus sonhos de criança. 
Eu, de mim dei o que dão os heróis, mas coube-me o papel errado. 
Sou um personagem criado por uma história escrita por criminosos.

Esta noite sonhei que era uma criança inocente brincando. 
Será que acordei para a realidade ou agora sou um velho soldado com que uma criança inocente está a ter um pesadelo?

Tanta coisa acontece na vida de um homem e tanta coisa é esquecida, lembramo-nos apenas de meia dúzia de coisas boas, mas das tragédias lembramo-nos bem.

Sei que passei horas de convívio caloroso e camarada como nunca se consegue passar em tempo de paz, porque as coisas escassas são mais preciosas, mas não me recordo de quase nenhuma. 

E os amigos que fiz e que esqueci? 
É como se não tivesse vivido esses momentos, porque o que ficou na memória foram sobretudo as experiências dolorosas.

A felicidade é o luxo da mente, e o luxo é uma fraude. 
Não é real, é um cenário montado para exibir a opulência de uma minoria que ofusque o ruído e o desconforto de que é feita a imperfeição da vida para a maioria. 

Resta o amor. 
O amor é sempre possível, mas deveria haver mais do que uma palavra para dizer amor. 
Há amor que mata e amor que salva, há amor que castiga e amor que redime, há amor que revigora e amor por que se morre.

Dizem que se o amor acaba, é porque não era amor de verdade, então quando um homem morre é porque nunca viveu de verdade também? 
Que pensa um homem olhando o cano da arma com que vai matar-se? Que nada na sua história merece mais um dia de vida, ou que a sua história é tão preciosa que o futuro previsível não merece ser vivido?

O inflexível arco do tempo não sai nunca do mesmo lugar, nós é que somos perecíveis.

Tudo o que acontece é passado. 
O que fizemos no passado é que faz de nós o que somos hoje, e o que somos hoje é que dá forma ao passado, que o passado só é passado quando o vemos do presente. 
Igualmente, o que fazemos agora será passado amanha; não preparamos o futuro, preparamos um passado que mereça os dias de vida que temos para viver.

Sem ti, Zulmira, para recuperar a ignorância original, recosto-me no sofá, vítima do conhecimento do inferno imposto à minha juventude perdida.

O LP no gira-discos entre estalidos. 
O cantor cantando o poeta. 
As lágrimas que não seguro. 
E as palavras do poeta na voz do cantor, como facas:
Roubam-me Deus, outros o Diabo.
Quem cantarei?

Roubam-me a pátria e a humanidade, outros ma roubam.
Quem cantarei?

Um dia cantarás a revolução. Nesse dia, cantor, as lágrimas serão de esperança.
MANUEL BASTOS
In Cacimbo