sábado, 8 de dezembro de 2018

Sobre um jogo de futebol militar, Macomia - Mataca..., por Paulo Lopes

Paulo Lopes

O dia marcado para a festa de Macomia estava nas vésperas e então, aproveitando também para trazer mais mantimentos, efectuou-se mais uma coluna. 
Tudo decorreu normalmente, sem qualquer problema a estragar o ambiente festivo (provavelmente alguns guerrilheiros da Frelimo estariam também presentes nessa festa) que, quer queiram quer não ia-se apoderando, a uns mais a outros menos, do nosso espírito até porque era uma coisa nova e como tal havia que explorá-la ao máximo como em quaisquer ocasiões que surgissem e que nos dariam a sensação de uma diferença no estado normal do dia-a-dia. 
Fosse festa ou não, pouco importava. 
Apenas tinha de ser, por muito pouco que fosse, diferente! 





Chegámos a Macomia três dias antes da data marcada para o Dia de Macomia, (assim se chamava tal comemoração) mas nós, como quem quereria demonstrar uma certa liberdade de movimentos, por nossa conta e risco, iniciámos a festa mais cedo, tanto assim que, no primeiro treino (???) efectuado ninguém, ou quase ninguém, via apenas uma bola e correr era assunto para depois...

Em Macomia, tal atitude, era um risco. 
Mas, pensando bem: o que nos fariam? 
Castigavam-nos e mandavam-nos para a Metrópole?... 
Eu não treinei nem participei nessa antecipação festiva, (tinha passado a noite com febre e estava ainda um pouco combalido) limitando-me a assistir a todas as peripécias que iam espontaneamente surgindo. 

Apesar de em Macomia, perto dum sistema militar já bastante acentuado, tentássemos manter uma falsa aparência de militares a sério, principalmente de nossa parte, graduados, deixávamos sempre escapar algo e aos olhos das altas esferas, essa liberdade de hierarquia que todos nós, na Mataca, utilizávamos, sempre nos valeu uma severa repreensão lançada lá do alto do poleiro.

Felizmente que depressa voltaríamos a Mataca e aí, não havia coronel que nos fosse fazer ver o quanto é necessária uma forte e severa disciplina.


O dia chegou e todas as altas individualidades civis e militares de Macomia estavam presentes. 
Como não poderia deixar de ser, a abertura da festa começou com discursos sendo o primeiro orador o major médico do batalhão. 

Este major até era um homem fora do contexto habitual de militar bem posicionado. 
De ideias positivas e de uma forma pouco comum de tratamento com os militares de todas as patentes, deixando sempre de parte e em qualquer circunstância as suas divisas, colocando-se no mesmo degrau de um soldado ou de um tenente-coronel, sabendo dar continuidade a toda e qualquer conversação seja ela de um grau de baixo nível ou de uma forma mais extensa e filosófica discussão. 
Mas neste discurso, como tinha de agradar às individualidades, tornou-se falso enganando-se a si próprio fugindo às realidades e entrando também no campo da guerra psicológica. 

Apoiou a guerra. 
Tirou o nome de ladrões aos comerciantes que há custa de altas aldrabices (bem apoiados pelas altas patentes militares) prosperavam em Macomia. 
Falou da coragem e valentia do exército. 
Deu bravas à persistência e querer dos civis. 
Enfim, um discurso completo de mentiras, recheado de tretas com a única objectividade de agradar à ocasião. 
Aproveitou-se a lição que, pelo meio, nos deu de História Universal. 

Depois discursou o governador do distrito de Cabo Delgado. 
Mais um abutre entre tantos outros que subiu a Macomia, decerto com uma enorme pouca vontade de o fazer mas que a sua folgada posição o teria obrigado a isso. 
Este desfez-se em agradecimentos e elogios aos militares. 
E toda a burrice ficou satisfeita e convencida que todas aquelas palavras de machucar corações eram verdadeiras e sentidas! 

Continuaram os discursos de muita gente, mas não houve surpresas: tudo bem. Tudo certinho no seu papel. 
Também não seria um discurso de um qualquer maluco que violasse a regra e vomitasse umas realidades sem medo, que acabaria com a guerra e com exploração monetária e mental. 
Continuariam alguns (poucos) a encher a pança e outros (muitos) a esticarem o cordel das calças porque já nem cinto existia. 

