segunda-feira, 30 de setembro de 2013

AÍ VAI UM RELATO SOB A MINHA ESTADIA EM BEJA - 1971, por Rui Briote

 
Rui Briote
 
Mafra ficou para trás e de troca recebi o diploma honoris, causa de amanuense de G3...
 
Deram-me um papel para as mãos afim de escolher o quartel para onde queria ir e eu feito esperto pus logo Braga..
Como resposta enfiaram-me em Beja...seria por começar por B? Não sei, nem nunca saberei...

Em meados de Julho saí de comboio, já não me recordo do dia, à meia noite de Coimbra e cheguei a Beja ao meio dia.
Foi uma curta e pouca demorada viagem como se vê!...
Atravessar o Alentejo em pleno verão e à hora do calor num comboio "pára aqui, pára acolá" ...foi uma rica sauna...
 
Chegado à minha nova morada, tive que me ir apresentar a um militar com muitos amarelos nos ombros. Fiz a continência da praxe, apresentei-me e mandou-me " visitar" os meus novos aposentos.
 
Ótimos, pois o tempo da caserna foi-se.
No dia seguinte deram-me de mão beijada 10 cabo-verdianos para lhes ensinar os primeiros passos de dança .
O trabalho que me deram!
 
Uns dias depois, caíram, vindos de todos os lados, uma " fornada" de novos candidatos para brincar às guerras...provenientes de todo o país, mas principalmente do Alentejo.
Eram distribuídos por diferentes salas, despiam-se, víamos o peso, a altura e por aí adiante.
Foi uma tarefa cansativa e morosa, mas fez-se.
 
Fiquei com um pelotão com quase 80 homens.
Comecei logo a matutar como ia descalçar aquela bota, pois eram mais que muitos.. Juntamente com dois cabos milicianos lá procurei levar a água ao moinho.
Todos os dias de manhã fazíamos um cross ligeiro na estrada em direção a Mértola, uma fila do lado esquerdo, outra do lado contrário.
 
Ao fim de alguns dias começamos a ter a feliz ideia de no regresso ao quartel trazermos uns melões escondidos na camisa...sabiam tão bem!...
 
Já no quartel passávamos à instrução debaixo da torreira alentejana...o pior era no intervalo, pois como havia falta de água e como só havia um repuxo tinha que pôr a malta em " pirilau" e de vez em quando era obrigado a dizer ..." Despacha-te, porque todos têm direito ...
"Muitas vezes acontecia que, chegado a meio da fila já não havia nem gota...
Os dias passaram e o pessoal começou a dar cartas, tanto a marchar como no manuseamento da menina G3.
 
Até que chegou o dia de ir à carreira de tiro que ficava a uma distância razoável.
A sessão decorreu normalmente e por fim regressámos à casa materna.
Aí chegados fui chamado ao major Ferro que me comunicou que tinha falecido a minha avó paterna. Isto numa terça feira. Fui à secretaria buscar o impresso para preencher o passaporte, aproveitei e perguntei se estava de serviço no fim de semana a que me responderam " não".
Preenchi logo dois.
Fui a esse major pedir para mos assinar e o fulano quando se deparou com o impresso para o fim de semana ficou histérico e pura e simplesmente negou-mo.
Apeteceu-me apertar-lhe os colarinhos, mas travei os meus ímpetos.
Fiz uma longa viagem até ao Minho e regressei a Beja na sexta, onde me apresentei.
 
O tal major estava a falar com um amigo meu e, segundo ele, depois de eu sair questionou-o se eu era o Briote...mais palavras para quê...era um " chicalhão"...
    
Vou passar agora relatar-vos um episódio que meteu cabeça de borrego regado com tinto alentejano e guarda republicana...
Certo dia, dirigimo-nos em alguns carros até Moura para comer cabeça de borrego regado com boa pinga.
No regresso passámos por Serpa onde havia uma festa que metia bailarico.
Aí houve um sarilho que envolveu saias, pois um colega estava a dançar com uma garota e eis senão quando aparece o namorado, o que provocou troca de mimos que culminaram numa " visita" ao posto da GNR.
Felizmente o problema foi sanado, mas para susto bastou.
   
Já com os diplomas de bom aproveitamento, estavam prontos a seguir para outras paragens os recrutas passados a " prontos".
 
Entretanto surge a " boa nova"...mobilizado para Moçambique.
Fico de rastos, pois nunca esperava que isso acontecesse, pois tinha ficado bem classificado.
Reagi o melhor que pude e procurei preparar-me psicologicamente para a nova tribulação.
 
Conjuntamente comigo iriam uns "malandros" a quem dei instrução. Fui incumbido de levar 60 a Santa Margarida. Não imaginam a dor de cabeça que tive a fazer essa " viagem". Com muito custo e dor de cabeça lá os entreguei ao Teixeira Lopes.
 
Depois de um ligeiro descanso, regresso de novo a Beja para " dar conta do recado" o mesmo será dizer " missão cumprida".
 
Esta tropa tinha cada uma, pois no mesmo dia obrigaram-me a andar de Aná para Caifás...Fiquei com os bofes de fora!!!
     
Aos fins de semana ia de vez em quando passá-lo ao Algarve molhar os pés...
Armadilhados com uma tenda cinco estrelas lá íamos saborear um pouco as águas tépidas e as estrangeiras que por lá nos esperavam.
 
Foram os melhores dias dessa recruta dada na muito sossegada cidade de Beja...
 
Rui Briote (2013-10-01)

 

terça-feira, 10 de setembro de 2013

FUI INSPECCIONADO, por Paulo Lopes


Paulo Lopes
 
 
Conforme prometi aqui vai mais um "chateanço" de cabeça à rapaziada e, mais uma vez, creio que vou estar em sintonia com muita malta desta página (uns nem tanto, mas...)

De disciplina em disciplina; de filme em filme; de tacada em tacada; mais conversa menos musica; mais musica menos conversa; mais rua menos avenida caminhada; mais pontapé na vida e menos na bola, lá ia cultivando um futuro que, afinal, estava logo a seguir, ao virar da esquina.

A proximidade do futuro que se adivinhava para jovens como eu, estava nas mãos dos governantes e eles precisavam dos meus préstimos para outros empreendimentos os quais não estavam nos meus planos nem sonhos.
 
Como prova desta minha teoria, existia o meu completo esquecimento de que para alguma coisa tinha ido, uns meses atrás dar o nome a um obrigatório recenseamento militar.