Veio o almoço onde se comeu e bebeu do bom e do melhor que se podia encontrar por aquelas bandas enquanto os que nem sempre comiam para além do trivial, assistiam do lado de fora. 

Mas era uma festa e finalmente veio o jogo. 
Acto onde Mataca entrava na peça deste festim! 
Todos desceram ao campo pois ninguém estava pelos ajustes de deixar a festa a meio. 

O campo estava repleto onde se misturava o exército com os civis. 
Misturados mas não tanto: Os abutres estavam no poleiro/ As equipas foram anunciadas pelos altifalantes e como seria de esperar, tinham de vir as patentes antes do nome: «– Nº. 1. furriel miliciano Lopes. Nº. 2. soldado Caldeira. Nº. 3. 1º cabo Rodrigues Nº. 4. alferes miliciano Lameira Etc...Etc...Etc..». 

O jogo começou e entre pontapés na bola e na atmosfera, falhanços de toda a espécie, correrias sem nexo e até desculpe meu capitão se o aleijei, lá se ia distraindo a populaça. 
Gargalhadas, palmas e até hooooos! dos espectadores, chegámos ao fim da contenda com a nossa vitória por 2-1. 

A entrega da taça foi efectuada quando já não existia luz do sol (e da outra mal se via!). 
O capitão da nossa equipa, que também era o capitão da nossa companhia, ergueu a dita, recebendo uma salva de palmas de todos os presentes e a festa, oficialmente, acabou! 
Amanhã começava a realidade! 

Mas à noite, ainda antes do amanhã, já sem os olhares dos galões de brilho dourado e peitos medalhados, apenas com a presença estranha, mas não indesejável, do major médico, juntámos-nos (os jogadores) e a festa continuou. Então foi comer e beber sem qualquer discurso falso. 
Confraternizámos: os soldados, o major médico, o capitão, os alferes, os furriéis e cabos, tudo brincou e conversou sem a diferença de galões a incomodar os mais e os menos.





in "Memórias dos Anos Perdidos ou a Verdade dos Heróis"

LER FAZ BEM... O PORTO EM 1883, Excerto de As Farpas de Ramalho Ortigão, reescrito por Duarte Pereira

LER FAZ BEM.
Uma oferta do nosso compadre Rui Briote, que será passado para aqui, às "mijinhas".
Malta do "Puerto" , recuem um pouco.
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O PORTO EM 1883

Excerto de "As Farpas" de Ramalho Ortigão

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1ª PARTE

«O panorama, extraordinariamente belo, que se descobre da grande ponte sobre o Douro começa a desenrolar aos nossos olhos os seus diferentes aspectos tão variados, tão imprevistos. 
O rio, liso, e espelhado como uma chapa de vidro azul e verde. 
Uma extensa cordilheira de colinas, cobertas de pinheirais e desenhando no espaço vaporoso e húmido as curvas mais suaves e as perspectivas mais graciosas e mais risonhas.
À beira da água, sulcada de barcos, de cor escura, esguios, da forma de gôndolas venezianas, remados de pé com largas pás que bracejam silenciosas e lentas, arredondam-se em grandes massas de um verde-escuro e espesso os velhos arvoredos das quintas do Freixo, da Oliveira, de Quebrantões e de Avintes.

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Apeamo-nos finalmente na estação de Campanhã. 
Uma fila de carruagens sobre a linha dos eléctricos. 
Um rumor diligente e alegre de tamancos novos sobre os largos passeios lajeados. 
Mulheres bem feitas, caminhando direitas, de cabeça alta, cintura fina solidamente torneada sobre os rins, e alegres lenços amarelos, de ramagens vermelhas, encruzados sobre a curva robusta do peito. 
Canastras bem tecidas, grandes como berços, cobertas de pano de algodão em listras azuis e encarnadas. 
As carruagens americanas recebem tudo, gente, cestos de fruta, canastras, trouxas de roupa branca, caixotes, seirões com ferramentas. 
Dos vinte passageiros de Campanhã que tomam lugar connosco no carro americano dois têm escrófulas, e um tem uma grossa corrente de ouro no relógio e um grande brilhante pregado no peito da camisa.