Fiquei conhecedor de que não estávamos só nas mãos de Deus, como sempre nos quiseram fazer acreditar, mas também nas dos diabos e seus apóstolos que proliferavam lá para as bandas de São Bento, acompanhando os nossos passos, controlando as nossas ideias, não nos deixando cair na tentação de devaneios que nos levassem a criar obstáculos e por em causa as suas indiscutíveis razões do bem-fazer aos seus semelhantes.
 
Isto com a ajuda imprescindível de quem nos queria fazer crer que só Deus nos guiava.
 
Ouvíamos, mas pouco comentávamos (talvez receio, talvez ignorância imposta ou simplesmente por não querermos falar) o tema tabu da guerra colonial.
Íamos sabendo que fulano tal e sicrano, que estavam a cumprir o serviço militar, tinham partido para terras de África, mas não nos era facultado qualquer pormenor ou conhecimento do que se passava para lá do Cais da Rocha de Conde Óbidos, para além das águas que banhavam os muros onde os barcos atracavam e se enchiam de jovens duma nação comandada pela ganância, embarcando ao som de choros e gritos de lamentações, lenços brancos a abanar, já encharcados de saudades.
 
Martelavam-nos a cabeça com outros assuntos bem mais fáceis de digerir e cheios de fé.
 
Incutiam-nos a ideia, esta reforçada pelos nossos pais, talvez querendo enganarem-se a eles próprios ou com o pensamento de que nos estavam a proteger de assuntos que nos fizessem alertar para a realidade completamente desconhecida, que quando chegasse a nossa hora de ir para a tropa já a guerra estava terminada e Angola, Moçambique, Guiné ou os outros diversos territórios espalhados pelo mundo, eram e continuariam a ser nossos.
 
(Angola é nossa...Angola é nossa...Angola é nossa).
 
Ouvíamos isto numa música passada constantemente na rádio, na televisão e nas ruas.
 
Inconscientemente íamos alimentando o nosso espírito de que era verdade e que não nos deveríamos preocupar muito com essa coisa da guerra do Ultramar, além de que, na tropa, é que "aprendíamos a ser homens"!...

Sempre nos foram vedadas a sete chaves pelo regime de então toda e qualquer verdade da questão.
 
A guerra colonial tinha de ser vista e sentida pelo povo como um estandarte do nosso país, pelo qual tínhamos de dar tudo por tudo para que esses nossos territórios não caíssem por terra, para que não caíssem nas mãos dos “terroristas”.
 
E no “tudo por tudo” estavam incluídas vidas e esperanças de uma juventude que, apesar de tudo, ainda mantinham sonhos e horizontes por descobrir.
 
Claro que a juventude filha dos poderosos do nosso país estava bem resguardada e alheada desse estandarte pelo qual o povo, sempre o povo, tinha de defender a bem da nação (e dos poderosos dela).
 
Mesmo que nos esforçássemos para conseguir ir um pouco para além do que nos era permitido (o que, contra mim falando, não era o caso porque deixava correr o tempo e esperava que as coisas se resolvessem por si próprias), logo se deparavam obstáculos complicados de transpor que nos colocava de imediato em maus lençóis.
 
A forma mais premente que surgia nos jovens que não queriam participar nos ideais dos poderosos do nosso estado e do nosso país, estavam presentes na fuga imediata.
 
Na subversiva passagem para o outro lado da fronteira.
Numa vida de fugitivos da própria sombra.
Numa incerteza do futuro, mas com a firme certeza que não iriam morrer ao serviço de beneficiados ocultos na capa de benfeitores e no escudo de "a bem da nação".

Na minha mente nunca esteve essa hipótese, para mim absurda, porque, ou teria a sorte do meu lado e venceria essa batalha ou ela não me acompanharia e decerto, para sobre viver noutro lugar, em outro pais, iria dar o meu esforço, não sabia a quem, ser escravo dos meus próprios minutos.
 
Vender a minha alma em troca de quase nada a incessantes ávidos de sangue e do suor alheio.
Na imensurável questão do vai ou fica, do ter ou não ter sorte, do questionável ou não, optei por jogar "no que for soará", mas junto dos meus familiares e amigos.
Não desdenho dos que pensaram o contrário, nem faço elogios a quem por essa prática enveredou.
Cada qual deve pensar pela sua cabeça e seguir o caminho traçado por si mesmo.

O povo tem razão (nem sempre. Quase sempre, quanto muito!) quando diz que o tempo voa.
Num instante se tinha passado mais um par de tempo e sem dar por ela estava no edifício da Junta da Freguesia da Penha de França a conferir os editais, procurando avidamente o meu nome agregado a uma data para me apresentar na inspeção militar, sempre com esperança de não enxergar a minha graça.

Mas não! Nestas ocasiões eles, os nossos amigos, os governantes, nunca se esquecem de nós e lá estava o meu nome numa extensa lista de futuros magalas.
O esquecimento ficaria para contas de outro rosário.
Quem não podia esquecer essa data era eu, se queria não arriscar passar instantaneamente de um pacato rapaz bem comportado a um refratário.
Palavrão que, nesses tempos, era sinónimo de grande malfeitor, assassino ou coisa pior ficando, inclusive, marcado para a sociedade.

O tempo que separou o dia da minha minuciosa leitura do edital até a data nele marcada (a memória atraiçoa-me e a exatidão dessa data deixa-me na incerteza) foi passado nervosamente veloz.
Tão veloz que num ápice estava a dizer (dizer, é uma forma de expressão!... Pedir, será o mais correto) ao meu chefe que tinha de faltar para me apresentar num edifício, se não me falha a memória, ficava perto da Praça de Espanha onde, na altura, funcionava o Hospital Militar, a fim de ser inspecionado para o serviço militar.
 
Pedido que, alastrado, fez soltar um exclamado “jáááá!!!” e umas quantas palmadinhas nas costas, amigavelmente, dadas por todos os meus colegas, todos mais velhos que eu e livres destas andanças, como que, antecipadamente, despedirem-se de mim e desejarem-me sorte para uma nova vida.

In "Memórias dos Tempos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
Paulo Lopes  1 de Agosto de 2013

sábado, 7 de setembro de 2013

Nesse dia de 12 de Maio de 1972..., por João Novo

Alguns dos participantes na Operação OMO (Maio de 1972) - Serra Mapé
 
Vou hoje dar voz ao João Novo que nos retrata uma situação que eu também vivi e que com frequência me vem à memória, e como também eu estava nesse local, a essa hora e vivi esse momento... não posso ficar indiferente... Quantas vezes (dezenas, centenas, milhares?) na minha já longa vida não terei eu pensado, no que poderia ter sucedido, se algum dos nossos se lembra de reagir?!...

 
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Nesse dia de 12 de Maio de 1972

Hoje vou intervir, porque não consegui resisti a esta data, não por ser de Fátima, pois eu não acredito nessas coisas, mas porque podia ter sido a nossa ultima noite de vida.
 
Estou convencido que a grande maioria dos nossos colegas, não se apercebeu do que ali poderia ter acontecido, nesse dia de 12 de Maio de 1972.
Nesse dia houve um reabastecimento por helicópteros, em que algo correu mal, pois caiu um deles na Serra do Mapé, o que veio atrasar esse reabastecimento, implicando que a pernoita, tivesse que ser efetuada, ainda perto do local, onde baixaram os hélios.

O T. Alves, (mais tarde o machambas) que ia a comandar em terra a operação, deu ordem para pararmos, fazer um circulo com a tropa (300 e muitos homens) e os cerca de 400 civis, que nos acompanhavam com catanas, (que serviriam para destruir as machambas, pois era essa a finalidade da operação) ficariam dentro do circulo.

O comandante escolheu o local, do posto de comando (dizer isto a gaguejar, como o T. Alves dizia, é que era de rir) onde ficou o caldeirão da sopa, junto da nossa cabeceira e dos seus carregadores, não fosse o caldeirão fugir, eu, o Cunha enfermeiro, lembram-se dele?, alguns enfermeiros e as transmissões.
 
Foi o tratar de encher os colchões de ar, um luxo, naquele local, para tratar de fazer a caminha.
Tinha do meu lado direito, o Cunha e do lado esquerdo, o Comandante, isto, deitado de barriga para o ar.
Nunca dormi tão bem acompanhado. O tempo foi passando, já nem me lembro, em que pensava, ou no que sonhava, não se podia falar, nem fumar, nem cagar tão pouco (FELIZMENTE HOJE JÁ NÃO FUMO), se calhar pensava na família, no “Puto”, na namorada, se calhar a sonhar que estava a fazer amor com ela, ou que ela estava com o outro, quem sabe, já não me lembro, quando vim de férias ao “Puto”, acabou o namoro, mas não foi por causa do sonho.

Estávamos todos felizes, quando cerca das 22,35H, uma rajada de metralhadora, se ouviu que passou a centímetros do P.C. (Posto de Comando), duas ou três munições acertaram no caldeirão da sopa, fiquei todo "cagadinho".
A reação que tive foi despejar o ar do colchão, para ficar mais baixo, atrás do caldeirão.
Dos cerca de 800 cagarolas, todos "borradinhos", ninguém abriu o bico, não houve reação á rajada, pode ter sido a nossa sorte, passados não sei quantos minutos, ouvimos o “assobio” das granadas de morteiro a sair, que começaram a cair a cerca de 15 a 20 metros do caldeirão da sopa, eu via o clarão dos rebentamentos, estava todo "cagadinho", entretanto, começo a sentir algo a mexer entre mim e o Capitão, pensei ser alguma cobra, eu sei lá o que pensei, era o sacana do Cunha a meter-se entre mim e o T. Alves, deveria querer que eu lhe cobrisse a espinha, não me lembro o que lhe fiz, se fosse hoje metia o gaijo no caldeirão da sopa.
 
Os rebentamentos começaram em frente de onde estava o P.C., depois foi para a direita e depois para a esquerda, e passados não sei quantos minutos, acabou.
Da nossa parte, nada se passou, tudo caladinho e todos "cagadinhos", era um pivete naquele local, que nem calculam.

Vamos morrer e nunca saberemos o que se passou, muitas coisas podem ter sucedido.
Ou não acreditaram que estávamos ali, os morteiros podiam não alcançar mais ou não tinham mais munições ou também teriam um certo receio, pois sabiam a quantidade de tropa que lá estava e era muita.

Tivemos muita sorte, porque se as morteiradas caíssem 30 ou 40 metros mais á frente era a matança de muitos e depois o que se seguiria?...
Seria a desorientação total, felizmente nunca se saberá...

Estamos vivos, por enquanto e o nosso dia chegará, mas que seja o mais tarde possível e com saúde.

Desculpem os erros, mas foi escrito diretamente e como não foi á censura, pode ter alguns erros.

Quem lá esteve, espero que nunca esqueçam este dia ou melhor essa noite...
Podia ter sido a última para muitos...
Mas mesmo muitos.
Esta foi a minha pior noite da guerra e ainda “vista” agora, faz-me pele de galinha...

Um abração para todos
 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Os meus primeiros dias de tropa, por Paulo Lopes

R. A. 4 - Leiria
Para espicaçar a malta a contar os seus primeiros dias de tropa aqui fica mais um pouco do livro: "Memórias dos Tempos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"

Falando nisso, vamos almoçar...
Um militar de divisas douradas em pano de fundo verde tropa (fiquei a saber que era 2º sargento) veio chamar-nos à caserna, agora um pouco mais calma e menos conflituosa com a confusão gerada pelo homem/roupa/apetrechos/cama de cima ou de baixo/cacifo esquerdo ou direito:
— Tudo la fora, rápido. Vociferou com voz de comando num tom feroz a querer meter-nos medo, como se disso houvesse necessidade, a nos, pobres mancebos que ainda nos tremiam as pernas só de ver o lustroso fardamento que enfeitava a besta feita militar.
Após reunidos e perfilados na parada a saída da caserna e sem muitos rodeios, pôs-nos a caminhar mais ou menos ordenados em direção ao refeitório.
Primeira refeição: Chicharro frito com arroz.
Até que do chicharro gostei ou então seria a fome que já fustigava o estômago e resmungava por qualquer ementa, mas o arroz, coitado, parecia feito de um bago só, qual cimento quase seco, enfim, do mal, o menos e dava para afugentar a fome que se ia aproximando dos nossos esfomeados esqueletos!
Decerto que me esperavam coisas bem piores que um simples arroz mal confecionado!
Digo eu!
Estávamos no fim da nossa refeição quando fomos “convidados”, mais uma vez com uma voz de dono do mundo, a apresentar-mo-nos dentro de dez minutos na parada.
Ordens são ordens e a nossa posição não aconselhava a ripostar.
Longe de tal, pelo menos no que tocava a minha pessoa apesar de, interiormente, não ter gostado daquela forma de convite!...