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2ª PARTE.
Os melhoramentos materiais na cidade que acabo de entrever são na verdade, consideráveis. 
As novas ruas, a prolongação da Boavista, a de Mouzinho da Silveira, paralela à rua das Flores, a de Passos Manuel, desde Santa Catarina à Rua de Sá da Bandeira, a rua que liga a estação do Pinheiro com a cidade, e outras, acham-se quase inteiramente guarnecidas de prédios e todos os prédios habitados. 
Outro tanto sucede nos bairros novos do Palácio de Cristal e da Duquesa de Bragança. 
O Bairro Herculano, entre o Jardim de S. Lázaro e as Fontainhas, é um recinto murado, fechado por uma grade de ferro, compreendendo duzentas ou trezentas casas, de rés-do-chão, ou de um andar, comodamente alinhadas, com um pequeno jardim comum, um mercado, lavadouros, enxugadoras, etc. 
Está já delineado, com as ruas em esboço, o projetado bairro do Campo do Cirne, em frente do Cemitério do Repouso, ao lado da Rua do Heroísmo. 
E a nova ponte, que vem da serra do Pilar às proximidades do Paço do Bispo, demolirá e transformará em novas avenidas os bairros antigos do Barredo e da Sé.

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Aqueles que há vinte anos partiram daqui, como eu, arriscam-se, regressando depois de mim, a não atinar com o seu caminho, a não encontrar a sua casa, nem a sua rua, nem os seus sítios. 
Deixou de existir a antiga Rua do Souto, a das Congostas, a dos Mercadores, a da Bainharia e a tão pitoresca e tortuosa Rua da Reboleira, com o seu arco da Porta Nobre, as suas janelas em ressalto como as das velhas casas flamengas, e as suas tanoarias, por entre cuja frescura era tão bom no Verão passar à sombra, no picante cheiro da aduela e dos vimes do vasilhame, ao vir da Foz em char-à-bancs sob o sol a pino!
Dir-se-ia que os nossos pais morreram para nós muito mais completamente do que morreram para eles os seus avós e os seus bisavós, levando consigo, ao desaparecerem, quase tudo quanto os rodeava na vida: a casa, o jardim, a rua que habitavam".

quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

IDA PARA O DESCONHECIDO..., por Rui Briote


Ruipara 
Comentários
Rui Briote IDA PARA O DESCONHECIDO...
Quarta feira de cinzas, 17 de fevereiro de 1972, ao fim de uma tarde cinzenta, saímos de Santa Margarida, postos em autocarros rumo ao aeroporto de Figo Maduro, afim de partir para a nossa colónia de férias " resort Moçambique"...
Um pássaro gigante, mais conhecido por avião, tripulado por pilotos da FA. ganha balanço e lá vamos nós a subir aos céus e ver Lisboa a fugir-nos rapidamente da vista...lágrimas afloram e correm de mansinho pela face...
As hospedeiras, aliás hospedeiros, também não ajudavam muito.Já no ar, deixámos o nosso querido Portugal para trás, na altura conhecido por Metrópole. As nuvens que sobrevoámos pareciam algodão ... 

Que delícia para os nossos olhos! 

Seis horas depois, passámos o Equador e entramos no hemisfério sul em direção a Luanda, onde iríamos aterrar para relaxar. 
Uma centena e meia de homens foi colocada num espaço exíguo e, com o calor que fazia, começamos a destilar e aí permanecemos uma hora mais minuto menos minuto.

Embarcámos de novo, rumo à cidade da Beira. 
A aproximação à pista foi um tremendo susto, pois o avião começou a dançar, ora para a esquerda ou para a direita, e ao vermos o rio Zambeze, serpenteando com um caudal enorme, mesmo debaixo do nosso nariz ... os nossos corações começaram a bater forte, fortemente. 

Será que iremos tomar um banho forçado? 
Agarrados aos bancos estávamos a preparar-nos para tudo...
Finalmente, os pilotos lá endireitaram o avião, e fizemos uma aterragem nada suave, mas chegamos inteiros...UFA que alívio!!!

Já em terras africanas debaixo dum calor abrasador, entreolhávamo-nos com ar inquisidor, pois os olhares recaiam sobre nós e, de vez em quando lá se ouvia ..."aqui estão mais checas...". 

Só esta recepção já nos atemorizava, mas lá caminhámos para o quartel para tratar de receber a fiel companheira G3 e novas ordens. 