Mas nós já não éramos convidados.
Já fazíamos parte integrante dum objeto que servia para ser amedrontado por frustrações impiedosas de produtos mal acabados e cioso de mostrar o seu pseudopoder.

Já na parada e de formatura efetuada com o esforço dedicado de dois ou três fulanos com divisas vermelhas e em bico também listadas em pano de fundo verde tropa (mais uma que fiquei a saber: cabos milicianos) ficamos a conhecer os nossos futuros protetores e docentes:
Comandante da Companhia: um capitão.
Três listas douradas verticais sobre um fundo verde;
Comandantes de Pelotão: tenentes, alferes e aspirantes.
Duas listas douradas na vertical os primeiros, uma lista dourada os segundos e os últimos também uma lista dourada mas na diagonal do fundo verde.
Por fim, Comandantes de Secção: furriéis e cabos milicianos.
Três listas em forma de sinal de seta sendo duas para um lado e outra para o lado oposto.
Isto os furriéis.
Os cabos milicianos faziam o mesmo desenho mas em listas vermelhas e não tão reluzentes.
Os “maiorais”, aqueles que só aparecem em ocasiões especiais, os que mandam nos que na altura se esforçavam para dar mostras evidentes que eram eles que ali mandavam, iríamos conhecer um pouco mais tarde.
Uma lição importante: há sempre alguém que manda acima de quem manda alguém!...(falta-me descobrir se existe fim, se para nalgum lado, se o animal tem focinho e cauda!...
Ficamos ali mesmo com a nossa primeira lição de obediência hierárquica.
Fomos divididos como quem divide uma partilha e entregues aos nossos proprietários para que estes fizessem de nós “homens a sério”!
Estávamos apenas na primeira semana da nova vida.
Ainda completamente inadaptado a nada nem a ninguém, numa das formações matinais, antes do pequeno-almoço, chamaram uns quantos, um a um, para uma formatura à parte onde, sem saber porque, também estava incluído!...
— Mau'! Que fiz eu para obter tamanha honra de marginalização?
Perguntei para os meus botões que foram, diga-se, meus conselheiros de muitas batalhas dos pensamentos quando tinha tempo, espaço e vontade de pensar!
Depois de separados, ficámos a saber que estávamos escalados para fazer uns testes a que davam o nome de psicotécnicos.
Tal como um toque de interruptor que velozmente acende uma luz, vieram-me a memória alguns conselhos (idênticos ao do engolir uma azeitona!) que me tinham acompanhado para esta vida militar. Conselhos de quem já tinha passado pela tropa e entre muitos, um dos que ficou gravado na minha memória foi:
— Não te armes, nem em muito esperto, nem em demasiado burro.
Fica sempre no meio e se possível despercebido.
Para que serviriam aqueles testes?
Como deveria agir?
Devo esforçar-me e dar o meu melhor ou simplesmente efetuá-los?
Do que constarão os testes?
Foi neste estado de espírito que passei o dia e não consegui obter uma auto-resposta.
Mas venham de lá esses testes!
Que coisa mais burra!
Ou foram estupidamente elaborados ou propositadamente de aparência estúpida!
Testes tão fáceis que não dava sequer para tentar não saber fazê-los.
Já não me recordo de todos, mas um ficou-me memorizado: parecia um brinquedo de crianças, daqueles que dizem para que idade que foram concebidos e contava para pontuação não só a colocação de umas peças no local correto mas também o tempo que demoraríamos a efetuar essa tarefa.
 
Desconfiei daqueles testes e fiquei a pensar se estávamos simplesmente a ser gozados ou mesmo a ser testados mas de uma maneira diferente do que estava habituado nos tempos não muito longínquos das cadeiras das escolas e com testes bem mais complicados.
Terminados os testes de secretária feitos num só dia, passámos a outros, aos físicos:
Na manhã seguinte e previamente avisados, estávamos novamente formados à parte e conduzidos à pista dos obstáculos físicos.
Comecei a pensar que deveria dar o meu melhor e que talvez, com isso, retirasse alguns dividendos que me pudessem aliviar de funções mais pesadas e fosse colocado numa secretaria militar dum qualquer quartel, conforme o anjo me falava, de quando em vez, atrás da orelha a quem eu, já desconfiado, respondia na orelha dele: e eu sou o Pai Natal!
Conflitos de pouca monta!
Iniciámos então os diversos exercícios físicos sempre acompanhados e vigiados de perto por graduados que apontavam, penso eu, as nossas aptidões!
Daquilo gostava eu.
Desporto sempre foi comigo.
Mas de calções, ténis e camisola, não fardado e com botas da tropa!
Essa e que eu não esperava!
Entre saltos em comprimento; corrida de obstáculos a percorrer o mais rápido possível um determinado espaço; ora correndo ora rastejando por baixo de arame farpado ou saltando por entre pneus suspensos por cordas a troncos de arvores, tal qual macacos, foi mais ou menos fácil de transpor para todos os intervenientes mas, andar em travessas com um palmo de largura a três, ou mais, metros do chão e saltar daí para um tronco de árvore que distava cerca de um metro, agarrar-se a ele e por ele descer, complicou a situação para uns quantos, do que não se livraram duns certos nomes e risadas.
Gostei de fazer todos aqueles exercícios e fi-los com determinação e uma perna as costas esquecendo que estava a ser classificado para algo que desconhecia.
O desporto sempre injetou em mim uma espécie de analgésico com efeitos imediatos fazendo com que me concentrasse no que fazia esquecendo o que viria a fazer ou o que tivesse feito!
Resultado intermédio: fiquei, no conjunto dos testes, psicotécnico e físico, em segundo lugar.
Resultado final: guia de marcha com mais uma boa mão cheia de camelos com as mesmas bossas que eu, para o quartel das Caldas da Rainha.
No final da segunda semana de clausura, mandaram-nos descansar para casa esse fim-de-semana, não sem que antes ter de devolver as tralhas que já tinham colocado a nosso uso e de nossa inteira responsabilidade.
 
Eu e mais uns quantos “magalas” já não regressaríamos a Leiria tendo na mão uma guia de marcha com destino ao RI 5 onde teríamos de nos apresentar na segunda-feira seguinte.
 
Paulo Lopes (20130827)
 
 
 

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

RECRUTA - Pelo Rui Brandão

 
Destacamento da Escola Prática de Cavalaria em Santarém - 1970
 
 
RECRUTA

Dado o tema RECRUTA ser apetecível para a "memória militar" e estar a ser trabalhado com as experiências de cada um, deixem-me explanar um pouco o que passei em Santarém.
 
Pertenço ao 2º turno de 1970.
Nessa altura ainda se usava a Mauser para os exercícios e a G3 só para fazer tiro, lá naquela carreira de tiro de episódios com piada (um, dois e três apanha invólucros, o resto vai ver a merda que fez).
 
As vivências/experiências/ambientes têm muito a ver com as pessoas que compõem os respetivos grupos.
 
No meu caso direi que tive umas primeiras 4 a 5 semanas de bom ambiente, dado que o aspirante (licenciado em Direito) que nos dava a Recruta era simplesmente um tipo impecável.
 
No primeiro dia, chegou junto do pelotão e disse: - Meus senhores, sabemos que ninguém gosta disto,... mas vamos aproveitar o que há de bom nesta Recruta, a camaradagem e os exercícios físicos.
 
Claro está que ficou com o Pelotão na "mão".
Passadas essas 4 a 5 semanas, um dia apareceu de manhã acompanhado de outro aspirante.
 
Informou que iria passar para os serviços jurídicos do quartel e seria substituído pelo novo aspirante que agora apresentava.
Ok, tudo bem.
Embora deixando saudades.
 
O novo aspirante, informa que íamos para a carreira de tiro, de imediato dá-nos ordens para NUM MINUTO irmos buscar o capacete à caserna.
 
Nós estávamos aquartelados no Destacamento.
Da parada até à caserna e voltar não dava para UM MINUTO.
Quando voltámos, o aspirante com o seu ar imponente gritou que já tinha passado o tal MINUTO.
Enchemos 50.
O aspirante ficou "apresentado".
 
No próximo Capítulo vou descrever-vos a personalidade deste "cromo".
 
Rui Brandão 20130731

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

A MINHA PRIMEIRA COLUNA DE REABASTECIMENTO A MACOMIA, por Paulo Lopes



"Picada" Mataca - Macomia (foto Paulo Lopes)
PRIMEIRA “PICADA” ATÉ MACOMIA

Ficámos alguns dias sossegados da azafama constante do vai e vem das operações, o que nos admirou bastante, mas não nos preocupou absolutamente nada.

Podíamos passar os dias a ler, a jogar xadrez, damas ou cartas, consoante os gostos de cada um e, pela tardinha, fazíamos —os mais desportistas— uma peladinha naquele “estádio” fabuloso onde, enquanto uns corriam atrás da bola fugindo ao tédio, outros viam, aplaudiam e apoiavam os do lado de que mais gostassem naquele momento, como se estivessem no estádio do seu clube eleito.

Quanto ao que me tocava, não dispensava esse momento de desporto e lá estava eu, sempre no meu posto de guarda-redes, defendendo o meu emblema que era, sem duvida, o esgotar dos minutos, o passar do tempo numa actividade com acesso à descompressão do pensamento negativo.
 
Enquanto tentava que nenhuma bola passasse para além das canas de bambu, esquecia-me que, para lá do arame farpado, existia outro “jogo”, onde nenhum de nós, jogadores, ganharia.
 
A vitória ia apenas e sempre, para os abutres que dominam o mundo e as pessoas!
Nestes dias tínhamos, portanto, as duas partes que constituem a felicidade de um soldado: bem alimentados (tendo como conceito que a boa alimentação era apenas e tão só o não comer a ração de combate) e repouso absoluto.
Situação invejável, não fosse o local de isolamento onde permanecíamos e a constante tensão que, mesmo neste sossego interior, estava, apesar das aparências, continuamente presente.
A qualquer momento todo o cenário se poderia modificar e o que era descanso passaria a pesadelo muito antes de um esfregar de olhos!...

Nos primeiros tempos da campanha, mesmo com estas situações pontuais, sentia-me completamente destroçado e incapaz de reagir.
Agora, ventos e tempestades passadas, tormentas e ansiedades desmanteladas, horas consecutivamente contadas minuto a minuto, estes poucos dias de “nada fazer”, faziam-me sentir quase contente e feliz.
É tudo uma questão de hábito.
Assim se comprova, na realidade, que somos um animal de hábitos.
Mas a “boa fruta” chegou ao fim quando uma ordem para nos irmos reabastecer a Macomia entrou pelas antenas do aparelho do nosso criptógrafo.
Era a primeira vez que saía da Mataca para ir a outro aquartelamento atravessando a serra através da picada que nos levava até lá.
Ia “estreá-la” e conhecer todos os seus riscos que espreitavam atrás de cada árvore, à frente do próximo passo.
Mais uma nova experiência não desejada para adicionar a umas já conhecidas, à espera de outras que o futuro espreita.
.
— Amanhã vamos a Macomia e como já não é novidade, os perigos são vários, tanto no caminho para lá, como no regresso e principalmente neste, visto que vimos carregadinhos de mantimentos, portanto, há que abrir bem os olhos e arrebitar as orelhas.
Dizia o alferes S……, continuando: — Daqui a pouco, mais para a noite, como costumamos fazer nestas ocasiões, vão informar a vossa “malta” que por volta das quatro e meia, cinco horas, arrancamos! Creio que não são necessárias mais conversas porque, como sabem, para estas picadas, quanto menos se falar melhor.

E com estas palavras, poucas e simples, saímos! Ainda vinha a sair da reunião e já estava a perguntar, porque me fez uma certa curiosidade, o porque do “quanto menos se falar melhor” e qual a razão de apenas à noite se ir dizer ao grupo que cada um de nós comandava, que iríamos a Macomia no dia seguinte.
As respostas às minhas questões foram tão rápidas e simples, quanto a reunião que acabávamos de ter: — Porque, não sabendo como, mesmo aquela hora da manhã, quando se passa pela aldeola, já lá estão nativos para aproveitarem a nossa deslocação a Macomia, apanhando boleia até lá, correndo assim menos riscos de serem apanhados por elementos da Frelimo e também para pouparem uns largos quilómetros nas pernas.
Ora, se eles sabem, mesmo quando essa viagem só é dada a conhecer já à noitinha, também os “turras” tinham esse conhecimento e tempo para preparar uma emboscada ou colocar minas. Portanto, quanto mais tarde se desse a informação, menor era a possibilidade de ser passada para o exterior.
Dizia-me um camarada.
Simples e agradável de saber!...
Ainda não eram cinco da manhã e mal a aurora tinha chegado, já todos estávamos preparados para a partida.
O roncar dos motores deu o sinal e, ainda em cima das Mercedes 404, quatro ao todo, iniciámos o percurso que tinha passagem inevitável pela aldeola.
Lá estavam eles!!! Tal como me tinham dito, uma dúzia bem medida de nativos já estavam prontos, de malas aviadas e “arranjadinhos” para a “excursão”.
Enquanto eles subiam para as caixas das Mercedes, nós saltávamos para o chão porque, a partir dali, íamos entrar na floresta a caminho da Serra do Mapé.
 