Já ao fim da tarde dirigimo-nos para os nossos "aposentos" para descansarmos.
Aproveitei essa folga, para juntamente com o ex-alferes Ribeiro, ir jantar a casa da prima da minha então namorada, hoje minha mulher, que morava junto à igreja de Nossa Senhora de Fátima. 

Após o mesmo, quando regressávamos para os quartos, mais ou menos a meio caminho, virei-me para o Ribeiro e propus-lhe uma volta pela cidade. 

Interrogámo-nos..." Para onde ?"
...Fizemos marcha atrás e, eis que deparámos com a Boite Diana, que ficava junto ao Moulin Rouge. 

Decidimo-nos pela primeira, para ver uma sessão de striptease ...
Entrámos lentamente com uma curiosidade latente nos nossos olhos bem abertos.

A sala iluminada por luzes psicadélicas anteviam um bom espetáculo para os checas. 

Sentámo-nos logo nas mesas junto ao palco, pois queríamos estar em cima do acontecimento... 
De súbito, ao som duma música quente, surge uma beldade toda ondulante e provocante. 

Ao mesmo tempo que nos recostávamos nas cadeiras, os nossos olhos escancaram-se para não perder pitada do espetáculo. 
A bailarina loira ou morena para aqui não interessa, num mexe, remexe com movimentos lentos e doces, lá se vai " descascando.

"...Eis senão quando, entra em cena uma cobra. 
A beleza, pega nela sem receio e coloca-a ao pescoço, qual cachecol.
Ai que arrepio!!!...
A cobra, lânguidamente percorre o corpo desnudo, passando por áreas proibitivas, apertando a "nossa amiga" cada vez mais...

Só se ouvia a música suave que acompanhava o bailado, pois os espectadores estavam embevecidos com tanto bamboleio...
Infelizmente o fim do show chegou, mas iríamos ser surpreendidos. 
Estávamos na "sobremesa" do espetáculo e, eis que a bailarina se aproxima de nós. 

Gentilmente levantámo-nos, sim os dois ao mesmo tempo e puxámos por uma cadeira. Ela com um sorriso rasgado sentou-se na nossa companhia. 
Lá tivemos que pedir um "chá" para a menina e encetámos uma conversa, não muito longa, mas com boas perspetivas... 
Num bate papo curto, mas " incisivo" convidámo-la a fazer-nos uma visita lá em cima, mais propriamente no Chai e a malandra com sorriso cativante prometeu-nos tal desígnio... 

Chegada a hora da despedida ela foi feita com um beijinho. 
Soube a pouco, claro, mas ficou a promessa...até hoje!!!

Já a madrugada ia avançada, regressámos ao quartel e só uma forte chuvada nos acalmou após tão excitante noite em vésperas duma nova viagem, desta vez rumo a Porto Amélia...





Rui Briote Eis um relato meu feito já há uns anos Rui Fernandes
Gerir
Leonel Pereira Silva Boa noite amigo Briote, mas que relato...tinhas isso apontado ou foi de memória? Abraço
Gerir




Jose Capitao Pardal Rui Briote só uma pequena imprecisão nós saímos de Figo

Maduro ainda no dia 16/2/72 e chegámos à Beira a 17/02/1972...

Roubaram-me Deus, outros o Diabo, por Manuel Bastos, apresentado por José Leitão

Terapia?
Talvez...



Boa leitura!
Roubam-me Deus, outros o diabo
A minha cabeça é uma casa assombrada.
Dentro de mim, um tumulto de almas penadas espiando culpas de que estão inocentes.
Caminho por entre pessoas que não entendo, como se o riso fosse uma alucinação e a alegria uma obscenidade.

As minhas memórias são fantasmas que me acompanham para onde for. 
Amigos que tombaram pelo caminho, que me recuso a esquecer. 
Juntos, rimos e lutámos, e agora falamos em segredo, para não acordar a indiferença do mundo.

Querem que a gente volte da guerra como se nada tivesse acontecido, porque não querem ser assombrados com os pormenores. 
Nós falamos dos tiros e dos furos das balas na pele. 
Das minas e do interior dos corpos que fica à vista. 
Dos sons da guerra próximos do limite da frequência sonora audível, e que às vezes ultrapassam esse limite e deixam de se ouvir, como se estivéssemos num filme mudo. 
Falamos do cheiro do sangue fresco e da carne ainda pulsante. 
O osso limpo, os tendões cortados e as fibras dos músculos rasgadas. 
Durante meses não se pode ver uma coxa de frango; depois acabamos por falar disso como se fala de um ofício a que nos dedicámos.