A “estrada” não era mais do que trilhos formados pelo passar daquelas já cansadas viaturas que as gastas rodas faziam pelo mato dentro rasgando uma linha que se ia desviando ao sabor das corpulentas árvores tão velhas como a floresta que atravessava.
À frente iam os batedores.
Cerca de dez de cada lado do rodado por onde passariam as rodas das viaturas. A distribuição destes militares era feita intervaladamente e revezando-se: cinco preparados com a sua respectiva arma para o que desse e viesse e os outros cinco iam picando constantemente a terra com uma cana de bambu que tinha um prego enorme na ponta, a que chamavam “detector de minas” que, conforme o nome indica, tinha como intenção o detectar das minas que estivessem colocadas no dito rodado.
 
Eram trinta e tal longos quilómetros que tínhamos de palmilhar até Macomia!...
A vegetação era inconstante: ora espessa e de uma densidade assustadora não permitindo enxergar meio metro para os lados. Ora aberta e de arvoredo espaçado dando-nos uma confortável sensação de segurança quanto a possíveis emboscadas.
 
De minuto em minuto, de passo em passo, umas vezes apressados, outras nem tanto, consoante as exigências do terreno, fomos progredindo atravessando o pé da Serra, subindo-a, “largando”, de quando em quando, granadas de morteiro, como que a “varrer” os locais periféricos da nossa passagem, até atingirmos o cume.
Sem descanso e com todos os sentidos a funcionar em pleno, avistámos as machambas de Macomia, cerca do meio-dia.
Do aquartelamento de Macomia até às machambas onde nos encontrávamos, já um grupo de combate daquele quartel tinha batido a zona e então, com mais segurança, poderíamos montar nas Mercedes e dirigir-mo-nos ao quartel, dando um pouco de descanso as pernas já um pouco desejosas de parar.

Num instante chegámos a Macomia.
Vila onde se situava a sede do Batalhão ao qual a nossa Companhia pertencia.
Para além do quartel (quartel mesmo! com casernas e tudo), Macomia já tinha umas quantas casas de habitação, cujas, poderiam ter mesmo esse nome.
Já havia uma, mas só uma, estrada de alcatrão.
Esta vinha de Porto Amélia, com passagem por Macomia.
Estrada nada amigável para ser utilizada por viaturas civis sem se fazerem acompanhar pelas Panhard do Exército e em coluna não estando, mesmo assim, livres de irem pelos ares arremessadas por minas não detectadas que, mesmo por baixo do alcatrão, eram colocadas pelos guerrilheiros que esburacavam nos laterais do asfalto depositando-as na distância prevista onde passaria o rodado das viaturas.
 
Também existiam duas casas comerciais onde se podia comer um bife com batatas fritas e beber uma bela cerveja fresca, o que, para nós, vindos do fim do mato, atravessando um autentico oceano de arvoredo, era um hotel de cinco estrelas!
Que luxo!!.
Este quartel já tinha traços metropolitanos e de forma idêntica aos diversos quartéis espalhados por Portugal Continental.
Não tinha nada em comum, no aspecto arquitectónico, com aquilo que tínhamos em Mataca. Um quartel murado com muros de tijolo e cimento, chão totalmente alcatroado, não com simples arame farpado como na Mataca e dum chão de terra batida esvoaçando poeira mal havia uma leve brisa de vento.
 
Recheado dumas quantas casernas também feitas de material que consiste numa casa normal, com telhados de telha de barro, janelas para arejar e dar luz solar e chão de mosaico. Não num buraco feito na terra, com folhas de zinco como telhado, sem uma única janela ou quaisquer arejamento para além das portas mal amanhadas que arrastavam e esburacavam o chão feito do mesmo material que o restante estacionamento, como as nossas “casernas” da Mataca.

Que me perdoem, esta minha invejosa definição e comparação, os camaradas que sofreram naquela terra onde a guerra também estava visível a olho nu e que, tal como nós, estavam bem longe dos seus. Felizmente para eles que tinham, pelo menos, o mínimo de condições de sobrevivência e que, não os aliviando da malfadada sorte de terem sido espoliados da sua juventude, os ajudava a desanuviar um pouco mais a dor que nos perseguia constantemente e que instintivamente nos íamos defendendo, cada um à sua maneira e com as armas que individualmente tínhamos no pensamento.

Estivemos dois dias estacionados, onde até deu, pelo menos para mim que não posso ver uma bola aos saltos, seja de que modalidade for, disputar uns quantos jogos de voleibol.
Sim!
Aquele quartel até tinha campo de voleibol alcatroado e delineado!
Claro que nada disto os afastava dos perigos constantes e comuns a todos nós.
Apenas os aliviava um pouco a tensão tal como as nossas “jogatanas” de futebol na Mataca.
 
Mas como o nosso lugar não era aquele, após termos o nosso carregamento prontinho para regressar, fizemos-nos à “estrada!”...
Já tínhamos talvez perto de três horas percorridas e já estava ultrapassada a descida da serra quando, de repente, fomos surpreendidos pelo som estridente dos tiros que vinham da frente da formação. Estávamos no meio de uma emboscada.
Quase de imediato, como se fosse automático, os nossos homens que se encontravam na zona efectiva da emboscada, ripostaram com bastante fogo de rajada. Conheci então, pela primeira vez, a guerra psicológica:
— Comandos a esquerda! G.E. à direita! Gritava o furriel M…… de alto e bom som, fazendo jus a sua boa voz de comando enquanto todo o pessoal já estava, apesar da surpresa inicial, ordeira e estrategicamente deitados no chão da picada com as armas apontadas para os dois lados do denso mato e prontas para a defesa.