O Manel até tirava fotografias. 
Eu: Ó furriel, essas fotos são pra não se esquecer disto? 
E ele para mim: Ó Zé, nós nunca nos vamos esquecer disto até morrer.

Acho que ele, com o tempo, foi criando uma raiva contra aquilo tudo, enquanto eu ia aceitando as coisas para poder aguentar, para poder sobreviver. 
Andámos ao contrário para obter a mesma coisa. 

Depois, de repente, disseram-nos que tudo o que dantes era inevitável, tinha de acabar, e deixámos de ser precisos. 
Só servíamos para alimentar a guerra, como lenha para a fogueira, e decidiram apagar a fogueira e deitar a lenha fora. 

Regressámos a um país diferente daquele que nos enviou para lá, e tudo o que fizemos passou a estar errado, do dia para a noite. 
Num país em que a ignorância é obrigatória por lei, podemos ser apanhados com uma arma na mão como um bombeiro de mangueira em punho para apagar um fogo onde há uma inundação.

O Manel a tirar fotografias, como se quisesse reunir provas para demonstrar que a estupidez humana realmente existe. 
E eu via-o como um turista que não levava aquilo a sério para não ficar louco. 
Se não tivesse lerpado com uma mina, estava agora pior do que eu, tenho a certeza.

Mas eu não estou traumatizado, não, eu tenho é saudades da guerra. 

Deram-nos uma missão importante para cumprir e nós demos a nossa vida por essa missão. 
Ensinaram-nos desde sempre que isso era o nosso dever e ensinaram-nos também a sentir orgulho por ele nos ter sido confiado. 

Há alguma coisa pior do que descobrir que nos enganaram? 
Que a nossa missão era um crime e que o nosso dever era uma maldição?

Que fazer agora com os mortos? 
Como resgatar os inocentes sacrificados? 
Como reverter a dor depois de sentida?

Tenho saudades de me sentir do lado certo da História, de me sentir um soldado a servir uma causa justa.
Anseio por uma causa justa por que lutar.

Só que me roubaram a fé. 
Roubaram-me Deus. 
Fiquei de mãos vazias e sujas de guerra. 
Não se pode rezar com as mãos sujas de guerra e não se pode ser herói numa ato criminoso.
Roubaram-me Deus e roubaram-me o Diabo, por quem lutarei?

Esfrego a pele para limpar a tatuagem do meu patriotismo e a tatuagem não sai. 
Amei o meu país com um amor impúbere e fui abandonado por ele, prenhe de pesadelos. 
A tatuagem das minhas memórias é um ferro em brasa que me não saí do pensamento. 
Ninguém regressa do inferno inocente, ninguém regressa vivo do calvário.

O que vês, Zulmira, quando fechas os olhos? 
Será que vês o que eu vejo?
Sou uma homem-bomba pronto a explodir de memórias.
Sou um comboio em chamas rasgando a noite escura, exorcizando os fantasmas no meio das trevas da indiferença dos que nunca fazendo perguntas estão sempre de bem com Deus e com o Diabo.

Se ao menos ainda te amasse, Zulmira, deitava-me ao teu lado e adormecia ignorante, que o conhecimento incomoda, mas alguém me roubou também o meu amor por ti.
Deixa, ainda assim, meu amor passado, que me deite ao teu lado, deixa que arrefeça esta acha ainda em chamas, tirada da fogueira em que arderam os meus sonhos de criança. 
Eu, de mim dei o que dão os heróis, mas coube-me o papel errado. 
Sou um personagem criado por uma história escrita por criminosos.

Esta noite sonhei que era uma criança inocente brincando. 
Será que acordei para a realidade ou agora sou um velho soldado com que uma criança inocente está a ter um pesadelo?

Tanta coisa acontece na vida de um homem e tanta coisa é esquecida, lembramo-nos apenas de meia dúzia de coisas boas, mas das tragédias lembramo-nos bem.

Sei que passei horas de convívio caloroso e camarada como nunca se consegue passar em tempo de paz, porque as coisas escassas são mais preciosas, mas não me recordo de quase nenhuma. 

E os amigos que fiz e que esqueci? 
É como se não tivesse vivido esses momentos, porque o que ficou na memória foram sobretudo as experiências dolorosas.

A felicidade é o luxo da mente, e o luxo é uma fraude. 
Não é real, é um cenário montado para exibir a opulência de uma minoria que ofusque o ruído e o desconforto de que é feita a imperfeição da vida para a maioria. 

Resta o amor. 
O amor é sempre possível, mas deveria haver mais do que uma palavra para dizer amor. 
Há amor que mata e amor que salva, há amor que castiga e amor que redime, há amor que revigora e amor por que se morre.

Dizem que se o amor acaba, é porque não era amor de verdade, então quando um homem morre é porque nunca viveu de verdade também? 
Que pensa um homem olhando o cano da arma com que vai matar-se? Que nada na sua história merece mais um dia de vida, ou que a sua história é tão preciosa que o futuro previsível não merece ser vivido?

O inflexível arco do tempo não sai nunca do mesmo lugar, nós é que somos perecíveis.

Tudo o que acontece é passado. 
O que fizemos no passado é que faz de nós o que somos hoje, e o que somos hoje é que dá forma ao passado, que o passado só é passado quando o vemos do presente. 
Igualmente, o que fazemos agora será passado amanha; não preparamos o futuro, preparamos um passado que mereça os dias de vida que temos para viver.

Sem ti, Zulmira, para recuperar a ignorância original, recosto-me no sofá, vítima do conhecimento do inferno imposto à minha juventude perdida.

O LP no gira-discos entre estalidos. 
O cantor cantando o poeta. 
As lágrimas que não seguro. 
E as palavras do poeta na voz do cantor, como facas:
Roubam-me Deus, outros o Diabo.
Quem cantarei?

Roubam-me a pátria e a humanidade, outros ma roubam.
Quem cantarei?

Um dia cantarás a revolução. Nesse dia, cantor, as lágrimas serão de esperança.
MANUEL BASTOS
In Cacimbo

segunda-feira, 26 de novembro de 2018

5ªfeira: 15Jul1971 - itinerário Macomia > Chai, por Valter Duarte Pereira dos Santos

portal UTW
5ªfeira: 15Jul1971 - itinerário Macomia > Chai

"Recordando": depoimento de Valter Duarte Pereira dos Santos, Moçambique 1970-1974; agora em Lamego


- «Estávamos em meados do ano de 1971.

Era 4ª feira, a noite foi atribulada. O 'gringo', alcunha do apontador de morteiro 60, tinha retirado - da mochila do maqueiro -, álcool. Entrou na caserna e disse: "Hoje é para matar... ".

Estava eu na minha cama, levantei a cabeça e reparei que ele tinha uma arma G3. Desci da cama e, assim que ele me virou as costas, deitei-lhe as mãos à arma, retirei o carregador e disse-lhe: "Gringo, somos camaradas e andamos aqui pela mesma causa."

E o assunto ficou por aí.

De manhã, 8 horas, tudo pronto rumo ao Chai, Antadora e Largo do Oasse: viaturas civis e militares, mais de 30.

Tudo corria normalmente, já tínhamos passado a ponte do rio Muacamula rumo ao Chai. De repente, uma nuvem de fumo: todos ficámos em alerta total: o que acontecera?

O pior estava para vir: uma mina anticarro, reforçada com bomba de avião, dois mortos. Um primeiro-cabo e um soldado, um Unimog desfeito. Dois corpos completamente aos bocados, uma cratera com mais de 10m². 
(nota)

Era assim a guerra: onde se lutava, vencia-se e morria-se.»

Elementos cedidos por um colaborador do portal UTW:

(nota):  Naquela época, encontrava-se o Esquadrão de Cavalaria 1 da Região Militar de Moçambique (ECav1/RMM) desde Setembro de 1970 aquartelado em Macomia integrado no dispositivo do Batalhão de Cavalaria 2923 (BCav2923).

domingo, 25 de novembro de 2018

O MARROQUINO (1), por José Nobre

O MARROQUINO (1)
Navio Niassa – 4 de Agosto de 1967.
Era o nosso segundo dia de viagem a bordo do Navio Niassa, o qual pertencia à Companhia Nacional de Navegação, mas que desde o inicio da guerra ultramarina, servia para transportar, os mancebos mobilizados para o chamado ultramar. 