Comandos e Grupos Especiais, como o M…… queria que houvesse, isso é que não vi nem poderia ver a não ser em pensamento ou nalguma visão de filme de guerra!...

As únicas forças existentes eram os primeiro e quarto grupo de combate e mais a tal dúzia de nativos que regressavam connosco para Mataca que, não ajudando em nada nestas ocasiões, atrapalhavam ainda mais!
Conforme sorrateira e inesperadamente fazem a emboscada, também e com ainda maior rapidez desaparecem sem deixar rasto da sua presença.
Assim funciona a guerra de guerrilha feita pelos guerrilheiros da Frelimo.
Entre gritos, tiros, explosões de granadas por nós atiradas, e de insultos ao inimigo nada nos aconteceu para além do enorme susto e o acelerar das batidas do coração. Foi muito maior o nosso fogo de resposta à emboscada do que aquele efectivado pelo IN.
Este disparou alguns tiros e fugiu.
Aliás, e felizmente para nós, como era habitual nos guerrilheiros da Frelimo!
Pela forma do ataque, ficámos convictos que não tinha sido uma emboscada premeditada mas sim e apenas um encontro ocasional, uma passagem simultânea no mesmo local e aproveitada pelos guerrilheiros, visto que, a grande distância, já se ouvia o roncar fastidioso e melancólico dos motores das nossas viaturas.
 
O tiroteio também não durou muito tempo, e depois de fazermos uma busca rápida a zona circundante no interior do mato, prosseguimos com a coluna até a Mataca sem que mais problemas tenham surgido.
Nestes momentos, passados os sustos, é que nos vem à memória como eram bons os tempos em que, nas diversas paradas dos quartéis da Metrópole, quando em formatura se ordenava: —quem sabe andar de bicicleta saia da formação.
Estratégia de que todos conheciam a razão, mas que sempre fazia alguns “cair”, espelhando orgulho nos seus rostos como se saber andar de bicicleta fosse uma questão de grande orgulho nacional: —Então apresentem-se na cozinha que há muita batata para descascar”. Surgia de imediato o prémio!
Após este susto, e com surpresa geral, estivemos novamente “parados” no nosso canto, mais de quinze dias.
Foi neste espaço de tempo que saíram duas promoções:
Sem alaridos, sem pompa nem discursos de ocasião e muito menos com paradas militares. Apenas em comunicado oficial e lido, já não sei bem por quem, duma forma simples como quem lê uma noticia no jornal sem quaisquer importância:
— O alferes S…… passa a capitão miliciano e o furriel L…. promovido a alferes miliciano.
A única situação alterada, e apenas para o L…., foi a mudança de “aposentos” instalando-se na messe dos oficiais.
 
Paulo Lopes (20130822)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

NOVAMENTE, TAVIRA, por Fernando Bento


 
BOA TARDE PESSOAL.
 
FINALMENTE ENCONTRO-ME A PASSAR UMAS FERIAS EM SARZEDO, MINHA TERRA NATAL.
 
DEPOIS DE ALGUM TEMPO DE AUSÊNCIA DEVIDO A COMPROMISSOS PROFISSIONAIS, QUE MUITO ME OCUPARAM NESTAS ULTIMAS SEMANAS, CÁ ESTOU PARA TENTAR POR A ESCRITA EM DIA, E TENTAR COLABORAR (DENTRO DO POSSÍVEL), NESTA PAGINA.
 
GOSTARIA DE PARTILHAR CONNVOSCO A MINHA CHEGADA A TAVIRA.
ENTÃO CÁ VAI.
 
APÓS UMA RECRUTA NO RI 5 NAS CALDAS DA RAINHA, RECEBI GUIA DE MARCHA PARA TAVIRA (C.I.S.M.I.), ONDE IRIA FREQUENTAR O CURSO DE SAPADORES.
 
ESTÁVAMOS NO INICIO DO MÊS DE MAIO DE 1971.
 
DEPOIS DE UMA NOITE MAL DORMIDA, FEITA, PRIMEIRO DE BARCO DO TERREIRO DO PAÇO PARA O BARREIRO E DEPOIS DE COMBOIO, QUE PARAVA EM TODAS AS ESTAÇÕES E APEADEIROS, CHEGUEI A TAVIRA, CERCA DAS 6,30 DA MANHÃ.
NA GARE DA ESTAÇÃO DOIS ELEMENTOS DA P.U. (POLICIA DA UNIDADE), ESPERAVAM-NOS. MANDARAM-NOS FORMAR A DOIS E LÁ SEGUIMOS EM DIREÇÃO AO QUARTEL QUE ATÉ NEM FICAVA MUITO LONGE DA ESTAÇÃO.
 
QUANDO LÁ CHEGÁMOS JÁ ERA GRANDE A BARAFUNDA COM MUITOS INSTRUENDOS QUE À VOLTA DE UNS PLACARDS COLOCADOS À ENTRADA DA PARADA TENTAVAM SABER ONDE IRIAM SER COLOCADOS: COMPANHIA, CASERNA, ETC..
 
TINHA ACABADO DE VER ONDE IRIA SER COLOCADO (1ª COMPª. E 1º PELOTÃO), QUANDO SE OUVIU UMA VOZ NAS NOSSAS COSTAS:
ATENÇÃO, SAPADORES, ONDE ESTÃO OS SAPADORES DO 1º PELOTÃO.
TEEM 5 MINUTOS, 5 MINUTOS OUVIRAM BEM?... PARA ESTAREM AQUI NA PARADA FARDADOS COM A FARDA Nº 3.
 
OLHÁMOS NA DIREÇÃO DONDE VINHA AQUELA VOZ, ERA UM ALFERES, O ALFERES MADEIRA, SAPADOR, E QUE SERIA O NOSSO INSTRUTOR.
 
BOM, COMO CALCULAM FOI UMA CORRERIA LOUCA EM DIREÇÃO À CASERNA PARA NOS VESTIRMOS COMO ELE MANDOU.
FOI UMA GRANDE CONFUSÃO.
EU ATERREI NA PRIMEIRA CAMA QUE ENCONTREI VAZIA E DESPACHEI-ME O MAIS RÁPIDO QUE PUDE.
 
QUANDO CHEGAÁOS À PARADA, OS 5 MINUTOS TINHAM PASSADO HÁ MUITO.
HAVIA ALGUNS DE BLUSÃO, CAMISA E GRAVATA E CALÇAS Nº 3, OUTROS COM A PARTE DE CIMA Nº 3 E CALÇA DE SAIDA, UMA GRANDE MISTURA DE FARDAMENTOS.
 
O ALFERES À NOSSA FRENTE OLHOU-NOS COM UM SORRISO TROCISTA, MANDOU, FIRME, SENTIDOOOO, MEIA VOLTA VOLVER, PASSO DE CORRIDA E LÁ FOMOS EM DIREÇÃO AO PORTÃO SUL.
ESTE PORTÃO DAVA ACESSO À ZONA DE INSTRUÇÃO, ONDE SE SITUAVAM A PISTA DE OBSTÁCULOS, AS SALINAS COM AGUA ESTAGNADA, ETC..
 
BOM JÁ ESTÃO MAIS OU MENOS A CALCULAR A RECEPÇÃO QUE NOS FOI OFERECIDA.
ERAM AS FLEXÕES, OS ABDOMINAIS, O RASTEJAR, ANDAR DENTRO DAS SALINAS, ETC..
 
QUANDO UMA HORA DEPOIS ENTRAMOS NO QUARTEL, TODOS "BEM CHEIROSOS" E SUJOS DE PORCARIA DOS PÉS À CABEÇA E A GRITAR, OS SAPADORES SÃO OS MAIORES, ESTÃO A VER A CARA DOS OUTROS QUE SENTADOS PELOS CANTOS AINDA AGUARDAVAM ORDENS.
 
DEPOIS VIEMOS A SABER QUE AQUILO ERA UM ESPECIE DE PRAXE AOS NOVOS SAPADORES.
AS FARDAS FORAM LAVADAS CONNOSCO LÁ DENTRO.
Fernando Bento publicou no
BATALHÃO DE CAVALARIA 3878
20130820
 

 

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

DE RECRUTA A ESPECIALISTA, por Paulo Lopes





Foto de autor desconhecido (Google)



— Juro...

Ouvia-se em uníssono como um trovão que se espalhava na atmosfera, misturando-se com a multidão, entrando nos corações dos familiares fazendo com que estes sentissem um estremecer nos seus corpos emocionados, não sei, digo eu, porquê!...
 
Um Juramento de Bandeira duma imensidão de mancebos que já estava com o seu tempo de juventude encalhado numa forte incerteza no futuro que os separava dum presente eficazmente escolhido por homens dum passado mantido em segredo, cujo pensamento mesquinho e curto não alcançavam nada para além dos seus interesses pessoais.
 
Um falso juramento de mão no peito e de palavras no pensamento que só estão descritas nos dicionários de obscenidades.
 
Um juramento de vontade apressada porque a família, embasbacada de orgulho nos seus filhos, estavam a espera, desejosos de nos levar até casa, para uns míseros dias de descanso, onde nos esperava uma dose reforçada de carinho e de acepipes que só as mães de cada um sabiam fazer.
E ainda só tinham passado três meses...

— Juro...

Por minha parte não jurei absolutamente nada, apenas terminei o primeiro ciclo de uma vida que não queria mas a que a isso estava obrigado.
Obrigado a cumprir.
Obrigado a obedecer. (Obrigado Srs. generais, Srs. marchais, muito obrigado. Estou imensamente grato a V. Exas.
Curvo-me a vossa sabedoria).
Próximo destino: Tavira.
O tal pensamento ou sonho que me acompanhava e me assolava de vez em quando o espírito, segredando-me que iria passar a minha missão militar numa secretaria, já tinha ficado para trás.
 
O Exército não ia formar sargentos milicianos para ficarem dentro duma repartição... a não ser que surja aquela repentina doença: a cunha!...
 
Se alguma réstia de esperança ainda teimasse em sobreviver no meu intimo, Tavira, dava-lhe o golpe de misericórdia.
Acabava com ela.
 
Já conhecia esta cidade algarvia de outros tempos.
Tempos de praia e lazer.
Tempo de criança onde tive a oportunidade de ir passar algumas férias aproveitando aquele sol algarvio e o refrescar nas águas tépidas da Ilha de Tavira.
 
Só não sabia, que já nesse tempo, existia um quartel dentro da cidade a formar futuros sargentos milicianos atiradores e de outras especialidades todas elas com o cunho bélico.
Significava então, que a esferográfica ou a máquina de escrever que pairavam nas minhas esperanças seriam substituídas, no meu caso, por uma espingarda.

Na chegada a Tavira deparei com um quartel muito inferior ao das Caldas da Rainha: de aspeto velho e a precisar dum urgente restauro.
Uma parada que se ficava por uma milésima parte da parada do RI 5.
Após os já conhecidos requisitos do costume, fiquei a saber que por via da falta de alojamento para tanto instruendo, estava instalada uma pratica comum de, com a apresentação dum qualquer documento médico de pouca convicção, poderia pernoitar fora do quartel.
Aproveitei essa benesse com unhas e dentes e tudo o mais que conseguisse para agarrar essa bendita prática do quartel de Tavira apesar de estar sujeito a ver sugado o meu pecúlio mensal oferecido e cumprido pelo meu ex-patrão e mais o que vinha dos meus familiares.
Quarto para alugar era produto que abundava.
Bastava ir a Porta de Armas que logo alguém apareceria para nos ajudar a tal procura.
Tavira era movimentada por essa industria.
Não havia rua onde não houvesse quartos alugados por militares com pouca vontade de pernoitar no quartel. Esta prática dava-nos também acesso a sermos desarranjados ao jantar: — A não ser que fossemos previamente avisados que não nos poderíamos ausentar do quartel.
 
Alguém logo nos foi alertando com um tom de voz que fazia subentender a prática de um crime militar gravíssimo.
Uma mais-valia para as tascas de Tavira que tinham de alimentar todas aquelas bocas de jovens militares famintos. E não foram poucos os que aproveitavam essa soberba forma de falsa liberdade militar... Para nos era uma golfada de ar fantasiosamente fresco.
 
Para os comerciantes era um abono de família suplementar.
Para os assalariados do exército que tinham obrigatoriamente de nos alojar e alimentar era, sem dúvida, uma forma rápida de fazer pequena fortuna, à custa do que entrava para o orçamento militar daquele quartel, cujas contas já tinham incluída a nossa alimentação, que depois viria a sair sabe-se lá como e para onde!...

In "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"
Paulo Lopes (20130801)