O nosso destino era Moçambique. 
Rapidamente compreendemos que a vida dentro daquele navio não seria fácil. 
Os porões tinham sido transformados em dormitórios, centenas e centenas de camas, que não eram mais do que umas tábuas cobertas com os chamados “colchões de espuma” e uma manta. 
Não existia qualquer local para as refeições, os duches eram de água salgada e as retretes eram uns cubículos mal amanhados, onde a privacidade dos utilizadores não existia. 
Bastou uma única noite, a primeira, para que a vida a bordo daquele navio se transformasse num inferno. 
O cheiro a vomitado que vinha dos porões era indescritível. 

Começava bem a nossa viagem a caminho de uma guerra que ninguém queria.
Nessa manhã de 4 de Agosto de 1967, tivemos a primeira palestra dada pelo nosso capitão, o comandante da Companhia de Cavalaria 1728, e também a primeira revista ao fardamento, entre outras coisas.

O Marroquino, o soldado condutor 044483/67, era a gargalhada da companhia 1728. 
Quando recebeu o fardamento, poucos dias entes do embarque para Moçambique, meteu-o dentro do saco de viagem e nunca mais lhe tocou, ficou tal e qual como lhe tinham entregue.
Antes da formatura já todos riam do fardamento do “marroquino” destacava-se de todos os outros que tinham o fardamento à sua medida. 

O alferes Guerra gritou, sentido, e todos ao mesmo tempo obedeceram à ordem.
O Capitão Pereira Monteiro, ou seja o “Becas” acabava de chegar para proceder à primeira revista da companhia. 
Olhou para todos, um a um, e ia fazendo alguns reparos sobre o cabelo, a barba, as camisas desabotoadas, e até o emblema da boina que não estava direito. 
A meio da revista, deu com os olhos no marroquino, não acreditou no que estava a ver. 
Tinha um verdadeiro espantalho na sua frente, no meio do seu pessoal. 
Ficou vermelho (particularidade do “Becas” quando se irritava). 
Fez-se ainda mais silêncio. 
Todos esperavam pela reação do comandante da companhia.
- Então você, (o Becas tratava todos por você) não tinha ninguém para lhe tratar do fardamento? 
Porque não trocou a camisa e os calções? 
O algarvio mantinha-se em sentido.
Diga- me lá porquê?
O Niassa avançava para Moçambique e enquanto o “Becas” falava o silêncio ainda era mais pesado, até os motores do navio faziam menos barulho.
- Como o meu capitão sabe, os meus pais estão em França, vai para dois anos, e eu não sei coser roupa e também não tenho ninguém na família que tenha o curso de “ Corte e Costura.”
Ouviu-se um burburinho na formatura, o Augusto, mesmo ao lado do marroquino, fazia um grande esforço para não rir.
- E as camisas, meu capitão, só haviam estas quando chegou a minha vez de receber o fardamento.
Ainda ficou mais vermelho, o “Becas.” 
A sentença caiu pesada, chamou pelo furriel, responsável pelos condutores, mais conhecido por “Parafuso” e disse-lhe.
- Este soldado deverá comparecer na próxima formatura com o cabeça rapada, e fica proibido de sair do navio quando chegarmos a Luanda.

Saiu-lhe cara a piada do “corte e costura.” 
Em pleno Atlântico tinha começado uma relação, entre o “Becas”, o marroquino e o barbeiro, que só terminaria no dia 12 de Outubro de 1969 quando regressaram a Lisboa. 

Depois e durante os vinte e sete meses moçambicanos, foram só mais umas doze carecadas, o marroquino, partiu careca e chegou careca.

Evidentemente que o “ Becas” quando da nossa escala em Luanda, deixou-me sair do Niassa, para um breve conhecimento da capital angolana.

Depois do nosso regresso de Moçambique e já no quartel de Estremoz, e na hora das despedidas, o “Becas” abraçou o marroquino e disse-lhe: Se algum dia tiver filhos e eles se portarem mal......não se esqueça de lhes dar uma carecada.
Ainda hoje, quando entro numa barbearia e me sento na cadeira, sinto a vontade de dizer...
É mais uma carecada.
RIP – Capitão Pereira Monteiro, nunca me esquecerei de si.